A esquerda pode estar renascendo na Europa?
Social-democratas, favoritos no pleito alemão deste domingo, estão no comando de todos os países da Escandinávia neste momento - uma região que costuma ser vanguarda de tendências políticas na Europa, explica cientista político.
Com a era Merkel chegando ao fim na Alemanha, a centro-esquerda está na dianteira para ganhar as eleições deste domingo (26/9) na maior economia da Europa.
As pesquisas de opinião dão a liderança ao Partido Social-Democrata (SPD), com uma vantagem - bem pequena, é bom destacar - sobre a aliança conservadora do partido de Merkel (CDU) com o CSU, representada pela candidatura de Armin Laschet.
Uma vitória do SPD dificilmente traria rupturas: o partido é integrante minoritário da coalizão no poder atualmente, e seu candidato, Olaf Scholz, é ministro das Finanças de Merkel.
Assim, um governo Scholz seria, de muitas formas, um de continuidade - embora abraçando propostas como aumento de impostos aos mais ricos e com mudanças importantes para a América Latina e o Brasil que detalharemos mais adiante.
Por enquanto, porém, o que mais chama atenção é que, se a vitória for confirmada neste domingo, vai reforçar um aparente ressurgimento da social-democracia na Europa.
Para além da Alemanha, a centro-esquerda voltou ao poder neste mês na Noruega, onde o Partido Trabalhista venceu os conservadores e agora está em negociações para tentar formar uma coalizão majoritária de governo.
Com essa troca de governo norueguesa, todos os países escandinavos - Noruega, Suécia, Dinamarca, Islândia e Finlândia - passarão a ficar sob governos social-democratas, algo que não acontecia desde o final dos anos 1950. Além disso, Portugal e Espanha também são governados por partidos de centro-esquerda.
Bastião da social-democracia na Europa, com suas enraizadas políticas de bem-estar social, a Escandinávia é um exemplo importante.
Isso porque essa região também foi a que esteve na vanguarda do avanço de partidos e de políticos populistas no continente europeu, alguns anos atrás - e agora faz um regresso à centro-esquerda, explica à BBC News Brasil o cientista político Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e doutor pela Universidade de Oxford.
"Muita gente se antecipou e declarou a centro-esquerda como morta, e isso não aconteceu, exceto em países como França e Itália, onde ela realmente faliu", diz Alencastro. "Mas ela segue na Escandinávia, na Península Ibérica (Portugal e Espanha) e, agora, na Alemanha."
Para ele, muitos partidos novos, de populismo de esquerda e direita, viveram um momento de ascensão na Europa, mas não conseguiram se consolidar como gestores da máquina pública.
Em entrevista recente à agência France Presse, a pesquisadora Elisabeth Ivarsflaten, da Universidade de Bergen, na Noruega, apontou que o Partido Trabalhista norueguês parece ter se beneficiado de um anseio por um Estado mais forte e por menos desigualdades, sentimento impulsionado pela pandemia de covid-19.
Para Alencastro, o que a crise provocada pela pandemia faz, essencialmente, é "reforçar partidos muito vinculados à capacidade de administração do Estado".
"A experiência volta a ser uma característica valorizada", afirma ele.
Ascensão e queda da centro-esquerda europeia
A social-democracia costuma estar associada a um Estado maior e mais forte, seja com programas de bem-estar social (pagamento de benefícios ou fortalecimento de educação e saúde públicas, por exemplo), seja com uma ação regulatória mais presente.
Partidos social-democratas tiveram forte presença na Europa ao longo do século 20, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, mas perderam ímpeto - e eleitorado - nos últimos anos.
"Em seu auge, partidos ou coalizões com líderes (social-democratas) governavam 12 dos então 15 países da União Europeia" no final dos anos 1990, explicam os pesquisadores James F Dowes e Edward Chan em um artigo de 2018 publicado pela London School of Economics em seu blog.
"No entanto, em 2006, o número de governos liderados pela esquerda nesses países caiu para menos de cinco."
Os autores atribuem essa "erosão", no final dos anos 1990 ao início dos anos 2000, a um viés mais centrista da social-democracia nesse período e a uma "escassez de ideias" para lidar com os problemas da população, o que lhes teria feito perder sua base mais tradicional de eleitores, formada por trabalhadores.
Depois, veio a crise financeira de 2008, que fez os países europeus adotarem políticas fiscais cada vez mais rígidas - e fazendo minguar alguns programas de bem-estar estatais.
"Os social-democratas parecem ter sofrido as maiores consequências da crise econômica, com muitos deles perdendo eleitoralmente", prosseguem os autores.
Outro fator-chave, segundo eles, é a crise migratória que varreu a Europa (e que ainda está em curso) e "levou a um colapso sistemático de diversos partidos social-democratas europeus".
Eleitores descontentes e temerosos dessa onda migratória se voltaram, em parte, para partidos populistas, de esquerda ou, sobretudo, de direita.
"O declínio eleitoral da social-democracia no século 21 demonstra como eles perderam a compreensão da situação socioeconômica moderna, com eleitores buscando partidos mais radicais", escreveram os pesquisadores em 2018.
O que, então, mudou agora?
Adaptação aos novos tempos
Para voltar ao poder, a centro-esquerda precisou, de algum modo, se adaptar às pressões atuais e da direita, apontam analistas.
Na Dinamarca, por exemplo, o governo social-democrata manteve políticas antimigratórias rígidas caras ao eleitorado direitista, explicou à France Presse a acadêmica Elisabeth Ivarsflaten.
Na Alemanha, "o fato de Olaf Scholz ter a disciplina fiscal como promessa de campanha mostra a universalização de agendas típicas da direita", complementa Alencastro à BBC News Brasil.
"(A centro-esquerda) teve que abraçar bandeiras nacionalistas incompatíveis com seus valores universais."
Além disso, até agora, essas novas forças social-democratas não necessariamente vão contar com apoio popular excepcionalmente alto - pelo contrário, em um cenário de alta fragmentação partidária, seguem dependendo de coalizões para governar.
"Os social-democratas costumavam ser muito mais fortes, mas agora há uma fragmentação, e não há mais grandes partidos", disse ao jornal britânico Financial Times o ex-premiê sueco Carl Bildt, político alinhado à centro direita, ao comentar a vitória da centro-esquerda na Noruega.
E a fragmentação, agregou Buildt, "torna a governança uma tarefa mais difícil".
Por fim, a centro-esquerda que volta a emergir agora não passou por um processo de renovação geracional - não há grandes nomes novos em ascensão, por exemplo - nem por significativas modernizações de seus projetos de governo, explica Mathias Alencastro.
Sendo assim, uma leitura possível é de que estão voltando ao poder menos por seus próprios méritos, e mais por uma desilusão do eleitorado com as demais alternativas.
"É uma demonstração de fraqueza do projeto populista", opina o cientista político brasileiro.
O que muda para o Brasil e a América Latina
Dito isso, Alencastro vê implicações importantes para o Brasil e a América Latina, sobretudo com a possível troca de partidos no comando da Alemanha.
"Do ponto fiscal ou gerencial, um governo de Olaf Scholz muda pouco" em relação ao governo Merkel, ele avalia.
"Mas os social-democratas devem ter uma orientação mais universalista do que Merkel", que manteve-se distante da América Latina em favor dos laços alemães fortes com a Europa e a Ásia.
"Talvez Scholz olhe a América Latina e o Brasil com mais interesse, porque (seu partido) SPD tem grande tradição de integração com a centro-esquerda daqui."
Alencastro também antevê, em um eventual governo Scholz, ainda mais ênfase nas mudanças climáticas como um pilar da diplomacia alemã - o que aumentaria ainda mais a pressão europeia sobre o avanço do desmatamento brasileiro registrado sob o governo de Jair Bolsonaro.
Isso pode ser reforçado com o Partido Verde alemão, atualmente em terceiro lugar nas pesquisas de opinião e que pode acabar compondo uma futura coalizão do governo no país.