'200 judeus foram assassinados pelos convidados da minha tia': jornalista revela passado nazista de sua família
Sacha Batthyany descobriu que tinha ligações com um massacre na Segunda Guerra Mundial e resolveu voltar às origens para investigar a história - que virou livro.
O jornalista suíço Sacha Batthyany ainda lembra bem o choque que teve ao ficar sabendo da ligação da sua família com o nazismo. A descoberta fez com que ele questionasse a própria identidade, roubou-lhe o sono por dez anos e, por fim, rendeu um livro e a esperança de fazer as pazes com seu passado.
Descendente de uma família aristocrática da Hungria, Sacha viveu a infância na Suíça, retornando muitas vezes ao leste da Europa para passar férias com parentes.
"Nossa família tem origem nobre, mas na Suíça ninguém sabia quem eu era. Cresci cercado por obras de arte, móveis antigos e objetos decorados com as iniciais e o brasão da família", conta.
"Não falávamos em dinheiro, mas sim de status. E é isso que foi perdido depois da Segunda Guerra Mundial: castelos, terras, posição social. Não que eu me importasse com isso, mas compreendia que a família pensava no passado como se tivesse sido um tempo melhor", disse à BBC Brasil.
Quando trabalhava como repórter no principal jornal de Zurique, Sacha teve um encontro inesperado com uma versão não tão idealizada do passado da família.
"Um dia em 2007 uma colega mais velha, que me desprezava e nunca falava comigo, jogou sobre a mesa uma página de jornal e disse: ´Mas que tipo de família você tem, hein?`. A primeira reação foi imaginar que minha nobreza havia sido descoberta. Esperava ler um texto elogioso sobre alguma ação heroica ou benfeitoria de um antepassado. Mas não foi nada disso. Tomei um choque. Fiquei sabendo pela primeira vez - e justamente pela imprensa - que estávamos associados ao nazismo."
"A nossa família é enorme. Tenho centenas de primos e tias, de modo que certamente não conheço todos. Há parentes espalhados pelo mundo, até mesmo no Uruguai. Mas, justamente, dentre tantos familiares, essa pessoa na foto eu conhecia muito bem. Para meu espanto, era a tia Margit."
A matéria denunciava a tia-avó de Sacha como cúmplice em um massacre que ceifou a vida de mais de 180 judeus próximo do fim da Segunda Guerra Mundial.
O texto do respeitado jornal alemão Frankfurter Allgemeine era assinado pelo jornalista britânico David Litchfield e também havia sido publicado em inglês pelo The Independent, de Londres.
Litchfield chamava a tia de "anfitriã do inferno", pois Margit teria dado uma festa em que a diversão após o jantar fora executar brutalmente judeus.
A tia-avó de Sacha era a condessa Margit Batthyány-Thyssen, filha e herdeira do multimilionário industrial alemão Heinrich Thyssen. Ela se casara com o irmão do avô paterno de Sacha, Ivan Batthyany, um aristocrata em decadência.
Famosa por seu apetite sexual, Margit teve diversos amantes, mas o casal nunca se divorciou, porque a tolerância do marido à infidelidade era sempre recompensada com carros, cavalos e barcos.
Na infância, os pais de Sacha tinham o hábito de encontrar tia Margit duas ou três vezes ao ano. "Sempre íamos almoçar nos restaurantes finos de Zurique. Ela também tinha um apartamento em Monte Carlo e nós a visitávamos no verão. Eu me lembro de que precisava me comportar bem quando ela estava por perto".
Foi Margit quem ajudou os avós de Sacha a se mudar para a Suíça no pós-guerra e pagou pelos estudos do pai dele.
Sacha se recorda que ela detestava crianças, mantinha uma postura reservada e cultivava a mania de gesticular colocando a língua pra fora, "assim como fazem os lagartos", enquanto fumava cigarros e contava histórias. Ela poderia parecer fria e ríspida, mas seria mesmo uma assassina antissemita?
Massacre
Há ao menos duas versões contraditórias para o massacre que ocorreu na noite de 24 para 25 de março de 1945, quase no fim da Segunda Guerra Mundial.
O jornalista britânico David Litchfield afirma que a condessa Margit havia dado uma festa para oficiais nazistas no castelo da família, em Rechnitz, vilarejo localizado na fronteira entre a Áustria e a Hungria.
A então jovem Margit teria se excedido na companhia de seus amantes, Franz Podezin e Joachim Oldenburg, ambos oficiais do exército nazista e, com satisfação perversa, presenciado juntamente com outros convidados os assassinatos cometidos por diversão.
"A festa teve início às 21h e durou até o amanhecer, com muita bebedeira e danças. Mas o entretenimento tradicional das festas não foi suficiente e, por volta da meia noite, cerca de 200 judeus quase definhando, considerados inúteis para o trabalho, foram trazidos de caminhão até Kreutzstadel, um celeiro próximo do castelo. Podezin então conduziu Margit e outros 15 ou mais convidados de honra a um almoxarifado, deu armas e munição e convidou-os a 'matar alguns judeus", descreveu Litchfield, que também é autor e publicou o livro The Thyssen Art Macabre.
"Foi uma coisa horrorosa", disse o jornalista britânico à BBC Brasil. Os judeus teriam sido obrigados a cavar a própria cova e se despir para que seus corpos se decompusessem mais rapidamente. Cerca de 20 prisioneiros teriam sobrevivido à noite de 25 de março, para ajudar a enterrar as vítimas. Uma vez cumprida a tarefa, eles também foram assassinados, no dia seguinte.
A investigação de Sacha, no entanto, levou a uma versão diferente dos fatos. O assassinato dos judeus teria se originado em uma ligação recebida por Franz Podezin durante a festa. Cerca de 200 prisioneiros estavam com febre tifoide, aguardando em vagões na estação ferroviária. Haveria uma ordem para executá-los.
Podezin teria então reunido seus oficiais de confiança e seguido até o local para cometer o massacre e depois retornado à festa. Margit teria permanecido no castelo. "Não foi motivado por diversão, como disseram por aí", afirmou Sacha à BBC Brasil.
Motivação
Inicialmente, o jornalista suíço não conseguia crer no que estava lendo a respeito da tia e precisou pesquisar por si mesmo para entender a relação da família com o nazismo.
"Comecei a escrever muito inocentemente, imaginando que seria uma matéria normal e que levaria algo como dois meses para resolver. Mas foi ficando cada vez maior e maior."
O escritor reconhece, porém, que mesmo que a motivação do massacre não tenha sido apenas diversão, como afirma Litchfield, há um inegável vínculo dos convidados da festa com o crime. "Sim, eu entrevistei pessoas que me disseram que eles depois voltaram e dançaram o resto da noite com o rosto manchado de sangue", afirma.
Sacha publicou um artigo sobre o assunto em 2010, mas continuou obcecado pelo tema até finalmente concluir um livro, em 2016.
Publicado na Alemanha sob o título Und Was Hat Das Mit Mir zu Tun (E o que eu tenho a ver com isso?) e em inglês A Crime in the Family (Um Crime na Família), o livro foi lançado no início do ano e é resultado da busca do autor pelas suas origens e narra o episódio do massacre de Rechnitz sob a perspectiva de quem conheceu pessoalmente a condessa Margit Batthyány-Thyssen, além de esmiuçar outros episódios de antissemitismo que ocorreram entre seus parentes.
"A minha família não gostou nem um pouco que eu tenha escrito esse livro", diz. Embora Sacha e Litchfield discordem sobre a motivação inicial, na perspectiva de ambos não há controvérsia quanto à conivência de Margit com os perpetradores do crime. A condessa e seu marido nunca foram incomodados por processos relacionados ao massacre e viveram uma vida de conforto na Suíça após a guerra.
"Mas ela sabia. Ela era uma simpatizante dos nazistas com certeza. Ela teve vários casos com oficiais e os ajudou a escapar", afirma Sacha.
Margit auxiliou Podezin e Oldenburg a fugir para a África do Sul e a Argentina, oferecendo passagens e dinheiro. "Ela foi chantageada por Podezin, mas teria o apoiado de qualquer maneira", diz.
As investigações nunca conseguiram determinar com clareza a extensão da violência, porque a totalidade dos corpos nunca foi encontrada.
Diversas testemunhas morreram em situações suspeitas em meio às inúmeras tentativas de se estabelecer e punir os culpados ao longo dos últimos 70 anos.
Alguns envolvidos como Podezin e Oldenburg conseguiram escapar, alguns cumpriram sentenças breves, outros nunca foram implicados.
Família de toupeiras
"Minha avó costumava dizer que somos como uma família de toupeiras, levando nossas vidinhas dentro da terra" conta Sacha.
"Eu precisava sair disso para compreender o passado, algo que virou uma obsessão". "Por sete anos eu pesquisei e refleti até conseguir entender o que isso tinha a ver comigo. Foi necessário consultar um psicanalista para fazer sentido de tudo. Levei muito tempo pensando, até que finalmente sentei e escrevi a minha história em cinco meses", diz.
Sacha conclui que havia motivos pelos quais ninguém falava com a tia Margit sobre o massacre: opressão, preguiça, dinheiro e indiferença.
Ele também reconhece que essa é uma história com muitas versões, mas avalia que fez o trabalho "mais honesto que pode".
Durante a redescoberta de seu passado, ele aprendeu também como a guerra afetou seus avós e viajou à procura de respostas desde a Hungria até a Sibéria e a Argentina.
"Demorei um tempo até achar o tom. Tentei ser o mais preciso e o mais íntimo possível. A minha família não estava muito contente, mas acho que tinha que contar a verdade sem ser forçoso, sem embaralhar as declarações. Escrevia na madrugada, numa mesinha no porão. Acordava às 4h e trabalhava".
Atualmente, com o livro já publicado e os fantasmas exorcizados, o jornalista vive em Washington com os três filhos pequenos e a mulher. De lá trabalha como correspondente para a revista do diário alemão Süddeutsche Zeitung.
"Enquanto escrevia não cheguei a pensar no impacto que isso teria sobre os meus filhos, mas agora espero que essa experiência ajude-os a olhar para o mundo de forma mais aberta, para que não se tornem toupeiras."