Opinião: Base de Bolsonaro rompe fidelidade ao 'mito' e flerta com Marçal
Bolsonaro enfrenta o que mais temia: disputar sua base com um adversário do mesmo campo que tem a mesma ousadia em xingar e desinformar.
Com o começo oficial da disputa pela prefeitura de São Paulo, a base de Jair Bolsonaro (PL) dá mostras de que é fiel. Não ao capitão e ao seu clã, mas ao radicalismo e às ideias ultra conservadoras e reacionárias. A perda de eleitorado é motivo mais do que suficiente para assombrar qualquer político. Imagine então para quem está inelegível e sob uma pilha de investigações na Polícia Federal como o patriarca Jair?
Bolsonaro vê seu eleitor fugir ao seu comando - que é o de apoiar o prefeito Ricardo Nunes (MDB) - e abraçar Pablo Marçal (PRTB). Isso foi percebido pela família e pela campanha de Nunes e corroborado pelo Datafolha. A pesquisa desta quinta, 22, indicou que 44% dos que votaram em Bolsonaro em 2022 preferem Marçal a Nunes (30%). Nesse cenário, o prefeito corre risco de nem ir ao segundo turno contra Guilherme Boulos (Psol).
A briga entre ambos, Bolsonaro e Marçal, vai seguir violenta e com desfecho ainda incerto. O que é perceptível por ora é que a base de Bolsonaro não lhe é tão fiel como faziam crer.
O eleitorado de Bolsonaro, ainda que sempre vestido com a camisa da CBF ou enrolado numa bandeira de Israel, tem suas segmentações que variam de acordo com a intensidade com que defendem um ou outro tema. Uns amam mais as armas, outros a família tradicional ou o mercado ultra liberal, há ainda os que se deleitam com teses sobre liberdade e têm saudade da ditadura, os fundamentalistas religiosos e por aí vai.
Parte das ideias que tocam o coração desse grupo (Olavo de Carvalho, condenar o comunismo, terraplanismo) não está no léxico diário de Marçal. Ainda assim, o coach tem a habilidade de manter a mesma essência. Ele traz a ideia de romper com “o que está aí”, de exaltar a sua percepção de “família”, inventar soluções quase mágicas para problemas históricos da cidade e, principalmente, a fala agressiva. Marçal chegou ao ponto de responsabilizar a família da adversária Tabata Amaral (PSB) pela morte do pai dela - ele era dependente químico e alcoólatra quando se suicidou. Tudo isso embalado em um amplo domínio de redes sociais, com recortes e direcionamentos.
Marçal não traz um histórico de construção política. O “mito” também não tinha. Foi chutado do Exército e passou 28 anos recebendo salário na Câmara dos Deputados e elegendo os filhos em partidos do centrão sem nunca pegar firme em projetos e discussões de interesse nacional. Se construiu algo nesse período foi o patrimônio da família.
Marçal, que já foi condenado em uma quadrilha envolvida com roubo de conta bancária e enriqueceu vendendo suas ideias abstratas em rede social, foi eleito deputado federal em 2022, mas barrado pela Justiça Eleitoral. O caso criminal prescreveu e Marçal se diz inocente das acusações.
Nos últimos anos, essa massa de eleitores tinha um voto certo: Bolsonaro. Qualquer um que se lançasse com essas nove letras na urna ou fazendo arminha com a mão no santinho de campanha ao lado de um legítimo membro da família teria grandes chances de ser eleito. Daí o apelido pejorativo da esquerda para chamá-los de “gado”.
Essa percepção de unidade eleitoral e capacidade de transferência de votos foi um enorme ativo para negociar o apoio de Bolsonaro à candidatura de Nunes, que tenta a reeleição. A expectativa da chapa cujo vice, Coronel Mello Araújo (PL), foi indicado pelo capitão era que boa parte dos cerca de 3,1 milhões de votos que Bolsonaro teve na cidade em 2022 migrassem para Nunes - um terço dos 9,3 milhões de eleitores da capital paulista.
Havia outros nomes na mesa, como o de Ricardo Salles (Novo-SP). Houve até um flerte com Marçal, mas Bolsonaro foi com o “sistema”. Ele que sempre se elegeu nos partidos do centrão, fez acordo com os antigos conhecidos para ter o mínimo de governabilidade a partir de 2020 e tentar a reeleição em 2022. A conjuntura fez seus eleitores taparem o nariz e engolirem o acordo a seco.
Mas lá no fundinho, compor (ou seja, fazer política), soa como incômodo à base radical. A ânsia desse grupo é pela desconstrução, por acabar com o Estado, minar direitos de grupos excluídos.
Marçal sabe disso e não por acaso disse em um post de Bolsonaro que “Nunes e Boulos não representam os nossos princípios e valores. Já que o PL tirou o Salles, assistam o que nós iremos fazer aqui na capital do futuro. Deixa que eu resolvo aqui. O Valdemar Costa Neto [presidente do PL de Bolsonaro] não representa o anseio dos conservadores de São Paulo”.
Percebem que o entusiasmo não é puramente em torno de Bolsonaro, e sim das ideias que ele liderava?
Bolsonaro se fortalecia quando enterrava cada adversário que tentava se aproximar de seu eleitorado sem demonstrar uma fidelidade canina a ele e sua família. A lista é longa e passa por ex-governadores, como João Doria e Wilson Witzel, a ex-deputada Joice Hasselmann e o ex-ministro Sergio Moro.
Marçal também não será o fiel escudeiro. O que difere ele dos demais é que, em vez de se firmar no centro e fazer acenos à extrema direita, o coach já nasceu na extrema direita e não fará um deslocamento para o centro.
Carlos Bolsonaro, nesta quinta, 22, fez a defesa da candidatura de Marina Helena (Novo). Uma tentativa de acenar à base um caminho que não seja nem Marçal, nem Nunes (que o seu pai apoia, mas que também é uma das razões do descontentamento de seus eleitores).
O que vemos hoje é o que Bolsonaro mais temia: sua influência eleitoral colocada em xeque por um adversário do mesmo campo, usando as mesmas armas e com a mesma ousadia em atacar, xingar e desinformar.
Bom fim de semana!
Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro. Assine aqui, gratuitamente, e receba os próximos conteúdos.