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A estranha normalidade em meio à guerra na Síria

22 dez 2014 - 08h11
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A escritora britânica Diana Darke viajou de Londres para a Síria para recuperar sua casa, que estava caindo na mão de aproveitadores. Apesar de quatro anos de conflito que castigam a sociedade síria, ela reencontrou amigos e vizinhos vivendo surpreendentemente bem e até se divertindo em Damasco. Confira abaixo seu relato.

"Nada em Damasco correu como esperado.

Antes de viajar, preparei-me para a escassez de comida prometendo a mim mesma que comeria pouco durante a viagem. No entanto, enquanto os subúrbios sitiados de Damasco morrem de fome, os mercados centrais da capital abundam de alimentos.

As bancas de frutas da Sharia al-Amin ostentam bananas da Somália. O mercado de especiarias de Bzouriye vende açafrão de alta qualidade do Irã e nozes do Afeganistão. Vinho e cerveja libaneses também estão disponíveis. Os preços estão mais elevados do que antes, mas ainda assim bastante acessíveis para a maioria das pessoas.

Esmagados entre os postos de controle altamente armados, os carrinhos de rua vendendo sakhlab, uma bebida doce e espessa de Aleppo, estão por todos os cantos. Cafés e lojas de doces esbanjam guloseimas e sorvetes.

A julgar pela quantidade de guimbas de cigarros nas calçadas, a taxa de fumantes, sempre alta, está mais elevada que nunca. Na principal rua de Souq al-Hamidiya, as lojas de roupas estão lotadas de clientes.

Esporadicamente, tanto de dia quanto de noite, os bombardeios são ensurdecedores.

A artilharia do presidente Bashar al-Assad parte do Monte Qassioun, acima da cidade, em direção à região de Ghouta oriental - cena do ataque químico do ano passado, onde ainda existem bolsões de resistência contra o governo.

Alguns vilarejos sofreram com o bloqueio de alimentos nos últimos 18 meses.

Porém, no fim das contas, há muito menos barulho e confusão do que há um ano.

Por esse ponto de vista, a vida em Damasco vem ficando, gradualmente, melhor. Mas por outro lado, a vida vem piorando.

Além dos 3,5 milhões que saíram do país como refugiados, mais 7,5 milhões de pessoas foram deslocadas internamente. Somados, representam quase a metade de toda a população síria.

Moradias fantasmas

Casas abandonadas, se não tiverem sido derrubadas ou bombardeadas, estão suscetíveis à invasão de grupos. Geralmente, os donos não têm ideia de quem se mudou para lá e é muito perigoso voltar para descobrir.

Quase sempre, mas raramente noticiado, as casas sírias são tomadas por aproveitadores, que exploram a debilidade ou ausência de seus moradores.

Minha própria casa, no bairro islâmico na cidade antiga de Damasco, comprada e reformada em 2005, foi vítima de aproveitadores alguns meses atrás.

Durante dois anos, entre os verões de 2012 e 2014, minha casa foi habitada, com o meu consentimento, por amigos que tiveram suas casas destruídas nos subúrbios. Agora, eles foram expulsos de lá pelo meu ex-advogado e pelo antigo proprietário que, coniventes, planejavam tomá-la e dividi-la meio a meio.

Determinada a recuperá-la, voltei recentemente a Damasco e, depois de quinze dias extenuantes, consegui reavê-la. Surpreendentemente, os processos podem andar bem rápido na Síria. Em um dia, encontrei o juiz. No outro, a casa foi inspecionada.

Entre muitos momentos dramáticos e turbulentos, a casa foi palco de dois arrombamentos, seis trocas de fechaduras, a instalação de duas portas de metal e a revelação de um relatório de segurança falso, que resultou na expulsão dos meus amigos.

São retratos da quase normalidade da vida em um país em conflito.

Jantei com uma amiga cujo carro foi destruído em um ataque aleatório com morteiro. Ela me explicou que passou a acompanhar de taxi seu sobrinho de 16 anos para tocar na orquestra da Opera Dar al-Assad. Para ter certeza de que, no caminho, ele não será cooptado e forçado a se alistar no Exército.

Quando passam pelos postos de controle, ela esconde, entre as pernas, o violoncelo do sobrinho para que o instrumento não seja confiscado pelos guardas.

Um outro amigo trabalha para a estatal de energia. Sua função é consertar os cabos elétricos danificados durante o conflito. Durante um almoço em sua casa em companhia de sua família, ele me conta que um de seus colegas pisou em uma mina terrestre e explodiu em pedaços bem à sua frente. Ele recebeu estilhaços no intestino.

Meu amigo passou duas semanas no hospital e duas semanas em casa de repouso, se recuperando. Assim que melhorou, voltou ao trabalho. Para ele, quem danifica a infraestrutura síria está ferindo o povo.

Infância em conflito

As ruelas da cidade antiga estão cheias de crianças jogando futebol. Muitas delas frequentam a escola na esquina da minha casa.

A cidade está inchada: alguns especialistas calculam que a população de Damasco aumentou de 4 para 7 milhões por causa do deslocamento interno de refugiados.

As aulas nas escolas vão das 11h às 15h, com um turno antes e outro depois desses horários. Cada sala tem cerca de 60 alunos, mas o entusiasmo dos alunos em aprender não diminui por causa disso.

O único grupo de estrangeiros que encontrei nas ruas eram iraquianos xiitas sendo levados para visitar santuários por um guia segurando uma placa laranja em formato de pirulito.

Quando encontrei um velho amigo que ainda trabalha, todos os dias, em seu escritório no Ministério do Turismo, ele me explicou que esse tipo de turismo religioso é a única coisa que restou. Hoje são cerca de 200 mil peregrinos por ano. Em 2010, foram 8,2 milhões de turistas estrangeiros.

Ele não expressa opiniões políticas. Meu amigo se considera apenas uma pessoa que optou por ficar no governo e continuar fazendo seu trabalho, como outras milhões de pessoas.

Em todo o país, mesmo em Raqqa, todos os funcionários do governo agora sacam seus salários diretamente dos caixas eletrônicos, em dias específicos, causando imensas filas nos bancos.

Nas duas últimas noites, quando finalmente pude dormir na minha casa na cidade antiga de Damasco, vivi o que todos vivem rotineiramente: quatro horas de eletricidade por dia, falta de gás e de água quente, água fria e limitada.

Foi difícil, mas estranhamente revigorante, atravessar o pátio gelado para me lavar em água gelada, aliviada em saber que estava rodeada de vizinhos calorosos. Sem eles, eu não teria conseguido retomar a minha casa. Eles me protegeram e me ajudaram em todos os momentos.

Melhor e pior

A crise traz à tona o melhor e o pior das pessoas. O que eu descobri em Damasco é que gentileza genuína, humanidade compartilhada e um extraordinário senso de humor ainda estão vivos.

Cidadãos sírios honestos estão dando o seu melhor na luta contra a imoralidade e corrupção. A moralidade, apesar de tudo, ainda está em alta. As risadas mantém o povo são.

Ninguém fala em sectarismo. Da'ish, um termo pejorativo baseado em um acrônimo do Estado Islâmico, foi condenado nacionalmente.

Daqui a pouco, a guerra chega ao seu quinto ano e o número de aproveitadores gananciosos tende a aumentar. Impossível dizer se a camaradagem nos bairros continuará a mesma. Porém, depois destas semanas em Damasco, estou mais otimista do que antes.

Agraciada com muitos locais históricos, a Síria está vendo seu patrimônio cultural ser vandalizado, saqueado e destruído pela guerra. No entanto, voluntários estão fazendo o que podem para diminuir os danos e salvar a identidade cultural do país."

Diana Darke é autora do livro My House in Damascus: An Inside View of the Syrian Revolution (Minha Casa em Damasco: Um Olhar Interno da Revolução na Síria, em tradução livre). Fluente em árabe, ela tem mais de 30 anos de experiência no Oriente Médio.

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