Maconha, heroína e cocaína: a história das drogas proibidas que já foram vendidas e receitadas legalmente um dia
Cannabis para fins religiosos, cocaína no vinho e heroína para tosse. Essas são apenas algumas das maneiras pelas quais as drogas ilícitas foram usadas ao longo da história.
A cannabis, a cocaína e a heroína têm histórias de vida interessantes e longas fichas criminais. Talvez as conheçamos hoje como drogas ilícitas, mas cada uma delas já foi legal um dia.
Deixaram de ser por diversas razões. O racismo e a política desempenharam um papel importante na forma como diferentes sociedades viam e veem certas drogas até hoje. Também aprendemos mais sobre seus impactos na saúde. A confluência destes e outros fatores fez com que, com o tempo, elas fossem sendo declaradas ilegais.
E agora, décadas depois desse processo, algumas dessas drogas e seus derivados estão sendo usados legalmente, para fins médicos.
Veja abaixo como acabamos proibindo a maconha, a cocaína e a heroína, e o que aconteceu depois.
Cannabis, religião e racismo
As plantas de cannabis originaram-se na Ásia Central, espalharam-se para o norte da África e depois para as Américas. As pessoas cultivavam a cannabis por sua fibra de cânhamo, usada para fazer cordas e sacos. Mas ela também tinha outras propriedades. Como muitas outras descobertas médicas antigas, tudo começou com a religião.
A cannabis é mencionada nos textos hindus conhecidos como os Vedas (1700-1100 a.C.) como uma planta sagrada e benéfica. A cannabis ou bhang ainda é usada ritualmente na Índia hoje durante festivais como o Shivratri e o Holi.
No final dos anos 1700, os britânicos na Índia começaram a taxar os produtos de cannabis. Eles também notaram um alto índice de "insanidade do cânhamo indiano" - incluindo o que hoje reconhecemos como psicose - na colônia. No final do século XIX, uma investigação do governo britânico descobriu que apenas o uso pesado de cannabis parecia afetar a saúde mental das pessoas.
Este frasco de droga dos Estados Unidos contém tintura de cannabis.WikimediaNa década de 1880, a cannabis foi usada terapeuticamente nos Estados Unidos para tratar tétano, enxaqueca e "delírio insano". Mas nem todos concordavam (ou mesmo sabiam) qual era a melhor dose. Os produtores locais simplesmente misturavam o que tinham em uma tintura - embebendo folhas e brotos de cannabis em álcool para extrair óleos essenciais - e esperavam pelo melhor.
Então, como a cannabis passou de uma droga legal ligeiramente inútil para uma ameaça social?
Parte disso se deveu a preocupações genuínas com a saúde em relação ao que era adicionado aos alimentos, bebidas e remédios das pessoas.
Em 1908, na Austrália, New South Wales listou a maconha como um ingrediente que poderia "adulterar" alimentos e bebidas (juntamente com ópio, cocaína e clorofórmio). Para vender o produto legalmente, era preciso informar aos clientes que ele continha cannabis.
Parte disso se deveu à política internacional. Os movimentos para controlar o uso da cannabis começaram em 1912 com o primeiro tratado mundial contra o tráfico de drogas. Os EUA e a Itália queriam incluir a maconha, mas isso só aconteceu em 1925.
Parte disso foi racismo. A palavra em espanhol marijuana foi muito utilizada nos EUA para associar o uso da maconha aos imigrantes pobres. Em 1915, El Paso, Texas, na fronteira com o México, foi o primeiro município dos EUA a proibir o comércio de cannabis não medicinal.
No final da década de 1930, a cannabis estava firmemente enraizada no imaginário da sociedade norte-americana e seus pares do Ocidente como uma ameaça pública, e leis sobre drogas foram introduzidas em grande parte dos EUA, Europa e (menos rapidamente) Austrália para proibir seu uso. A cannabis era agora um "veneno" regulamentado juntamente com a cocaína e os opiáceos.
O filme Reefer Madness, de 1936, alimentou a paranoia da cannabis.Motion Picture Ventures/Wikimedia CommonsO filme Reefer Madness, de 1936, foi o ponto alto da paranoia contra a maconha nos EUA. O consumo de cannabis também fazia parte de outras subculturas "suspeitas", como o Black jazz e o movimento Beatnik, na décadas de 1950, e os militares americanos que voltavam da Guerra do Vietnã, nos anos 60 e 70.
Atualmente, o uso recreativo de cannabis está associado a danos físicos e mentais. Em curto prazo, prejudica seu funcionamento, inclusive sua capacidade de aprender, dirigir e prestar atenção. A longo prazo, os danos incluem aumento do risco de psicose.
Mas e quanto à cannabis como medicamento? Desde a década de 1980, houve uma mudança de humor no sentido de experimentar a cannabis como droga terapêutica. Os produtos de cannabis medicinal são aqueles que contêm canabidiol (CBD) ou tetrahidrocanabinol (THC). Atualmente, em alguns estados dos EUA, na Austrália e em alguns outros países, esses produtos podem ser prescritos por determinados médicos para tratar doenças quando outros medicamentos não funcionam.
No Brasil, o uso de maconha industrial para fins terapêuticos foi autorizado em acaba de ser autorizada pelo STJ, mas a lei que regerá a questão ainda não foi regulamentada pela Anvisa.
A cannabis medicinal tem sido apontada como tratamento para algumas doenças crônicas, como as dores causadas pelo câncer e esclerose múltipla. Mas ainda não está claro se ela é eficaz para a variedade de doenças crônicas para as quais é prescrita. No entanto, parece melhorar a qualidade de vida para pessoas com algumas doenças graves ou terminais que estão usando outros medicamentos prescritos.
Cocaína, tônicos e dependência
Várias espécies diferentes da planta da coca crescem na Bolívia, no Peru e na Colômbia. Durante séculos, a população local mastigou folhas de coca ou as transformou em um chá levemente estimulante. Acredita-se que coca e a ayahuasca (um psicodélico à base de plantas) também podem ter sido usadas para sedar as pessoas antes do sacrifício humano nas civilizações incas e maias.
Em 1860, o cientista alemão Albert Niemann (1834-1861) isolou o alcaloide que hoje chamamos de "cocaína" das folhas de coca. Niemann notou que aplicá-lo na língua fazia com que ela ficasse dormente.
Porém, como já haviam sido descobertos anestésicos eficazes, como o éter e o óxido nitroso, a cocaína era usada principalmente em tônicos e medicamentos patenteados.
O Hall's Coca Wine era feito com as folhas da planta da coca.Stephen Smith & Co/Wellcome Collection, CC BYTalvez o exemplo mais famoso tenha sido a Coca-Cola, que continha cocaína quando foi lançada em 1886. Mas a cocaína foi usada antes, na Itália de 1860, em uma bebida chamada Vin Mariani, do qual o Papa Leão XIII era um fã.
Com produtos à base de cocaína facilmente disponíveis, ela rapidamente se tornou uma droga popular, e altamente viciante.
No final do século 19 e início do século 20, a cocaína continuou popular no setor de entretenimento. O detetive fictício Sherlock Holmes, criação do escritor Arthur Conan Doyle, injetava-a para pensar melhor. O ator americano Tallulah Bankhead usava-a correntemente e a romancista Agatha Christie lançou mão da substância para matar alguns de seus personagens.
Em 1914, a posse de cocaína foi tornada ilegal nos EUA. Após a era hippie das décadas de 1960 e 1970, a cocaína se tornou a droga "da moda" dos yuppies dos anos 1980. Já um subproduto da cocaína - o "crack" - destruiu comunidades urbanas de negros americanos nosanos 80 e segue fazendo estragos nas grandes cidades de vários países, inclusive no Brasil.
Atualmente, o uso de cocaína está estreitamente associado a danos físicos e mentais. A curto e longo prazo, pode causar problemas cardíacos e de pressão arterial e causar danos a órgãos internos. Na pior das hipóteses, pode matar você. No momento, a produção e o uso ilegais de cocaína também estão aumentando em todo o mundo.
Mas uma coisa que pouca gebte sabe é que a cocaína sempre foi legalizada para uso médico e cirúrgico, mais comumente na forma de cloridrato de cocaína. Além de atuar como analgésico, é um vasoconstritor que ajuda a reduzir o sangramento. Por isso, ela ainda é usada em alguns tipos de cirurgia.
Heroína, tosse e overdoses
O ópio tem sido usado para aliviar a dor desde que as pessoas descobriram como colher a seiva da papoula do ópio. No século XIX, produtos viciantes e potencialmente letais à base de ópio, como o láudano estavam amplamente disponíveis no Reino Unido, na Europa e nos EUA. A dependência do ópio também era um problema real.
Por isso, os cientistas estavam procurando alternativas seguras e eficazes para o alívio da dor e para ajudar as pessoas a curar seus vícios.
Em 1874, o químico inglês Charles Romley Alder Wright (1844-1894) criou a diacetilmorfina (também conhecida como diamorfina). A empresa farmacêutica Bayer achou que ela poderia ser útil em remédios para tosse, deu-lhe o nome comercial de Heroína e colocou-a no mercado em 1898. Ela piorava infecções no peito.
Allenburys Throat Pastilles continha heroína e cocaína.Seth Anderson/Flickr, CC BY-NCEmbora a diamorfina tenha sido criada com boas intenções, esse opiáceo era altamente viciante. Pouco depois de ter sido lançada no mercado, ficou claro que era tão viciante quanto outros opiáceos (https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/bulletin/bulletin_1953-01-01_2_page004.html). Isso coincidiu com movimentos internacionais para encerrar o comércio de opiáceos não médicos devido ao seu efeito devastador na China e em outros países asiáticos.
Assim como a maconha, a heroína rapidamente se tornou radicalmente chique. A máfia traficou para os EUA e ela se tornou popular na cena de jazz do Harlem, os beatniks a adotaram e muitos militares dos EUA voltaram do Vietnã viciados nela. A heroína também ajudou a matar cantores ícones da música norte-americana, como Janis Joplin, Jim Morrison e Jimmy Hendrix .
Atualmente, sabemos que o uso e a dependência de heroína contribuem para uma série de problemas de saúde física e mental, bem como para a morte por overdose
No entanto, os danos relacionados à heroína estão sendo superados por poderosos opioides sintéticos, como oxicodona, fentanil e o grupo de drogas nitazeno. Na Austrália, houve mais mortes e internações hospitalares por overdoses de opiáceos prescritos do que por overdoses de heroína.
Em resumo
Nem todos os medicamentos têm uma história limpa. E nem todas as drogas ilícitas sempre foram ilegais.
O status legal das drogas e a forma como são usadas são moldados por fatores como política, racismo e normas sociais da época, bem como seu impacto na saúde.
Philippa Martyr não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.