Amputação sem anestesia e piora na saúde básica: organização relata drama em Gaza
Em relato ao Terra, Médicos Sem Fronteiras-Brasil mostra desafios para atendimentos e projeta dificuldades para saúde dos palestinos
Sob cerco de Israel desde o início da guerra com o Hamas, falta água até para lavar as mãos na Faixa de Gaza. Os procedimentos cirúrgicos acontecem sem condições mínimas de higiene, segurança e estrutura hospitalar. Neste cenário que médicos trabalham para salvar vidas e enfrentam situações que parecem inimagináveis, como amputar uma criança ferida, no chão, sem anestesia, na frente dos seus pais.
“Médicos nossos, atuando em hospitais na região, tiveram que fazer uma cirurgia de amputação de uma criança, sem anestesia, no chão, que foi o único espaço disponível”, contou a presidente do conselho de Médicos Sem Fronteiras-Brasil, Renata Santos.
Em entrevista à coluna, Santos, que é psicóloga com experiência em áreas de conflito, relatou o cenário vivido por médicos da organização humanitária em Gaza.
“Falta gaze, luva, anestésico, falta humanidade”, contou. Cenários como esse, contou, agravam a situação de saúde, com o avanço de desnutrição e doenças que surgem quando não existe infraestrutura básica.
“Em situação de deslocamento em massa, pode se esperar casos de violência sexual, desnutrição, em alguns contextos cólera. É um cenário que a gente prevê e tem que se preparar. Mas nesse cenário não tem como se preparar. Não tem entrada suficiente de insumos”, disse.
O palestino naturalizado brasileiro, Hasan Rabee, sente os efeitos dessa degradação na pele. Ele e a filha de 5 anos e outros familiares vivem em Khan Younis, ao Sul de Gaza, sem água, medicamentos e coleta de lixo, sofrendo com picadas de insetos nos braços e nas pernas.
Até a escalada dos conflitos, no início de outubro, a atuação de Médicos Sem Fronteiras era voltada a quatro hospitais, com atividades médicas focadas em queimaduras, cirurgia, fisioterapia, saúde mental e resistência a antibióticos. Com o bloqueio promovido por Israel, a entidade suspendeu operações humanitárias, ainda que cerca de 300 palestinos trabalhem em hospitais na região Norte e Sul.
Santos contou que 22 médicos estrangeiros conseguiram deixar a zona de conflito no final de semana, em uma das aberturas de fronteira. O bloqueio dificulta a entrada de insumos médicos e ajuda humanitária.
O número de mortes no conflito, considerados pelo Hamas e por Israel ultrapassa os 10 mil.
Veja os principais temas abordados na entrevista da presidente do conselho de Médicos Sem Fronteiras-Brasil, Renata Santos:
O cenário em Gaza
A gente já atua em Gaza desde 1989, e viu ao longo desses anos diferentes momentos em que houve uma escalada da violência no território palestino, mas nada que se compara o que nós estamos vendo agora. Vou contar o relato de um colega anestesista, um espanhol que acabou de sair com a abertura da fronteira. A gente conseguiu retirar 22 profissionais nossos que estavam lá e que tem nacionalidade estrangeira, o relato dele é angustiante, que nos deixa sem chão.
Eles estavam sujeitos a violência que estava acontecendo, os bombardeios indiscriminados, falta de comunicação, incerteza com alimentos e necessidades básicas, é absolutamente angustiante.
Esse colega espanhol conta que não existem condições mínimas para pessoas que estão passando por procedimentos médicos cirúrgicos. Procedimentos médicos de alta complexidade tem que ter todo um cuidado de preparo, para garantir de que o procedimento não vai infectar a pessoa, os materiais estarão esterilizados, isso é básico. A gente não tem essas garantias.
Atendimento Médico
Quando a gente fala de um cenário que não tem condições mínimas de higiene, é higiene básica: água e sabão para lavar as mãos. Quanto mais realização de materiais ou da estrutura de saúde.
Falta tudo, dos materiais mais básicos como gaze, luva, anestésico até os que são essenciais para a gente fazer atividades cirúrgicas com o mínimo de dignidade. Temos um relato que dá o tom do quanto a situação está desesperadora. Médicos nossos, atuando em hospitais na região, tiveram que fazer uma cirurgia de amputação de uma criança, sem anestesia, no chão, que foi o único espaço disponível. Porque os hospitais hoje estão tomados tanto de pacientes quanto de pessoas buscando refúgio na esperança de que vai ser um local protegido e não está sendo, o que é um fator preocupante.
Foi tudo improvisado, sem anestesia suficiente. Foi feito com sedativos e a família observando, a mãe, a irmã de 13 anos que logo depois passaria por um procedimento cirúrgico, ela seria a próxima, vendo toda aquela situação.
A situação de saúde deve piorar
É previsto que vão acontecer outras condições de saúde que vão se agravar decorrentes da situação de clausura e da quantidade enorme de pessoas que estão tendo que conviver é um ambiente muito restrito. Em um ambiente hospitalar e mesmo fora, isso é uma condição propícia para proliferação de outras doenças, sem higiene.
A gente está falando de uma população que não está tendo acesso à alimentação adequada, pode se esperar casos de desnutrição. Nesses 50 anos da organização [Médicos sem Fronteiras] a gente tem lidado com situações críticas como essa, e a gente mais ou menos prevê o que pode vir.
Em situação de deslocamento em massa, pode se esperar casos de violência sexual, desnutrição, em alguns contextos cólera. É um cenário que a gente prevê e tem que se preparar. Mas nesse cenário não tem como se preparar. Não tem entrada suficiente de insumos.
Antes de toda a escalada, aproximadamente de 300 a 400 caminhões de suprimentos entravam em Gaza e hoje entram a conta gotas, num cenário em que a necessidade aumentou enormemente. O que entra é insuficiente e não temos certeza se vai chegar nos locais que precisam chegar por conta de bombardeios. Essa entrada é irrisória.
A gente prevê que além das questões de guerra que requerem cirurgias e amputações, tem projeções de que vai se agravar. Tem também os pacientes crônicos, população que está desassistida de cuidados em relação a câncer, doenças crônicas, saúde mental.
Cessar-Fogo, crianças e saúde mental
A gente tem recebido informações de crianças que são as únicas sobreviventes de suas famílias. Quem vai prestar o suporte a elas? É muito importante ter uma rede de apoio que possa oferecer esse suporte. Imaginar que uma criança que está passando pelo horror da guerra, de ver seus familiares serem dizimados e se encontra sozinha num cenário completamente caótico.
Quando tudo isso acabar, a gente vai ter que lidar com a questão da saúde mental, que hoje a gente não tem a menor visibilidade e dimensão disso. Só vamos ver as consequências disso depois.
A humanidade está ausente. Para uma organização humanitária, uma situação como essa, em que a gente vê estruturas de saúde, ambulâncias, profissionais de saúde sendo alvos, isso é muito preocupante porque a gente não tem garantias nenhuma de que civis vão ser protegidos e nem que a gente vai oferecer o cuidado que eles precisam.
Quando se fala em pausa humanitária, significa pausar pra gente então poder fazer um curativo, tentar fazer uma uma cirurgia para depois vir o bombardeio e acabar com tudo? É dessa falta de humanidade que a gente está falando.
É necessário garantir um cessar-fogo e garantir que a lei internacional humanitária seja cumprida. E que as estruturas de saúde, civis e profissionais de saúde não vão ser alvo nessa guerra.
O que fazer neste cenário?
O sentimento de impotência é muito grande, porque a gente sabe o que fazer. A gente está há 52 anos atuando, é nossa expertise. A gente tem estrutura. Antes da escalada que a gente viu, do bombardeio intenso que houve o corte de comunicação, a gente tinha enviado 26 toneladas de insumos que eram suficientes para cobrir aproximadamente 800 intervenções cirúrgicas. Diante da situação pode ser o número mínimo, mas é algo que já ajudaria.
A gente tem 300 profissionais palestinos nossos estão ali, a gente tem materiais. A gente não tem condições, chegamos ao limite da nossa organização, que depende de outros fatores externos, um acordo dos líderes mundiais que poderiam chegar num acordo em para cumprir as leis internacionais que protegem os civis e profissionais de saúde e o cessar-fogo imediatamente.
A gente tem profissionais aguardando do outro lado da fronteira, no Egito, para entrar e substituir esses 22 que a gente conseguiu tirar, mas não vamos enviá-los sem garantias mínimas de que vão estar seguros lá dentro. É um cenário que nos deixa uma sensação de muito impotência, de se ver de mãos atadas. E os nossos colegas palestinos que estão lá, não podem sair e arriscam as suas vidas tentando fazer o mínimo.
Não temos registro de funcionários nossos que faleceram, mas muitos registros de familiares desses profissionais que faleceram lá.