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"Militares no governo torna política menos transparente"

Para o cientista político Octavio Amorim Neto, Bolsonaro criou 'ambiguidade enorme em relação ao lugar das Forças Armadas'

7 jul 2020 - 05h10
(atualizado às 08h33)
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RIO - O cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas, avalia que, com a decisão do presidente Jair Bolsonaro de envolver um grande número de militares no seu governo, estabeleceu-se "ambiguidade enorme em relação ao lugar das Forças Armadas" na política. O processo, analisa, enfraquece o controle civil sobre as corporações, torna menos transparente a política de um regime democrático e é prejudicial aos fardados.

O cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas
O cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas
Foto: FGV / Divulgação / Estadão Conteúdo

O senhor manifestou, preocupação com o papel dos militares na democracia no pós-Bolsonaro. Que preocupação é essa?

A preocupação diz respeito ao fato de a presença massiva de militares no governo não ser boa nem para a democracia nem para as Forças Armadas. Não é boa para a democracia por duas razões. Primeiro, porque erode o controle civil sobre os militares. Um regime democrático implica plena subordinação dos militares à autoridade da Constituição e dos governos. Não basta o cumprimento dos ditames constitucionais para que haja a subordinação. É preciso que os militares tenham seu poder político circunscrito à sua área de atuação profissional, isto é, à defesa nacional. Quando o poder dos militares se expande para além dessa área, a capacidade que os civis têm de controlar os militares se reduz.

Segundo, colocar os militares no centro da arena política significa colocar representantes de uma instituição opaca e radicalmente vertical no centro de um regime político que se fundamenta justamente no oposto, isto é, na transparência e em relações horizontais, que são características essenciais do Poder Legislativo e dos partidos políticos. É justamente por conta dessas duas características que o Parlamento e as agremiações partidárias têm de estar no centro da arena política de uma democracia. Faz sentido que, num regime democrático, as opiniões do Alto Comando do Exército a respeito de decisões do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional sejam um fator-chave da dinâmica política do País? Não faz. Isso é uma distorção do processo político democrático.

Estabeleceu-se uma ambiguidade enorme em relação ao lugar das Forças Armadas na ordem política, ambiguidade que enfraquece o controle civil sobre os militares e torna muito menos transparente a política de um regime democrático. A presença massiva de militares no governo não é boa para as Forças Armadas também por três razões. Primeiro, porque os militares da ativa passam a se preocupar muito menos com sua função precípua, a defesa nacional. Segundo, porque o fracasso do governo afetará a boa imagem que as Forças Armadas têm aos olhos da população. Terceiro, porque associar-se ou deixar-se associar a um governo que venha a fracassar poderá criar um fosso profundo entre as Forças Armadas e as elites civis, o que, por sua vez, também não é bom para a defesa nacional.

Em meados de 2020, mais de 35 anos após o fim do regime militar, ainda cabe discutir o papel das Forças Armadas no Brasil?

Uma democracia deve sempre discutir o papel das Forças Armadas, mas no sentido de estabelecer suas missões em prol da defesa nacional. Essa discussão tem sido escassa nos últimos 35 anos. Com a ascensão de Bolsonaro à Presidência e o retorno dos militares ao centro da vida política, é fundamental que se discuta intensamente o papel das Forças Armadas. Queremos Forças Armadas voltadas para seu métier profissional e que sejam um instrumento vital da defesa nacional ou queremos uma mistura de gendarmaria com guarda pretoriana?

O envolvimento dos militares no governo Bolsonaro, com cerca de 3 mil integrantes das Forças Armadas em cargos civis, é muitas vezes comparado a procedimento semelhante do chavismo. O senhor concorda com a comparação?

Superficialmente, lembra o regime chavista, que sempre afirmou ser um regime civil-militar e que teve e tem vários militares ocupando postos políticos importantes. Porém, o regime chavista corrompeu completamente as Forças Armadas e subtraiu-lhes o monopólio do uso da força, ao criar as milícias bolivarianas. Além disso, na Venezuela, a guarda presidencial é exercida pelo serviço secreto cubano. Nesse sentido, estamos muito longe do regime chavista, felizmente. Mas cabe sempre lembrar que Bolsonaro e Chávez têm um forte ponto em comum: são populistas hostis às instituições legislativas e aos partidos políticos.

Bolsonaro repolitizou as Forças Armadas, ao fazer essas nomeações de militares para postos civis e lotar o Ministério com militares da reserva e da ativa?

Sim. Seu objetivo é associar as Forças Armadas ao seu governo, de modo a dissuadir o Congresso de destituí-lo, ter quadros leais à sua liderança e beneficiar-se da boa imagem que as Forças Armadas têm aos olhos da opinião pública. Do ponto de vista de um presidente radical em minoria no Congresso e que governa para minorias, esse esforço de Bolsonaro faz sentido. Porém, é péssimo para a democracia e para as Forças Armadas.

Essa repolitização era desejada pela liderança militar?

Alguns setores das Forças Armadas nunca engoliram a criação do Ministério da Defesa. Outros setores odiavam Fernando Henrique Cardoso por conta de questões salariais e pelo fato de FHC não os ter consultado a respeito de alguns temas atinentes à defesa nacional. Já outros setores não ficaram satisfeitos com a considerável presença de civis na elaboração de documentos de defesa durante os governos do PT. Todavia, o que realmente atiçou politicamente os militares foi um conjunto de fatores. Destaco o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, publicado em dezembro de 2014, e a perda do status ministerial do Gabinete de Segurança Institucional no segundo semestre de 2015. A Comissão da Verdade, ao não poder acusar legalmente aqueles que supunha haverem violado direitos humanos durante o regime militar, optou por nomear, de modo a envergonhar, os supostos violadores. A lista de nomes gerou grande comoção entre os militares. O general Sérgio Etchegoyen processou a comissão por haver incluído o nome do seu pai na lista. Já a perda do status ministerial do Gabinete de Segurança Institucional, decisão tomada por Dilma Rousseff, significou que, pela primeira vez na história republicana, não mais havia sequer um militar no primeiro escalão do Executivo federal. Isso gerou um forte sentimento de desprestígio no seio das Forças Armadas. Não à toa, um dos primeiros atos do governo Temer foi justamente o de restituir o status ministerial do Gabinete de Segurança Institucional e nomear o general Etchegoyen para chefiá-lo.

Os governos Lula e Dilma, com a ação no Haiti e as operações de Garantia da Lei e da Ordem nos Estados, contribuíram para a retomada do protagonismo militar no Brasil?

A resposta é negativa no que toca à Minustah (missão no Haiti). Quanto ao recurso às operações do tipo GLO, teve picos sob o segundo mandato de FHC e sob Dilma Rousseff, mas o auge foi sob Rousseff. Como regra geral, pode-se dizer que é um erro por parte da liderança civil empregar excessivamente as Forças Armadas em missões domésticas de natureza policial. Na verdade, as GLOs geraram o seguinte ciclo vicioso entre o fim da década de 1980 e 2018: as Forças Armadas têm amplas prerrogativas na segurança pública; as taxas de criminalidade continuam subindo; as polícias estaduais são deficientes; os civis frequentemente convocam as Forças Armadas para realizar operações do tipo GLO para suprir as deficiências das polícias estaduais; a opinião pública apoia essas operações; os militares passam a gostar dos benefícios de curto prazo, tanto orçamentários como de reputação, gerados pelas GLOs; e a combinação de todas essas condições enfraquece a disposição por parte dos líderes civis de reduzir as prerrogativas militares em matéria de segurança pública. Ou seja, as GLOs acabaram congelando a presença dos militares na segurança pública. Essa presença é uma peça importante do protagonismo militar no Brasil.

Qual seria o papel dos militares em um país como o Brasil: sem ambições estratégicas, sem rivalidades locais relevantes, que se envolveu em poucas guerras em sua vida independente e que entrou em guerra pela última vez há quase 80 anos?

Não podemos esquecer que o Brasil tem o quinto maior território nacional, a sexta maior população e é uma das dez maiores economias globais. Temos amplos interesses e responsabilidades internacionais. Sempre desejamos ter voz ativa no concerto das nações. Um país com tais atributos tem que ter Forças Armadas bem preparadas, à altura das suas necessidades e aspirações, para ser levado a sério e ter meios para realizar seus objetivos estratégicos. Sendo mais específico, o papel das Forças Armadas é a defesa das fronteiras nacionais, a manutenção da paz na América do Sul, o apoio à política externa e a prontidão para guerras interestatais.

Em artigo, o senhor fala em fazer os militares se focarem em seus projetos, como aviões e submarinos. Mas isso custa dinheiro, em um país em crise econômica e problemas sociais urgentes. Como agir nesse caso?

Estou ciente de que diversos setores políticos e sociais vão reclamar de se investirem recursos escassos em tais projetos num momento de aguda crise econômica e social. Todavia, se prezamos a democracia, temos de resolver a questão militar com realismo, compreendendo também que um país como o Brasil precisa de Forças Armadas bem preparadas em prol defesa nacional. Isso tem preço. Para financiar os investimentos em Defesa, um presidente não bolsonarista deverá ter a sabedoria de cortar gastos orçamentários destinados a atividades rentistas e não cortar gastos sociais, como tem feito o governo Bolsonaro. Por que não cortar isenções tributárias da Zona Franca de Manaus e os benefícios fiscais dados à indústria automobilística para financiar os investimentos em Defesa?

Não seria hora de cortar alguns gastos militares para viabilizar outros? Por exemplo, reduzir o efetivo, limitar ou extinguir o serviço militar obrigatório para investir em uma força menor, mais profissionalizada e mais tecnológica, com equipamentos modernos e operacionais?

Essa é outra opção que merece ser estudada, mas também não é fácil.

O Brasil também conta com uma Justiça Militar, que tem até um tribunal superior, para apenas 400 mil militares da ativa, em um país com 210 milhões de habitantes e carências no Judiciário. Isso faz sentido, em uma época de recursos escassos?

Não. É mais uma evidência da autonomia com que contam as Forças Armadas no Brasil. Mas, para reduzi-la, não basta a retórica da indignação. É preciso que os civis tenham uma estratégia bem pensada e se disponham a bancar os custos políticos de eliminar privilégios que os militares consideram naturais. Tanto a estratégia quanto a disposição são bens escassos no seio de nossas lideranças civis.

Outro ponto que envolve os militares no Brasil é que têm estruturas de saúde, educação, previdência e remuneração autogeridas e sem controle civil. Na reforma da Previdência, as Forças Armadas ganharam regras generosas. Isso é sustentável, em um país com uma crise econômica grave e que não entra em guerra há quase 80 anos?

Discordo. Há controle sobre aquelas estruturas exercido pelo TCU e pelo Ministério Público. Outra coisa são as regras generosas de Previdência Social ganhas pelos militares durante a reforma da Previdência. Sendo Bolsonaro o presidente, isso não é surpresa. O que surpreende é não ter havido qualquer reação digna de nota por parte do Congresso.

O Ministério da Defesa foi concebido, em tese, para que, na democracia, o poder militar se submetesse ao poder civil. Na prática, tornou-se um ministério militar, comandado por um general e cheio de militares. O que poderia ser feito para retornar ao objetivo inicial, de colocar o poder militar sob controle democrático?

Temos de retomar uma promessa feita pela Estratégia Nacional de Defesa, em 2008. A ideia era criar um quadro de especialistas civis em defesa dentro do Ministério da Defesa, hoje quase que completamente mobiliado por oficiais da Marinha, Exército e Força Aérea. O país dos concursos públicos ainda não conseguiu realizar o concurso para o quadro de especialistas civis em Defesa. Com um simples decreto, um novo presidente poderia mandar realizá-lo. No longo prazo, os especialistas civis permitiriam um maior equilíbrio entre civis e militares dentro do mais poderoso instrumento de controle dos militares, o Ministério da Defesa. O controle dos militares pelos civis tem sido erodido no Brasil também por conta da minguante presença de civis na Defesa, um processo que começou no último ano do governo Temer, com a nomeação do general Luna para chefiar o ministério.

O que fazer com o Artigo 142 da Constituição, que permite leituras tão controversas como a de que é legal militares darem golpe de Estado?

Subscrevo a proposta do historiador José Murilo de Carvalho: eliminar cinco palavras - "à garantia dos poderes constitucionais" - do Artigo 142 da Constituição. A remoção dessas palavras acabaria com divergências sobre a interpretação do papel constitucional das Forças Armadas.

Os militares voltarão aos quartéis ou vão ficar na política?

Depende de quem vier a suceder-lhe (Bolsonaro). É fundamental que, na próxima eleição presidencial, os candidatos mais competitivos discutam amplamente o papel das Forças Armadas. O retorno dos militares aos quartéis tem de ser uma promessa do candidato vitorioso, de modo que tenha capital político suficiente para a dura tarefa que será o restabelecimento do controle dos militares pelos civis. Se o tema não for mobilizado durante a campanha do futuro presidente, poderemos esperar que haja menos militares chefiando ministérios civis e ocupando cargos nos escalões inferiores do Executivo federal. Mas mudar o resto - sobretudo reformar a burocracia do Ministério da Defesa, reduzir os privilégios das Forças Armadas e reforçar sua orientação para tarefas intimamente ligadas à defesa nacional - será muito difícil.

Estadão
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