França em crise: Macron e o retorno da extrema direita
Apesar da vitória do bloco de esquerda nas eleições parlamentares, Macron tomou uma decisão controversa e sem precedentes: escolheu um representante da direita dura para ser seu primeiro-ministro, provocando inquietação.
Após quase dois meses das eleições legislativas e o término de uma Olimpíada mundialmente transmitida, o presidente francês Emmanuel Macron finalmente nomeou seu primeiro-ministro. Apesar da vitória do bloco de esquerda nas eleições parlamentares, Macron tomou uma decisão controversa e sem precedentes: escolheu um representante da direita dura. Pior ainda, alguns analistas sugerem que isso ocorreu após um acordo com a extrema direita, o que provoca inquietação no cenário político francês.
Macron, que ganhou notoriedade durante o governo socialista de François Hollande, tinha a opção pragmática de escolher o seu próprio ex-presidente como primeiro-ministro (a relação entre os dois parece não ser a melhor). No entanto, optou por um movimento mais à direita, buscando apoio de setores mais conservadores, desafiando não só os partidos de esquerda vencedores das eleições legislativas, mas também o próprio parlamento, onde seu partido não tem maioria. Assim, para governar, Macron deverá contar com o apoio da extrema direita e de um primeiro-ministro alinhado à direita radical.
A Coabitação e a Crise Política
A coabitação, um mecanismo político francês, permite que um presidente divida o poder com um primeiro-ministro de outro partido, podendo ser da oposição. Não é uma situação simples, mas já ocorreu em três ocasiões: 1986-1988, 1993-1995 e 1997-2002.
Atualmente, o grupo político de Macron foi derrotado no legislativo por uma aliança de esquerda, formada para conter o crescimento da extrema-direita, já evidenciado nas eleições para o Parlamento Europeu. Diante desse crescimento da extrema direita, a esquerda indicou votos em candidatos de Macron, na esperança que pudessem bloquear esse movimento político.
Desde a Segunda Guerra Mundial, a extrema-direita não esteve no poder na França. No entanto, o medo de seu crescimento mobilizou o eleitorado a apoiar tanto a esquerda quanto setores moderados da direita. Porém, a surpresa veio quando, após dois meses de incertezas, Macron anunciou a nomeação de um primeiro-ministro da direita dura.
Essa nomeação ainda depende de aprovação na Assembleia Legislativa, onde a maioria relativa da esquerda pode representar um obstáculo. No entanto, se a extrema-direita apoiar a proposta, o nome será aceito, o que gera questionamentos sobre as promessas de campanha de Macron, que sempre se colocou como uma barreira contra o avanço da extrema direita, e sobre a validade da orientação de votos em candidatos de Macron contra a extrema direita.
Traição ou Estratégia?
A nomeação gerou reações imediatas. Alguns consideram uma traição aos eleitores que acreditaram em Macron como um baluarte contra o radicalismo de direita. Desta vez, a política não foi feita à sombra da maioria silenciosa, mas ao preço de uma maioria voluntariamente silenciada. Mas a questão que permanece é: quem foi realmente traído? A esquerda ou os eleitores de Macron?
A narrativa de que "esquerda e direita não existem mais" ou de que "extremos são iguais" parece mascarar uma estratégia de poder que, no fundo, normaliza ideologias de extrema-direita. Essa normalização pode ser vista em discursos e atitudes que, embora se originem em líderes de esquerda ou centro, compartilham pontos comuns com a retórica conservadora.
O sociólogo Daniel Bell, em 1960, proclamou o "Fim das Ideologias". Talvez sua obra deva ser lida não como uma constatação, mas como um programa. O esvaziamento de ideologias e utopias, substituídas por slogans simplificadores, cria um vazio intelectual perigoso.
A desumanização promovida por uma estética niilista dificulta a formação de novos intelectuais e, como alertou Aimé Césaire, abre caminho para o fascismo. A Europa, mais uma vez, parece estar à beira de um abismo. As comparações com os anos 1930 têm se tornado comuns, e a questão que ressurge é: para Onde vai a França?
A "Extrema Direitização do Mundo" e Suas Implicações Contemporâneas Quando tive o primeiro contato com o conceito de Bernard Stiegler de extrema direitização do mundo, confesso que não reconheci imediatamente os traços disso que ele chamou de revolução conservadora.
Algumas ideias apresentadas eram interessantes e relevantes, mas pareciam circunscritas ao contexto francês, principalmente quando o Brasil ainda vivia a felicidade dos primeiros governos de esquerda. A perspectiva oferecida por Stiegler sobre a "extrema direitização do mundo" não parecia se aplicar amplamente naqueles dias.
A história da extrema-direita na França é um fenômeno complexo com raízes que remontam ao final do século XIX. Desde o bolangismo e os movimentos de nostalgia monárquica, passando pelo caso Dreyfuss, a extrema-direita francesa tem se oposto aos valores republicanos da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade.
Ela chega ao poder durante a Segunda Guerra Mundial, formando o regime de Vichy, sob o nome de Colaboracionismo. Nazismo vencido, colaboracionismo vencido. O grupo se encolhe e parece uma tristeza lembrança do pior momento do século XX durante trinta anos.
Mas os fantasmas teimam em retornar. O crescimento da atual extrema-direita na França tornou-se mais visível a partir das décadas de 1970 e 1980, com o surgimento do Front National (FN) sob a liderança de Jean-Marie Le Pen.
Com apenas 1% de intenção de votos em 1981, ele consegue em 1986 sua entrada no legislativo - não parando mais de crescer. O partido, em 2002, alcançou o segundo turno das eleições presidenciais, enfrentando Jacques Chirac, deixando o grande nome da esquerda da época,Leonel Jospin, fora do segundo turno. Esta eleição marcou um ponto crítico, revelando a possibilidade da direita, através de Chirac, se representar como "barreira contra a extrema-direita" do Front Nacional de Le Pen. Essa foi a mesma abordagem que o atual presidente Emmanuel Macron empregou em suas duas últimas campanhas.
A Continuidade do Nazismo e o Neocolonialismo
E nós com isso? A extrema direita na França não é um fenômeno isolado - suas raízes estão ligadas a uma longa história de ideologias reacionárias. Um aspecto crucial da compreensão do nazismo, conforme argumenta Aimé Césaire em seu Discours sur le colonialisme, é que o nazismo deve ser visto como uma extensão das práticas coloniais do século XIX, aplicadas aos próprios europeus.
Essa perspectiva sugere que, embora o nazismo tenha sido derrotado como uma ideologia específica, a estrutura psicológica e ideológica associada à colonização continuou a existir. Césaire argumenta que o neocolonialismo é, em muitos aspectos, uma forma de nazismo que se manifesta fora da Europa, mantendo viva a ideologia extrema.
A reflexão sobre a "extrema direitização do mundo" e suas implicações atuais nos leva a reconhecer que os desafios enfrentados pela França e pela Europa não são apenas o resultado de novas correntes ideológicas, mas também de uma continuidade histórica que remonta a práticas e ideologias anteriores.
Aimé Cesaire, Bernard Stiegler e Johan Chapoutot são teóricos que parecem convergir para essa conclusão. À medida que a extrema direita ganha terreno, é crucial compreender suas raízes históricas e suas conexões com o passado colonial e nazista.
Ela é cumplice de cada crime racial que ocorre no mundo. A morte de João Alberto Silveira Freitas, de Marielle Franco, de George Floyd, são ainda as mortes de Steve Biko, Vladimir Herzog, Osvaldão, Jean Moulin ou Jean Jaurès. È a morte das crianças da Candelária. É a morte cometida pelo processo de desumanização. O mesmo que, segundo Césaire, conduziu o mundo ao nazismo.
Talvez seja o momento do presidente Lula apagar as fotos dele com Macron de seu Instagram…
Marcos Moreira não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.