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A enfermeira esquartejada por tratar membros da resistência em Mianmar

Decisão de Zarli Naing de ajudar resistência clandestina de Mianmar custou sua própria vida.

19 jul 2022 - 07h25
(atualizado às 09h41)
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Enfermeira Zarli Naing tinha 27 anos e ajudava a resistência em Mianmar
Enfermeira Zarli Naing tinha 27 anos e ajudava a resistência em Mianmar
Foto: BBC News Brasil

No dia 14 de junho, perto das 13h (hora local), membros da organização voluntária Força de Defesa do Povo chegaram a um pedaço de terra entre duas aldeias na margem oeste do rio Chindwin, no centro de Mianmar, no Sudeste da Ásia.

Eles haviam sido alertados por um criador de vacas, que observou corvos vasculhando o que ele acreditava ser um cadáver humano. Os voluntários viram uma mão humana saindo da terra.

O corpo era de um jovem combatente do grupo, Wu Khong, que estava ferido e havia desaparecido durante um ataque do Exército, quatro dias antes. E, junto com ele na cova rasa, havia quatro outros corpos, esquartejados e queimados.

Pelas roupas, pelo seu relógio e por uma bolsa médica encontrada por perto, eles também identificaram a enfermeira Zarli Naing, de 27 anos, que havia vindo em 2021 para a região de Magway, no centro de Mianmar, para prestar assistência médica aos insurgentes e aos moradores locais.

Eles combatiam as forças armadas de Mianmar, que tomaram o poder em 1° de fevereiro de 2021, derrubando o governo eleito do país, liderado pela Nobel da Paz Aung San Suu Kyi.

A partir de entrevistas com amigos e com a família de Zarli Naing, além de pessoas que a treinaram, moradores das aldeias próximas e combatentes com quem ela conviveu até sua morte, a BBC conseguiu construir um perfil dessa jovem brilhante e corajosa, cuja decisão de opor-se ao golpe militar acabou em tragédia.

E é também a história da dramática resistência contra a junta militar, formada pelas comunidades ao longo de uma grande faixa da zona árida de Mianmar — uma região pobre e exposta às secas.

Zarli Naing trabalhava na região de Magway, uma área rural pobre no centro de Mianmar, onde há forte resistência ao governo militar
Zarli Naing trabalhava na região de Magway, uma área rural pobre no centro de Mianmar, onde há forte resistência ao governo militar
Foto: AFP / BBC News Brasil

A formação profissional

Zarli Naing era a mais jovem de quatro irmãs de uma família de agricultores pobres, que vivia perto do grande complexo de templos da cidade histórica de Bagan, em Mianmar. Ela foi a única a ter um bom desempenho na escola, formando-se enfermeira, e conseguiu um emprego no hospital da capital do país, Nay Pyi Taw.

Naing trabalhava no hospital quando aconteceu o golpe. E, como milhares de outros profissionais da área médica em todo o país, ela entrou para o movimento de desobediência civil, recusando-se a trabalhar para o governo controlado pelos militares.

Um mês depois do golpe, Naing saiu de Nay Pyi Taw e voltou à sua cidade natal. Mas, com medo de que seu ativismo político pusesse sua família em risco, ela decidiu mudar-se para uma zona segura no norte de Magway, em grande parte controlada pelas forças da oposição, como a Força de Defesa do Povo.

Ali ela fez parte de uma extensa rede clandestina de assistência médica, organizada por milhares de médicos e enfermeiras que abandonaram seus empregos em protesto contra o golpe.

Naing também estava tentando formar-se em um curso de graduação online da conceituada Universidade de Enfermagem de Mandalay, em Mianmar. Ela havia começado os estudos no início de 2020, mas o curso foi interrompido pela pandemia de covid-19.

"Quando falei com ela um mês atrás, ela me disse que estava feliz por estar ali", afirma um dos seus supervisores online, que é instrutor de enfermagem da rede clandestina.

"Ela estava especialmente feliz por poder oferecer treinamento de primeiros socorros para os combatentes da Força na sua região, já que não existem outros profissionais da área médica por ali. Ela era a única capaz de prestar esse serviço para os combatentes", segundo o instrutor.

Aung San Suu Kyi, figura emblemática de Mianmar, tem muitos correligionários na região de Magway
Aung San Suu Kyi, figura emblemática de Mianmar, tem muitos correligionários na região de Magway
Foto: EPA / BBC News Brasil
Prisão de Aung San Suu Kyi durante golpe de 2021 causou enormes protestos em Mianmar
Prisão de Aung San Suu Kyi durante golpe de 2021 causou enormes protestos em Mianmar
Foto: AFP / BBC News Brasil

Zarli Naing passou seus últimos 14 meses de vida em uma aldeia chamada Dan Bin Gan, a convite de uma amiga, a professora Khin Hnin Wai. Ela tinha a mesma idade de Naing e trabalhava em uma escola administrada por um respeitado diretor chamado Win Kyaw.

Win Kyaw foi um importante líder local do movimento de desobediência civil, que apoiava o Governo de União Nacional — um governo paralelo formado em 2021 para confrontar o poder da junta militar.

Dan Bin Gan, de fato, era uma zona liberada. Lá havia um braço ativo da Força de Defesa do Povo, que estabeleceu sua base no centro da aldeia. Seus 2.500 habitantes, em sua maioria, são agricultores que trabalham muito para conseguir ganhar a vida cultivando feijão, gergelim, amendoim e um pouco de milho para alimentar o gado.

Essa parte de Mianmar é conhecida por sua profunda lealdade a Aung San Suu Kyi e seu partido, a Liga Nacional para a Democracia, que, na última eleição, conquistou todas as vagas da região de Magway nos Parlamentos local e nacional.

Aqui e no sul da região vizinha de Sagaing, a oposição ao golpe tem a mesma força de outras partes de Mianmar, com dezenas de milícias voluntárias enfrentando o Exército com armas capturadas e de fabricação doméstica, além de minas improvisadas.

A aldeia também fica a apenas 6 km da ponte de Sin Phyu Shin, um dos únicos cruzamentos rodoviários do rio Chindwin e que, por isso, é vital para movimentar tropas e outros reforços.

Zarli Naing oferecia o único tratamento médico disponível para as comunidades que não conseguiam mais usar o hospital local, que estava sob o controle dos militares, e também porque muitos médicos e enfermeiras abandonaram as instituições estatais depois do golpe.

Amigos e combatentes da Frente de Defesa do Povo que a conheceram contam que ela tinha profundo compromisso com a luta armada e dava aulas de primeiros socorros para os combatentes.

Pessoas que conheceram Zarli Naing contam que ela era apaixonada pelo seu trabalho e tinha esperanças de um futuro melhor para Mianmar
Pessoas que conheceram Zarli Naing contam que ela era apaixonada pelo seu trabalho e tinha esperanças de um futuro melhor para Mianmar
Foto: BBC News Brasil

"Zarli era muito forte", conta outro dos seus supervisores que mora no Reino Unido, de onde médicos fornecem apoio para a rede de saúde clandestina em Mianmar.

"Ela era sempre muito otimista. Nunca falava sobre suas próprias dificuldades. Ela só fazia perguntas quando precisava resolver alguma coisa."

"Os profissionais de saúde clandestinos podem ficar deprimidos com as dificuldades que enfrentam. Às vezes, seus pacientes não conseguem chegar até eles, devido a combates ou bloqueios nas estradas. E eles não podem encaminhar os pacientes que precisam de cirurgias mais complexas para os hospitais."

"É muito difícil para eles — muitos dos pacientes nessa situação não sobrevivem", descreve o supervisor.

Mas Zarli Naing "não expressava nenhum arrependimento pelo caminho que escolheu", afirma um amigo que trabalhou com ela no norte de Magway. "Muitas vezes, ela sentia falta da família. Ela nunca contou a eles o que estava fazendo. A família poderia ter ficado em perigo se soubesse que ela trabalhava para o movimento de desobediência civil."

"Costumávamos pedir doações para pessoas conhecidas, para pagar pelos remédios de que precisávamos. Muitas vezes, costumávamos falar juntos ao telefone e contar os problemas médicos que enfrentávamos, ou falar sobre o nosso apoio ao movimento", conta.

A julgar pelo seu perfil no Facebook, Naing parecia ser uma leitora ávida, postando capas coloridas dos romances birmaneses de que ela gostava. Suas fotos nessa rede social a retratam lendo ou mostrando nas mãos o desafiador símbolo de três dedos que se tornou tão popular no Sudeste asiático nos últimos anos.

Uma das postagens inclui uma série de fotografias de Aung San Suu Kyi muito mais jovem, com sua família no Reino Unido.

A fuga e a captura

No dia anterior à morte de Zarli Naing (9 de junho), três grupos da Força de Defesa do Povo lançaram um ataque conjunto ao posto militar da ponte de Sin Phyu Shin, matando três soldados e tomando o controle da ponte por algumas horas.

O contra-ataque dos militares era inevitável e, nas primeiras horas de 10 de junho, cerca de 30 soldados foram identificados em quatro veículos a caminho de Dan Bin Gan, vindo do leste.

Nem todos os soldados usavam uniformes, mas os que puderam ser identificados pelas suas insígnias eram dos batalhões de infantaria 256, 257 e 258, sediados em Hpu Lon, perto da cidade de Yesagyo, a cerca de 25 km ao sul.

Às três horas da manhã, moradores de Dan Bin Gan começaram a fugir da aldeia, em direção ao campo aberto a oeste. Zarli Naing estava entre eles.

Para retardar o Exército, os combatentes depositaram minas de fabricação doméstica ao longo da estrada para Dan Bin Gan. Um desses combatentes, Wu Khong, caiu e sofreu um ferimento na perna enquanto colocava as minas. Zarli Naing ficou com ele para tratar do ferimento.

Win Kyaw, que protegia a jovem enfermeira, também ficou para trás, além da amiga de Naing, Khin Hnin Wai, que estava grávida, e de outra mulher combatente, Thae Ei Ei Win.

Eles haviam corrido para o extremo oeste de Dan Bin Gan, segundo testemunhas, mas pararam para que Zarli Naing cuidasse do ferimento de Wu Khong quando foram interceptados por um grupo de soldados. Guiados por um informante, os soldados haviam chegado até lá pelo sul da aldeia, para evitar as minas.

Eles capturaram Zarli Naing e seus amigos, amarraram suas mãos e, junto com nove outras pessoas detidas, começaram a marchar para o norte por cerca de uma hora, até a aldeia de Thit Gyi Taw.

Testemunhas ouviram os soldados perguntarem aos prisioneiros se eles eram membros do movimento, alertando que eles poderiam ser presos ou mortos. Elas viram os soldados golpearem e chutarem repetidamente os prisioneiros, além de roubarem comida e bebidas alcoólicas nas casas das aldeias, que agora estavam vazias.

Segundo fontes da Frente de Defesa do Povo, eles também incendiaram 70 casas em Thit Gyi Taw, o que fez com que uma grande nuvem de fumaça preta subisse sobre os campos.

No fim da tarde, os prisioneiros foram levados um pouco mais para o sul, até um templo em uma aldeia chamada Peik Thit Kan. Nove deles foram então liberados e os soldados disseram a eles que saíssem correndo. Um deles contou que os cinco restantes, naquele ponto, ainda estavam vivos.

Não se sabe exatamente o que aconteceu depois com Zarli Naing e os outros quatro prisioneiros. Em algum momento da noite, eles foram levados para o sul de Peik Thit Kan e mortos pelos soldados.

Habitantes da aldeia relataram ter ouvido os prisioneiros gritando e pedindo ajuda. Mas não está claro quando e por que seus corpos foram esquartejados e queimados.

Os combatentes locais da Força de Defesa do Povo acreditam que os militares se dirigiram a Dan Bin Gan porque era conhecida como centro de resistência ao golpe e também devido à escola estabelecida na aldeia por Win Kyaw.

A escola havia acabado de abrir em maio, mas já havia atraído 250 alunos. Seu sucesso fez com que ela se tornasse uma vitrine para a administração paralela que o Governo da União Nacional está tentando estabelecer fora das regiões controladas pelos militares.

'Seria uma enfermeira maravilhosa'

A Força de Defesa do Povo acredita que o informante que viajava com os soldados tenha identificado Win Kyaw, Zarli Naing e Khin Hnin Wai como figuras importantes em Dan Bin Gan. Sua morte eliminou da aldeia e das comunidades vizinhas líderes que ajudavam a manter a insurgência.

Moradores locais construíram um memorial para Zarli Naing e os demais que foram mortos naquela noite
Moradores locais construíram um memorial para Zarli Naing e os demais que foram mortos naquela noite
Foto: BBC News Brasil

E também privou Mianmar de uma jovem e promissora enfermeira que, mesmo antes da desastrosa tomada de poder pelos militares, já tinha um dos piores sistemas de saúde da Ásia.

"Tenho certeza de que ela seria uma enfermeira maravilhosa", afirma seu instrutor online. "Ela sempre tentava de tudo para fazer bem seu trabalho."

"Imagine a situação. Ela estava prestando assistência médica para as pessoas da aldeia e, ao mesmo tempo, também fazia todos os nossos cursos online, mesmo sem acesso estável à internet onde ela estava. E também fazia o curso de bacharelado. A carga de trabalho era imensa."

"Eu mesmo não conseguiria fazer tudo isso. Ela era simplesmente maravilhosa. Um dos seus professores me disse que os resultados do sua prova foram muito bons", diz o instrutor. Zarli Naing havia concluído seus exames do primeiro semestre apenas dois dias antes de morrer.

Quando essa reportagem foi concluída, os habitantes de Dan Bin Gan ainda estavam escondidos na floresta a oeste da aldeia.

É a primeira vez que eles foram forçados a evacuar Dan Bin Gan, mas muitas outras aldeias naquela região já foram atacadas diversas vezes. Suas populações acabaram sendo repetidamente deslocadas, criando sérias necessidades humanitárias que não estão sendo atendidas, devido ao conflito e à falta de acesso às agências internacionais.

Milhares de casas no norte de Magway e no sul de Sagaing foram destruídas pelo Exército.

Por causa disso, mesmo quando se sentirem seguros para voltar, os moradores não terão recursos para reconstruir suas casas.

O golpe de 2021 desencadeou uma guerra com incontáveis perdas humanas e sem prazo para acabar. A história de Zarli Naing é apenas uma dentre tantas outras.

Mianmar - resumo

Mianmar é um país com 54 milhões de habitantes no sudeste asiático, que faz fronteira com Bangladesh, Índia, China, Tailândia e Laos.

O país foi governado por um regime militar opressivo entre 1962 e 2011. Quase todas as manifestações dissidentes foram proibidas, e acusações de severos abusos dos direitos humanos geraram condenações e sanções internacionais.

A ativista política Aung San Suu Kyi passou anos defendendo reformas democráticas. Em 2010, teve início uma liberalização gradual no país, mas os militares ainda mantiveram influência considerável.

Liderado por Suu Kyi, um novo governo chegou ao poder após eleições livres em 2015. Mas a forte repressão militar dos muçulmanos rohingya, dois anos depois, fez com que centenas de milhares de pessoas fugissem para Bangladesh, causando divergências entre Aung San Suu Kyi e a comunidade internacional.

Ela manteve sua popularidade doméstica e seu partido ganhou novamente por larga vantagem nas eleições de 2020, mas os militares tomaram o poder mais uma vez em seguida.

Todas as fotos desta reportagem estão sujeitas a direitos autorais.

- Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62210669

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