Multidão sai às ruas em repúdio a ataque contra Cristina Kirchner
Em Buenos Aires, dezenas de milhares manifestam solidariedade à vice-presidente argentina, alvo de tentativa de assassinato. Sindicalistas, artistas e ONGs se posicionam pela unidade nacional e contra o discurso de ódio.Dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas de Buenos Aires e de outras cidades argentinas nesta sexta-feira (02/09) em repúdio a um atentado contra a vice-presidente Cristina Kirchner, pelo fim da acentuada polarização política e contra o discurso de ódio.
Com cartazes que diziam "chega de ódio", manifestantes lotaram a Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede da Presidência, em um dos maiores protestos realizados em Buenos Aires nos últimos anos.
Kirchner, que lidera a corrente de centro-esquerda do peronismo e foi presidente por dois mandatos, entre 2007 e 2015, foi alvo de uma tentativa de assassinato na noite de quinta-feira, num momento de elevada tensão política no país. Um homem, de nacionalidade brasileira, apontou uma arma para o rosto da política e atirou, mas não houve disparo - segundo a polícia, a arma falhou.
"Estou assustadíssimo por pensar que se esse tiro tivesse saído, não quero nem imaginar...", disse à agência de notícias AFP Emilio Costagiomi, um programador de 55 anos que participava da manifestação no coração da capital argentina. "Vim para nos unirmos neste momento tão terrível, para abraçar Cristina e para que as coisas se acalmem de todos os lados, para aplacar os ânimos."
Ministros do governo, sindicalistas, artistas e membros de organizações de direitos humanos fizeram "um chamado à unidade nacional" a partir de um palco montado na Praça de Maio, diante das dezenas de milhares de manifestantes.
"O povo argentino está comovido, chocado com o que aconteceu, incluindo milhões que não simpatizam com Cristina ou com o peronismo. Em homenagem a todos os nossos compatriotas, fazemos este apelo à unidade nacional, mas não a qualquer preço: o ódio fora", disse a presidente da Associação Argentina de Atores, Alejandra Darín, ao ler um texto no palco.
"Há vários anos, um ínfimo setor da liderança política e seus meios partidários vêm repetindo um discurso de ódio, de negação do outro, de estigmatização, de criminalização de qualquer líder popular ou relacionado ao peronismo, e até mesmo de qualquer simpatizante", leu Darín. "A legitimação de discursos extremistas, de apelos à agressão, de propostas que negam a legitimidade democrática do adversário político não é inocente nem gratuita."
"Diante da tentativa de assassinato da principal líder política do país, ninguém que defende a república pode ficar calado ou colocar suas diferenças ideológicas diante da rejeição unânime que esta ação traz", ressaltou a atriz em seu discurso. "Não há como relativizar ou minimizar uma tentativa de assassinato."
O presidente argentino, Alberto Fernández, decretou feriado nacional nesta sexta para que os cidadãos pudessem expressar "em paz" sua rejeição à violência e atribuiu o atentado "ao discurso de ódio que tem sido espalhado a partir de espaços políticos, judiciais e midiáticos".
A tentativa de assassinato foi condenada pelos principais dirigentes da oposição Juntos por el Cambio (centro-direita). Neste sábado, o Congresso deve realizar uma sessão especial.
Polarização política
Kirchner, de 69 anos, tão amada por seus partidários dentro do peronismo como detestada por setores da oposição, ainda exerce grande influência e poder na Argentina, sete anos depois de deixar a Presidência e a um ano das eleições de 2023, em relação às quais ainda não manifestou suas intenções.
O atentado desta quinta ocorreu em meio a uma vigília permanente de simpatizantes kirchneristas instalados ao lado da casa da vice-presidente desde 22 de agosto, quando um promotor pediu 12 anos de prisão para Kirchner por crimes de corrupção na concessão de obras públicas durante seus mandatos como presidente. Desde então, grupos a favor e contra Kirchner têm se manifestado nas proximidades de sua residência, no bairro Recoleta.
Além de problemas na Justiça, a vice-presidente enfrenta uma crise em seu governo ao travar uma disputa por espaço com Fernández. Em agosto, o governo argentino criou um "superministério" da Economia para tirar o país da crise financeira.
Após o atentado contra Kirchner, os principais partidos políticos tentarão agora "fazer baixar as águas", avalia o analista político Carlos Fara. "Esse incidente ocorre depois de duas semanas de alta tensão política. Não creio que haja nenhum responsável político por isso, mas se gera um clima que provoca essas situações."
Diego Reynoso, cientista político da Universidade de San Andrés, considera que "já havia um nível de violência verbal e simbólica, que agora se materializou". "Este fato é um divisor de águas", disse à AFP, apontando que nos últimos anos a violência política nunca havia sido um problema na Argentina. "Está sendo rompido um consenso cívico e democrático que tínhamos, e é lamentável."
Brasileiro se nega a depor
A juíza María Eugenia Capuchetti e o promotor Carlos Rivolo, encarregados da investigação sobre a tentativa de assassinato de Cristina Kirchner, colheram nesta sexta-feira as primeiras declarações da vice-presidente e de uma série de testemunhas, policiais e guardas na sexta-feira.
Autoridades argentinas identificaram o homem que atirou em Kirchner como Fernando André Sabag Montiel, de 35 anos. Detido após o incidente, ele se recusou a responder perguntas quando questionado pelo juiz e pelo promotor do caso, de acordo com fontes judiciais citadas pela imprensa local. O homem foi submetido a exames psicológicos que determinaram que ele é imputável.
De nacionalidade brasileira, com mãe argentina e pai chileno, Montiel vive na Argentina desde 1993. Ele havia sido preso em 17 de março de 2021 por posse de uma faca, mas o caso foi posteriormente arquivado. O homem tem um símbolo nazista tatuado em seu corpo.
Para atacar Kichner, ele se infiltrou entre os militantes que esperavam fora da casa da vice-presidente todas as noites. O advogado da política, Gregorio Dalbón, considerou que o esquema de segurança falhou. "Ainda não se sabe se o homem agiu sozinho ou se tem a ver com algo mais", disse.
Nesta sexta-feira, cem balas foram apreendidas na casa de Montiel, confirmaram à agência de notícias Efe fontes do Ministério de Segurança argentino.
Condenação internacional
O papa Francisco, antigo arcebispo de Buenos Aires, expressou solidariedade neste "momento delicado" a sua compatriota e disse rezar para que "prevaleçam sempre a harmonia social e o respeito pelos valores democráticos".
Os Estados Unidos condenaram "energicamente a tentativa de assassinato" e expressaram seu apoio "ao governo e ao povo argentino em rejeição à violência e ao ódio", segundo mensagem divulgada pelo secretário de Estado americano, Antony Blinken, no Twitter.
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil emitiu uma nota condenando "o injustificável ato de agressão" contra Kirchner. "O Brasil repudia toda e qualquer forma de violência com motivação política e reitera seu invariável respaldo à irmã nação Argentina", diz o comunicado do Itamaraty.
Vários políticos latino-americanos prestaram solidariedade a Kirchner. Após um longo silêncio, na tarde desta sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro se pronunciou e lembrou a facada que sofreu durante a campanha eleitoral de 2018.
"Eu lamento. Agora, quando eu levei a facada, teve gente que vibrou por aí. Lamento, já tem gente que quer botar na minha conta esse problema. E o agressor ali, ainda bem que não sabia mexer com arma. Se soubesse, teria sucesso no intento", disse Bolsonaro
Mais cedo, o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva escreveu no Twitter: "Toda a minha solidariedade à companheira Cristina Kirchner, vítima de um fascista criminoso que não sabe respeitar divergências e a diversidade. A Cristina é uma mulher que merece o respeito de qualquer democrata no mundo. Graças a Deus ela escapou ilesa."
lf (AFP, Efe, Lusa)