"Fortalezas de conservação": Novo conjunto de direitos busca acabar com abusos de povos originários em áreas de proteção ambiental
Grupos privados de conservação canalizam enormes somas de dinheiro para parques e áreas protegidas em todo o mundo, mas muitas vezes não protegem os direitos básicos dos povos indígenas que vivem nessas terras
Ao longo de mais de um século, ambientalistas trabalharam para preservar ecossistemas naturais criando parques nacionais e áreas de proteção. Atualmente, a Terra enfrenta uma crise global de biodiversidade, com mais de 1 milhão de espécies em risco de extinção. Isso torna ainda mais importante a conservação de locais onde as espécies em risco possam se desenvolver.
Em 2022, governos de todo o mundo se comprometeram a proteger 30% de todo o planeta até 2030, quase dobrando a cobertura atual. Eles também concordaram em respeitar os direitos dos povos indígenas, cujas terras abrangem grande parte dos ecossistemas naturais remanescentes do mundo.
Essas promessas, no entanto, muitas vezes não foram cumpridas. Historicamente, governos e organizações privadas de conservação têm insistido que apenas parques intocados e livres da presença de humanos podem conservar adequadamente a natureza. Em muitos lugares, inclusive nos parques nacionais dos EUA, autoridades removeram à força pessoas que viviam nessas terras e cuidavam delas há séculos.
Sou advogado e professor de direito, e meu trabalho tem se concentrado em direitos humanos, direito ambiental e áreas em que eles se sobrepõem. De 2012 a 2018, atuei como o primeiro relator especial das Nações Unidas sobre direitos humanos e meio ambiente. Em meu trabalho, ouvi muitos relatos de abusos de direitos humanos associados a esses deslocamentos forçados, inclusive assassinatos, estupros e torturas.
Para tratar esse problema, a partir de 2022 o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) convocou uma série de encontros que reuniu representantes de povos indígenas, organizações de conservação, organizações baseadas em direitos e financiadores. O resultado é um conjunto de princípios fundamentais de direitos humanos para organizações de conservação e financiadores, que será formalmente anunciado em 13 de dezembro de 2024.
Apesar do progresso para proteger seus direitos, muitos dos povos indígenas do mundo enfrentam discriminação e ameaças a seus meios de subsistência e terras ancestrais.
A história das "fortalezas de conservação"
Os povos indígenas e outros que vivem em terras não desenvolvidas estão na linha de frente das batalhas contra a mineração ilegal, a extração de madeira e a caça ilegal. Em geral, eles são mais eficazes que os governos na prevenção do desmatamento e da perda de espécies, e o fazem de forma muito mais econômica.
Estudos confirmam que a proteção dos direitos humanos dos povos indígenas resulta não apenas em uma vida melhor para essas comunidades, mas também em melhor conservação das terras onde vivem.
Entretanto, os governos geralmente não reconhecem os direitos legais dos povos indígenas em suas terras ancestrais. E as comunidades indígenas recebem apenas uma pequena fração dos bilhões de dólares destinados à proteção do clima e da biodiversidade.
Para piorar a situação, os povos indígenas são frequentemente expulsos de suas terras em nome da conservação. Essa prática começou nos Estados Unidos no final do século XIX com a criação dos parques nacionais de Yosemite e de Yellowstone. Entre os povos que perderam seus lares estavam os Miwok de Yosemite e os Shoshone de Yellowstone.
No século seguinte, a criação das que vieram a ser chamadas de "fortalezas de conservação" (fortress conservation no original em inglês) se espalhou pelo mundo. Potências coloniais europeias levaram essa estratégia para a África e a Ásia. Depois que os países destas regiões se tornaram independentes, organizações internacionais de conservação sediadas na América do Norte e na Europa continuaram a pressionar seus governos para que criassem parques nacionais nos modelos de Yosemite e Yellowstone. Pesquisadores estimam que milhões de pessoas foram afetadas, sofrendo danos físicos e, em muitos casos, a perda de suas culturas.
'Mariposa Indian Encampment, Yosemite Valley, California', por Albert Bierstadt, c. 1872. Os nativos americanos que viviam no Vale de Yosemite foram inicialmente autorizados a permanecer no parque após sua criação em 1872, trabalhando como operários e vendendo produtos aos turistas. Mas, no século XX, os funcionários do parque lentamente os expulsaram do vale e destruíram suas casas.forum.netfotograf.com/WikimediaRepugnantes e ineficazes
Nos últimos anos, as crescentes evidências de que as fortalezas de conservação são moralmente repugnantes e ecologicamente ineficazes levou muitos países a rejeitá-las formalmente. Em uma conferência internacional realizada em 2003 em Durban, na África do Sul, os conservacionistas adotaram um plano de ação que prometia criar e gerenciar áreas protegidas "em total conformidade com os direitos dos povos indígenas".
No entanto, muitas áreas protegidas ainda proíbem os povos indígenas de permanecerem ou retornarem aos seus lares ancestrais. Quando eles tentam retornar, guardas florestais os tratam como criminosos. Em alguns casos, os guardas florestais, geralmente mal treinados, abusam ainda mais deles, espancando-os, torturando-os ou até mesmo matando-os.
Em 2019, reportagens divulgaram alegações de abusos contra comunidades indígenas em parques na Ásia e na África que foram apoiados pelo World Wildlife Fund (WWF), um dos maiores grupos globais de conservação. A maior atenção levou a várias investigações, audiências no Congresso e suspensão de milhões de dólares em financiamento da ONU e do governo dos EUA à organização para projetos na Bacia do Congo.
Os investigadores descobriram que os guardas florestais do Parque Nacional de Salonga, o maior parque da República Democrática do Congo, puniam regularmente os moradores locais, espancando-os com paus, baionetas e coronhas de armas e praticando abuso sexual. Os investigadores de lá também ouviram várias alegações de estupro e assassinato.
O World Wildlife Fund não foi acusado de incentivar ou participar diretamente de tais abusos, mas cogerenciou Salonga e pagou seus guardas florestais. Um painel independente de especialistas, do qual fiz parte, concluiu que a organização não conseguiu prevenir ou reagir de forma eficaz às violações e continuou a financiar os guardas florestais mesmo depois de tomar conhecimento das alegações. Desde então, histórias de abusos semelhantes continuaram a se proliferar.
Em 2024, por exemplo, a Human Rights Watch relatou alegações de despejos violentos de residentes indígenas Chong por uma organização de conservação, a Wildlife Alliance, que cogerencia um projeto de conservação no Parque Nacional Cardamom do Camboja. E os guardas florestais que trabalham para a African Parks, uma organização privada de conservação que administra mais de 20 parques nacionais em 12 países africanos, foram acusados por organizações de direitos humanos de espancar e agredir sexualmente os indígenas Baka no Parque Nacional Odzala-Kokoua, na República do Congo.
Direitos humanos para a conservação
A conservação não está fundamentalmente em desacordo com os direitos humanos. Muitos povos indígenas, organizações de conservação e outros estão tentando substituir as fortalezas de conservação por uma abordagem verdadeiramente inclusiva que proteja os direitos humanos e o meio ambiente.
Nos últimos dois anos, trabalhei com pessoas de muitas organizações diferentes, sob os auspícios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, para esclarecer os princípios de direitos humanos que acreditamos que devem ser aplicados na conservação. Nosso foco é guiar o comportamento das organizações privadas de conservação e dos financiadores, que desempenham papéis fundamentais, mas que, em geral, recebem muito menos atenção do que os governos.
Organizações como o World Wildlife Fund, a Wildlife Conservation Society e a Nature Conservancy canalizam centenas de milhões de dólares em apoio financeiro e técnico de doadores de nações ricas para áreas protegidas em todo o mundo. Em muitos casos, eles gerenciam ou cogerenciam os parques diretamente.
Os princípios que serão anunciados em 13 de dezembro de 2024 não são vinculativos, mas refletem e resumem padrões de direitos humanos amplamente aceitos. Eles se baseiam em conceitos-chave que incentivam as organizações de conservação e os financiadores a:
- Adotar compromissos de respeito aos direitos humanos.
- Incorporar os compromissos em seu trabalho.
- Instituir processos para garantir que identifiquem e abordem as preocupações com os direitos humanos.
- Evitar causar ou contribuir para abusos de direitos humanos.
- Usar sua influência para tentar garantir que seus parceiros, inclusive agências governamentais, não se envolvam em abusos.
Em particular, os princípios pedem que as organizações de conservação e os financiadores respeitem os direitos dos povos indígenas, incluindo seu direito de decidir se dão seu consentimento livre, prévio e informado para iniciativas e projetos de conservação.
Os princípios já foram apoiados por mais de 70 organizações e indivíduos, incluindo o relator especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas e o relator especial da ONU sobre o direito humano a um ambiente saudável.
Ainda há muito a ser feito, inclusive a criação de uma conferência regular para reunir organizações de conservação e financiadores com os povos indígenas para tratar conjuntamente de questões de conservação e direitos humanos. Mas esses princípios são um passo importante em direção a uma maior proteção da natureza e das pessoas que vivem mais próximas a ela.
John H. Knox trabalhou com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente no desenvolvimento dos Princípios Básicos de Direitos Humanos para Organizações de Conservação Privadas e Financiadores. De 2012 a 2018, ele atuou como o primeiro Relator Especial da ONU sobre direitos humanos e meio ambiente. Em 2019-20, ele atuou em um painel de especialistas independentes que analisaram alegações de abusos de direitos humanos em parques nacionais na África e na Ásia.