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Moçambique: o violento fim da democracia negocial

Com a nova oposição liderada por Venâncio Mondlane, o povo se manifestando nas ruas e o governo desnorteado com os ataques, o modelo de democracia negocial que tinha regido o país pós-1992 terminou definitivamente

18 nov 2024 - 15h21
(atualizado às 15h33)
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Moçambique vive uma situação dramática desde 9 de outubro, quando foram realizadas eleições presidenciais, legislativas e provinciais. A oposição não reconhece o resultado oficial declarado pela Comissão Nacional das Eleições (CNE), que deu vitória ao candidato da Frelimo, Daniel Chapo, com 70% dos votos.

Protestos coordenados por Venâncio Mondlane, expoente da oposição que reivindica a vitória nas eleições presidenciais, se alastram em cidades grandes e pequenas. A reação das forças policias tem sido violenta. O país mergulhou no caos, acentuado pelos assassinatos de Elvino Dias, assessor jurídico de Mondlane, e Paulo Guambe, mandatário de PODEMOS (o partido que apoiou Mondlane na sua candidatura presidencial).

O número de vítimas já teria passado de 50. A Anistia Internacional instou o governo a parar com o uso excessivo da violência contra manifestantes desarmados, ao passo que o próprio Papa Francisco mencionou a necessidade do diálogo entre as partes para que Moçambique não caia de novo numa guerra civil. A reação da comunidade internacional tem sido restrita. O Itamaraty emitiu um tímido comunicado, pedindo a contenção da violência.

As origens do caos

A caos atual é, em parte, decorrente de eleições não transparentes e de uma completa sobreposição das instituições do estado com os interesses do partido Frelimo. Porém, tem raízes ainda mais profundas e que tornam este momento particularmente complicado.

Moçambique está diante de uma escolha que irá determinar a sua história para os próximos 10-20 anos. Por um lado, a possibilidade de uma guinada autoritária, sob o comando de Venâncio Mondlane; por outro, uma mudança radical de um modelo de democracia e de estado original, que esteve na base do funcionamento do país e das suas instituições desde a viragem democrática do início da década de 1990, e que pode ser resumida com a expressão de "democracia negocial".

Este tipo de democracia se assentou em algumas constantes que pareciam eternas, e que podem ser resumidas na triangulação Frelimo-Renamo-parceiros ocidentais. A Frelimo era considerada como a única formação política legitimada a governar. Isso foi uma herança derivada do regime de partido único que vigorou desde a sua independência de Portugal em 1975, mas que se prolongou mesmo com a introdução, em 1990, de uma constituição liberal e de eleições livres, realizadas em 1994.

O partido-estado Frelimo procurou se manter no poder, controlando o aparelho do estado, interpretando as eleições como mero exercício confirmativo daquilo que necessariamente devia acontecer: a sua manutenção na direção do governo.

A Renamo representava o maior partido de oposição. Sempre tinha algum espaço na política econômica, mas dificilmente avançava na pretensão de governar o país. Este pacto funcionou relativamente bem, exceto em alguns momentos, como em 1999, quando o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, provavelmente ganhou as eleições presidenciais. Após a morte de cerca de 100 membros do seu partido numa cela minúscula em Montepuez (na província de Cabo Delgado), que tinham se manifestado contra os resultados eleitorais manipulados, Dhlakama aceitou a derrota, embora sem reconhecê-la, deixando que a Frelimo continuasse a governar o país.

A comunidade internacional apadrinhou este modelo negocial de governação. O país foi definido por Clinton como "um milagre" de paz e de democracia, fazendo com que os interesses ocidentais (e depois chineses, indianos, brasileiros e de muitos outros países) encontrassem terreno fértil, num país altamente corrupto, pouco inclusivo e cada vez mais autoritário.

A governação iniciada em 2004, com Armando Emílio Guebuza, desaguou no maior escândalo financeiro da África Austral, conhecido como escândalo das "dívidas ocultas", em que um dos filhos do antigo presidente moçambicano foi condenado a 12 anos de prisão.

Com a morte de Afonso Dhlakama, em 2018, e a ascensão à presidência da Renamo de Ossufo Momade, o modelo de democracia negocial pareceu funcionar de forma ainda mais satisfatória. Momade assinou o definitivo acordo de paz relativo à segunda guerra da Renamo (2013-2018) com o presidente da república, Filipe Nyusi. Em 2019, entregou as armas dos antigos guerrilheiros, abrindo mão de competir de forma séria com a Frelimo nos pleitos eleitorais dos anos seguintes.

Porém, os sinais de descontentamento popular começaram a se fazer evidentes. Numa primeira fase (em 2008 e 2010), as manifestações populares, ou "revoltas do pão" não foram dignas de muita atenção por parte do governo da Frelimo.

O poder executivo respondeu com medidas repressivas (cortou as comunicações via celular) e conjunturais (subsidiou o preço do transporte público e do pão, de forma a conter a violência das manifestações. Mas nenhuma reforma estrutural foi implementada, como uma redistribuição mais equitativa da riqueza à separação partido-estado.

Com uma Renamo fragilizada e uma comunidade internacional tolerante, a Frelimo se sentia numa situação confortável. O que não se viu foi que a sociedade civil organizada estava crescendo: centros de pesquisa independentes, jornais privados, rádios comunitárias, ONGs de várias naturezas, rappers interventivos, tudo tendia a confrontar o governo da Frelimo através de um novo espírito crítico, e com propostas de qualidade para a resolução dos problemas do país.

Jovens cada vez mais conscientes e formados estavam procurando por uma liderança política forte e corajosa, além da Renamo ou de outros partidos de oposição menores, incapazes de acatar as suas lamentações e as suas propostas. Esta liderança foi identificada em Venâncio Mondlane, que traduziu as instâncias sociais do rapper Azagaia (falecido em 2023) em programa político.

Os fatores da aceleração da crise

No entanto, pelo menos dois outros fatores aceleraram o processo de crise do modelo negocial de democracia: acima de tudo, de tipo endógeno. Com a governação da atual presidência (Nyusi se manteve no poder desde 2014 até 2024), os benefícios econômicos da oligarquia da Frelimo (com evidentes nuances étnicas, favorecendo a etnia minoritária Makonde, do norte do país) se tornaram a única atividade de interesse do partido no poder.

A pobreza em Moçambique, segundo dados oficiais, aumentou de 87% em 10 anos, com 65% da sua população a viver em condições de indigência, visível através do incremento abismal de mendigos nas ruas das principais cidades. A elite ligada à Frelimo continuou a enriquecer, mesmo praticando atividades ilícitas, tais como o tráfico de estupefacientes, incluindo cocaína do Brasil e heroína da Ásia.

Concentrados em seus negócios, os oligarcas da Frelimo não se aperceberam nem do surgimento do terrorismo de origem jihadista em Cabo Delgado, com evidentes matrizes étnicas, nem de um descontentamento popular que estava quebrando a tradicional triangulação Frelimo-Renamo-comunidade internacional.

Do ponto de vista exógeno, nos últimos meses, em muitos dos países vizinhos a Moçambique as oposições políticas ganharam as eleições: começou a Zâmbia em 2021 com a vitória de Hichilema, prosseguiu a África do Sul com a derrota parcial do ANC, que obrigou Ramaphosa a formar um governo de coalizão com seus históricos inimigos, e culminou com a derrota do BDP em Botswana depois de 58 anos de governo, cuja transição foi das mais tranquilas da história africana.

Tais fatores provocaram uma aceleração significativa da crise do modelo de democracia negocial: nas últimas eleições, embora com os dados definitivos ainda por ser apurados, a Renamo teve uma performance desastrosa, provavelmente não conseguindo passar 5% dos votos (contra 22% das eleições anteriores de 2019). A Frelimo escolheu um candidato pouco expressivo, Daniel Chapo, fruto de um debate interno preocupado em manter uma unidade aparente, e eliminando, portanto, os possíveis candidatos de peso.

Finalmente, Venâncio Mondlane interpretou perfeitamente, mesmo recorrendo a imagens religiosas, sendo ele pastor de uma igreja cristã africana, o desespero de jovens excluídos do emprego, da formação, da cultura e do debate público, que só estavam esperando pelo "Messias".

Dispostos a tudo, estes jovens se mobilizaram durante a campanha eleitoral, garantindo um sucesso considerável - embora ainda não quantificado - a Venâncio Mondlane, e sobretudo depois, quando ouviram os resultados oficiais pela CNE, provavelmente fruto de fraudes e manipulações já não aceitáveis. Foi a partir deste momento que o medo desapareceu, e as marchas, as sabotagens econômicas, os "panelanços" que Mondlane mandava executar com live no Facebook com dezena de milhares de seguidores iniciaram a bloquear o país, acelerando o caos.

Moçambique nunca mais será o mesmo

É impossível prever como esta crise, que parece estar desaguando num novo conflito civil, irá terminar. O que é certo é que Moçambique nunca mais será o mesmo. Com a nova oposição liderada por Mondlane, o povo nas ruas a manifestar durante dias e dias, o governo encurralado e desnorteado, o modelo de democracia negocial que tinha regido Moçambique pós-1992 terminou definitivamente.

Como Mondlane já repetiu várias vezes, os votos se contam e não se pesam, e qualquer negociação com o governo terá de começar a partir da verdade eleitoral. Uma verdade incômoda para uma Frelimo provavelmente derrotada, mas que não tem nenhuma vontade de largar o poder, e da qual mesmo seus históricos aliados ocidentais parecem marcar um preocupado distanciamento.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Luca Bussotti não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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