'Minha mãe não quer ouvir falar. É como se estupro de menino gay fosse justificado': o relato em Londres de uma trans brasileira
Mostra na capital britânica releva relatos de moradoras do Complexo da Maré, no Rio, que participaram de pesquisa sobre violência de gênero; estudo também foi realizado no Reino Unido com brasileiras imigrantes.
Quase 20 anos após ter sido abusada sexualmente por um tio, a transexual Gilmara Cunha, de 32 anos, moradora do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, tomou coragem de contar para a mãe sobre a violência que sofreu quando ainda era um menino e começava a apresentar trejeitos femininos.
"A cara dela não expressou nenhum sentimento (...) Ela não quer tocar no assunto, não quer falar, porque ela não entende como uma violência. Se eu quero falar, é porque isso me dói, me machuca, mas ela não quer olhar o meu lado, não quer ouvir, para não construir uma outra perspectiva que ela tem do irmão dela. (Para ela) É justificável (o que aconteceu): 'você é gay, trans, fica aí com a sua sofrência'."
Por acreditar nessa "justificativa" e achar que ninguém acreditaria em sua história, Gilmara Cunha se calou.
Hoje uma ativista LGBT dentro da Maré, ela diz que a violência sexual contra homens e gays também precisa ser discutida, assim como a de mulheres.
"Quando se trata de uma mulher biologicamente construída e de um gay, é justificável a violência com gay. Com a mulher é inadmissível, não pode (...) Acho que violência e exploração sexual é exploração sexual, indiferente de gênero, de você ser um homem gay, uma travesti ou uma mulher biologicamente construída."
Há alguns dias o depoimento de Cunha pôde ser escutado e assistido por quem visitasse a instalação batizada de Cicatriz ("Scar", em inglês), em Londres. A obra, de Bia Lessa, integrou o festival Mulheres do Mundo ("Women of the World"), no Southbank Centre.
Ali, foram convertidos em obras gráficas e audiovisuais os relatos de duas dezenas de moradoras da Maré, dentre as 801 ouvidas para a pesquisa Violência Contra Mulheres no Complexo da Maré, que tenta traçar um panorama da violência de gênero naquele aglomerado de favelas.
O estudo integra a iniciativa batizada de "Cidades Saudáveis, Seguras e com Equidade de Gêneros: Perspectivas transnacionais sobre Violência Urbana contra Mulheres", financiada pelo Conselho de Pesquisa Econômica e Social (ESRC/Reino Unido) e realizada em parceria com a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a Redes da Maré, a Queen Mary University, o King's College, a People's Palace Projects e o Latin American Women's Rights Service.
Para este projeto, também foi realizada uma pesquisa sobre o mesmo tema em Londres, desta vez com imigrantes brasileiras que vivenciaram algum tipo de violência.
Moradora da Maré assim como Cunha, Maria Alice Vieira, de 52 anos, também não teve coragem de denunciar o ex-companheiro, usuário de drogas, que tentou matá-la.
"Ele pegou pelos cabelos e bateu com a minha cabeça no guarda-roupa. Aí me derrubou, montou em cima de mim, tapou a minha boca com a mão para eu não gritar, e aí foi a hora que ele enfiou a faca no meu peito... Foi quando mordi a mão dele. Ele tirou a mão da minha boca e foi a hora que eu gritei socorro e ele enfiou a faca dentro da minha boca, na minha garganta", diz.
Quando ela conseguiu fugir de casa e ser socorrida, o ex pulou do terceiro andar e se machucou todo. Moradores da vizinhança quiseram linchá-lo, o que Maria Alice então impediu. Logo depois, ela o acolheu de volta.
"Fiquei um tempão me perguntando por que é que eu não fiz isso (de denunciar). Eu não sei se é porque eu não tinha coragem, ou se era pelo amor que eu tinha por ele. Eu mesma fiquei me perguntando, mas eu nunca tive essa resposta", diz a comerciante, que chegou a ficar três meses sem comer por causa dos 14 pontos levados na língua.
Na instalação feita apenas com relatos das moradoras da Maré, a diretora Bia Lessa também usou objetos pessoais das vítimas, alguns usados para feri-las, como um sabonete com o qual uma delas apanhava, ou que fossem símbolo da força para superar as agressões.
Maria Alice escolheu para a mostra uma das roupinhas de Valentina, de um ano e nove meses. A filha que teve com o homem que tentou matá-la há seis anos foi o motivo da ruptura na relação abusiva. No segundo semestre, a instalação será exibida no Rio e em São Paulo.
Do outro lado do oceano
Do outro lado do Oceano Atlântico, brasileiras que emigraram para Londres relataram episódios de violência parecidos com os que sofreram as moradas da Maré.
É o caso da baiana Camila, de 31 anos, que teve o sobrenome foi omitido para preservar sua identidade. Ela mudou-se para a capital inglesa há dez anos, depois de ter conhecido pela internet o brasileiro que se tornaria seu marido.
"Como ele era calmo, evangélico, não bebia e não fumava, pensei que ele seria uma boa pessoa pra mim", conta. Um tempo depois, porém, ela descobriu que o casamento, na verdade, era uma prisão. "Ele me isolou do mundo porque ninguém podia saber que éramos casados. O pior abuso que sofri foi o psicológico", diz.
Não muito tempo depois, Camila passou a sofrer agressões físicas. Ela não teve coragem de denunciar a agressão, ainda mais em um país estrangeiro. "Tinha medo dele se vingar. Eu estava aqui sozinha e não queria voltar para o Brasil. Eu tinha vergonha de voltar e admitir que nada deu certo aqui."
Vergonha de denunciar
O relato dela foi colhido durante a pesquisa Não se pode lutar no escuro: Violência Contra Mulheres e Meninas entre Brasileiras em Londres, de autoria da professora Cathy McIlwaine em parceria com a pesquisadora Yara Evans, ambas da universidade King's College, em Londres.
Para o estudo, que tem metodologia diferente do feito na Maré e não é comparativo com aquele, foram ouvidas 175 brasileiras que vivem na capital inglesa, indicadas por organizações de direitos das mulheres.
Do total de 175 entrevistadas, 82%, ou quatro em cada cinco mulheres, disseram ter sofrido violência de gênero ao longo de suas vidas. Duas em cada cinco delas foram vítimas tanto no Brasil quanto no Reino Unido.
Quase metade delas (48%) sofreu alguma forma de violência de gênero no novo país. A violência emocional/psicológica é a mais relatada (48%), seguida da física (38%) e da sexual (14%).
Camila não é a única que não reportou a agressão no Reino Unido: 56% das imigrantes brasileiras não fizeram denúncia.
Entre os motivos estão a falta de confiança que algo seria feito a respeito, pouca informação, vergonha e problemas com a imigração (documentos vencidos ou falta de documentação), além do problema com a língua estrangeira.
Na pesquisa feita na Maré, coordenada pela professora da pós-graduação de Serviço Social da UFRJ Miriam Krenzinger e pela Redes da Maré, foram entrevistadas 801 mulheres de maneira aleatória (o compromisso do projeto transnacional era ouvir cerca de 200 mulheres em cada país, mas as pesquisadoras brasileiras decidiram ampliar a amostra).
Desse total, 29% relataram ter sofrido alguma violência - apesar de os dois estudos não serem comparativos, a diferença com a amostra de Londres pode se dar, segundo os pesquisadores, porque as entrevistadas fora do Brasil foram indicadas por entidades de apoio à mulher.
Na Maré, a agressão física associada à violência psicológica foi a forma mais recorrente de agressão, segundo 34%. O medo e a vergonha também apareceram como fatores principais para que elas não revelassem a ninguém o que sofreram.
A professora McIlwaine diz à BBC Brasil que as causas de violência de gênero na Maré e em Londres são fundamentalmente as mesmas: relações desiguais de poder, patriarcais e misóginas aprofundadas.
"As condições, no entanto, são muito diferentes. As mulheres na Maré vivem numa pobreza maior, com alto nível de exclusão e de violência urbana. De muitas maneiras, a violência contra as mulheres lá também está associada a outras formas de violência."
Para Krenzinger, há uma outra conexão entre as duas pesquisas: a relação das mulheres com a questão da Justiça.
"As mulheres da Maré moram num território que estabelece redes de proteção informais, muitas vezes fora da lógica do que a gente pensa em termos de estado democrático de direito. Elas acionam redes que podem ser vinculadas à família, à igreja e a grupos armados", diz. "Em Londres elas também acionam redes que não são a do Estado, como entidades de apoio, igreja", fala.
"Outra questão é o medo de acionar o acesso à Justiça formal via Poder Judiciário, ir à polícia. Em Londres, muitas mulheres estão em situação irregular e têm medo. No Rio, as mulheres não acreditam que a polícia irá até a favela investigar."
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