'Nunca uma mulher negra chegou ao STF, elas estão onde?' Leia entrevista com Erika Hilton
Em conversa exclusiva, deputada vê gestão Lula fortalecida após 1º ano de gestão, mas cobra mais 'ousadia' do governo em pautas da esquerda
"Tem uma ausência, uma lacuna que tem que ser preenchida, nunca uma mulher negra chegou até aqui [ao cargo de ministra do Supremo Tribunal Federal]. As mulheres negras deste país estão onde? Por que não uma mulher negra, com um belo currículo, ocupando o STF?". Esse é o questionamento da primeira mulher trans e negra a assumir uma cadeira na Câmara dos Deputados, Erika Hilton (Psol-SP). Em entrevista exclusiva ao Terra, na última sexta-feira, 24, sob a expectativa de que Lula (PT) indique Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública, Hilton cobrou mais "ousadia" do governo em pautas para representação de mulheres negras e da comunidade LGBTQIA+.
O presidente pode indicar ao Senado, nesta segunda-feira, 27, o nome de Dino ao STF. Essa seria a segunda indicação de Lula, neste ano, de um homem para a corte. O tribunal tem 11 assentos, sendo que apenas um é ocupado por mulher, a minsitra Cármen Lúcia.
Mesmo sendo base do governo, a defesa que a parlamentar faz sobre essas pautas é contrária a duas decisões importantes que Lula tomou este ano: a indicação de Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula ao STF, e as trocas de mulheres de ministérios por homens para acomodar acordos políticos com os partidos do Congresso.
"É lamentável que primeiro sejam sempre as mulheres a caírem, talvez porque as mulheres ainda são um elo fraco da sociedade e da política e isso se reflete nessas negociações", avaliou.
Para a deputada, ainda que existam algumas batalhas para vencer o ano, o balanço até aqui é de que governo saiu mais fortalecido do que iniciou o ano. Aprovou pautas econômicas e conseguiu algum equilíbrio de forças com o Congresso. Mas faltou ousadia, diz: "uma série de questões, por exemplo nas discussões econômicas, acho que teve uma flexibilidade grande, nas discussões dos ministérios, acho que também cedeu às pressões, poderia ter pensado e articulado melhor, as mulheres que saíram dos ministérios. Mas é tudo compreensível, a gente compreende isso que faz parte dessas pressões todas que estão colocadas".
Veja a seguir os princiapais trechos da entrevsita à coluna:
Terra: Qual a avaliação deste primeiro ano da senhora no Congresso?
Erika Hilton: Vejo esse ano como um ano difícil, do ponto de vista das pautas e das agendas que a gente defende e para o próprio governo. A agenda econômica, que apesar de ter tido avanços e aprovado alguns projetos importantes como o marco fiscal, foi com muita negociação. Em alguns momentos a gente precisou, mesmo sendo base, votar contrário, por conta mesmo dessa postura de um Congresso Nacional, que agora vai diluindo um pouco essa coisa de birra de menino mimado, que tinha um poder absurdo no governo no passado, com controle do Orçamento que tentava dificultar um pouco a vida do governo.
É um Congresso que tem uma boa parcela, uns 110 deputados e deputadas, reacionária com aspirações fascistas que vão na contramão dos direitos mais importantes da população, dos direitos das mulheres, da população negra.
Nesta quarta-feira[semana passada] eles estavam fazendo uma obstrução sobre agosto ser o mês de enfrentamento das desigualdades sociais, isso reflete um pouco qual é a posição desse Congresso.
Um Congresso que é obsoleto e fede a naftalina porque não consegue acompanhar os avanços e as transformações da sociedade, inclusive das figuras que chegam ali: povos indígenas, mulheres transexuais e travestis, mulheres negras. E quer continuar conduzindo os trabalhos legislativos na mesma vanguarda do retrocesso de homens brancos herdeiros da política, em especial a Câmara.
Terra: O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) tem essa força de pressionar o governo ou a estrutura do Congresso, com mais poder sobre emendas, que dá a ele esse poder?
As duas coisas, Lira é um homem poderoso. É o presidente mais bem votado da história do Congresso Nacional [teve 464 dos 513 deputados]. A conjuntura também favoreceu um pouco essa postura. É um combinado de coisa, é um casado. É Lira mais conjuntura que dificulta um pouco a vida do governo.
Terra: Qual a avaliação que a senhora faz do governo Lula?
É um governo que nos trouxe esperança e possibilidades de um futuro melhor.
Terra: [Interrompe] trouxe mais esperança ou frustração com as pautas de esquerda?
Um pouco dos dois. Esperança do ponto de vista de um governo democrático, aberto, construção do Ministério da Igualdade Racial, Ministério dos povos indígenas, trouxe de volta ao ministério da Cultura, Ministério das Mulheres, posições e vetos importantes.
Mas faltou ousadia em alguns momentos. Uma ausência de ousadia que é compreensível, quando se tem um comportamento do Congresso, da Câmara dos Deputados, como nós temos hoje, de uma Câmara que coloca a faca no pescoço e ameaça etc.
Terra: Onde faltou ousadia?
Uma série de questões, por exemplo nas discussões econômicas, acho que teve uma flexibilidade grande, nas discussões dos ministérios, acho que também cedeu às pressões, poderia ter pensado e articulado melhor, as mulheres que saíram dos ministérios. Mas é tudo compreensível, a gente compreende isso que faz parte dessas pressões todas que estão colocadas.
Vou fazer uma provocação, é compreensível ou a senhora está passando pano para o governo? Estamos no primeiro ano de mandato, quando costumam ter mais força.
Mas eu acho que esse governo chegou com um problema muito grande, diferente dos outros contextos. Esse governo chegou com um Congresso e conjuntura diferente, não chegou tão fortalecido.
O governo termina esse primeiro ano mais forte do que chegou. Ele conseguiu trabalhar, articular, conseguiu fazer. No começo do ano, senti o governo muito mais pressionado e enfraquecido politicamente.
Terra: Muitos deputados da base reclamam de serem pouco atendidos pelo governo, a senhora se sente ouvida?
Me sinto na média, depende do contexto. Tenho bom trato e trânsito no Palácio do Planalto, nos ministérios. Se eu fizer uma avaliação do todo, diria que sou bem ouvida. Mas se eu pensar em pautas específicas, talvez tenha mais dificuldade, como pautas LGBT, que temos pouco espaço de diálogo, de construção.
Terra: Isso a senhora atribui ao governo não querer abraçar as pautas ou as dificuldades políticas?
Às dificuldades, não tenho dúvidas que o governo abraça e tem compromisso com essas agendas. Às vezes falta um pouco mais de ousadia, colocar e bancar algumas coisas.
Terra: Como a senhora vê as pressões para uma indicação ao STF?
Como necessárias, latentes.
Terra: Qual o perfil que a senhora defende?
Estou no coro ministra negra. Não só pela questão racial, uma pessoa que tenha conhecimento notório jurídico, um currículo que lhe dê condições e capacidade de estar numa vaga tão importante, sem sombra de dúvida temos juristas negras nesse país. Não é qualquer pessoa negra, qualquer jurista negra. É uma jurista negra dentro das exigências e expectativas esperadas para ocupar um cargo dessa magnitude.
O governo tem uma chance gigantesca de, nesse momento, dar um sinal a um gesto ao povo, à população negra, à democracia, ao enfrentamento do racismo e dizer 'sim esse lugar carece, precisa'. Tem uma ausência, uma lacuna que tem que ser cumprida [preenchida] nunca uma mulher negra chegou até aqui. As mulheres negras deste país estão onde? Por que não uma mulher negra, com um belo currículo, ocupando o STF?
Terra: A primeira indicação de Lula foi totalmente o oposto do que a senhora defende. Foi um erro a indicação do Cristiano Zanin?
Não sei se foi um erro. Eu não fiquei satisfeita. Não achei que o Zanin era o melhor nome, até por conta de todo o debate da proximidade do Presidente com o próprio Zanin. Ele foi advogado [de Lula], tinha uma série de especulações em torno desse nome que podiam ser evitadas. Os votos do Zanin me surpreenderam um pouco, não olho com bons olhos.
Terra: A gente viu a senhora passar por várias situações de violência dentro do Congresso, situações lastimáveis. Como lidar com as dificuldades de um primeiro ano de mandato e com situações lastimáveis de violência, como a senhora passou na CPMI do 8 de janeiro?
Nunca imaginei que chegaria no Congresso nesse contexto e seria recebida com flores. Já estava preparada, então não foi uma surpresa. É sempre desagradável, porque por mais que você já tenha experimentado inúmeras vezes e experimentei várias vezes, ela te pega, te embrulha o estômago na hora que ela acontece. Mas a vida me ensinou a driblar, suportar. Aquilo ali, perto de tanta coisa, é até uma grande pataquada.
O que para mim é mais importante, é que a despeito desses episódios que não devem marcar a minha passagem pelo Congresso Nacional, consegui bom trato e diálogo com grande parte dos meus colegas parlamentares. Tenho dois projetos estruturantes importantes aprovados no primeiro ano de legislatura. Isso é algo que não é comum em especial sendo eu quem sou. Tem um projeto que trata de crises climáticas e enfrentamentos à resiliência das cidades e um projeto de empregabilidade para população em situação de rua, demonstra que apesar dos horrores e dos enfrentamentos que eu enfrento todos os dias no Congresso, tenho com quem contar e estofo parlamentar. É o que fica.
Os episódios de violência foram todos judicializados e esperamos que a Justiça se manifeste porque o Parlamento não pode ser palco para crime, ataques e desrespeito.
Terra: Sobre a mudança ministerial para acomodar o centrão. Por que sempre pedem a cabeça de mulheres e porque o governo sempre cede?
Olha, essa é uma pergunta que não tenho resposta. É lamentável que primeiro sejam sempre as mulheres a caírem, talvez porque as mulheres ainda são um elo fraco da sociedade e da política e isso se reflete nessas negociações.
Agora, não sei se dá para dizer que o governo sempre acata. Sempre é muito tempo. Não tenho como responder, não estou dentro do governo. Não participo dessas conversas que fazem com que o presidente chegue a essa conclusão.
Terra: O presidente disse que pediu para os partidos indicarem mulheres e os partidos não indicaram. Tirou um pouco de lado a responsabilidade.
Acho que tem um pouco disso, um pouco dos partidos, em especial os partidos do centro direita, não investirem nas candidaturas de mulheres, como deveriam. São poucas, de fato. Não sei se essa é uma boa resposta, que cabe definitivamente. Mas me leva para um gancho que é a problemática de que esses partidos, em sua grande maioria, são compostos por homens. Os homens ainda seguem sendo os mais fortes em uma sociedade patriarcal, misógina e violenta com as mulheres.
Por isso que eu disse que, às vezes, é preciso um pouco mais de ousadia. Eu lamento e segurei lamentando a saída das ministras.