A forma única de conhecer o lado secreto de Veneza
Menores e precursores das gôndolas, os 'sandoli' permitem aos turistas conhecer cantos de Veneza que outros barcos não alcançam: "Você saboreia totalmente a história"
São nove horas da manhã em Veneza, na Itália. A paz do silêncio envolve as ruas estreitas e os canais da cidade.
Visitantes que vão passar um dia na cidade começam a descer na lagoa, enquanto Luca Padoan se inclina contra uma parede, perto do rio della Misericordia - um dos canais que cortam o antigo gueto judeu.
Ele observa o bairro despertar com seus óculos escuros. Alguns turistas se aproximam, perguntando cautelosamente se podem fotografar o barco sandolo artesanal, atracado à sua esquerda.
"Sempre explico que ele não é uma gôndola, mas sim seu progenitor", conta Padoan, acariciando o remo.
As inúmeras gôndolas ornamentadas que navegam pelos canais da cidade são um sinônimo de Veneza. Mas muito poucas pessoas já ouviram falar do parente menos conhecido da tradicional embarcação - o sandolo, que, no passado, era comum em Veneza.
Caracterizado por uma "onda" de aço sobre a proa e tipicamente pintado de preto, o sandolo é um barco a remo com fundo plano, historicamente utilizado para navegar pelas águas rasas da lagoa e para transportar pessoas e mercadorias de Veneza para o continente.
"Se você não conhecer as origens da cidade e sua evolução, não irá conseguir explicar a importância histórica do sandolo", afirma Valentino Scarpa, supervisor das nove stazi (estações) onde os barcos do tipo sandolo continuam a transportar venezianos e turistas pelos canais hoje em dia.
"A profundidade média da lagoa [no passado, era incrivelmente rasa]", explica ele. "Com um barco normal, você não conseguia chegar até lá."
As primeiras referências escritas aos sandoli (o plural de sandolo, em italiano) datam de 1292.
Ao contrário das gôndolas, que sempre foram empregadas para transporte, os sandoli eram historicamente utilizados para pescar, disputar corrida e caçar, além de transportar pessoas e materiais de construção através da lagoa.
Os sandoli são um pouco mais curtos, mais largos e menos ornamentados que suas colegas mais populares. As gôndolas possuem tipicamente duas extremidades pontiagudas: um arco em forma de "S", que ilustra o formato sinuoso do Grande Canal que corta a cidade, e a popa de ferro. Já os sandoli têm uma proa pintada e uma popa plana e aberta - e são menos suntuosos.
Estas diferenças físicas têm propósitos práticos. Na gôndola, o remador costuma ficar em um dos lados. Já o fundo simétrico do sandolo permite que ele fique no meio do barco.
Esta posição centralizada do remador oferece melhor distribuição do peso, o que aumenta a velocidade. E seu projeto simétrico permite que o sandolo transporte cargas mais pesadas do que a gôndola, com menor risco de virar.
Como as gôndolas, os sandoli são normalmente dirigidos com um remo, mas também podem ser empregados dois remos ao mesmo tempo.
Conhecida como voga alla vaesana, em dialeto veneziano, esta técnica foi empregada ao longo da história em áreas da lagoa como Caorle, Marano e Grado, para praticar a chamada valicultura, um método medieval de criação de peixes pioneiro na lagoa veneziana.
"Historicamente, todas as famílias tinham um sandolo", conta o remador de sandolo Livio Bon. "Era o meio empregado na cidade para transportar as pessoas, procurar alimento, pescar e transportar materiais."
Mas o supervisor Valentino Scarpa explica que, quando os venezianos começaram a perceber que a gôndola é mais fácil de dirigir do que o sandolo, os barcos antigos começaram a ser substituídos.
"É claro que poder dirigir com dois remos [no sandolo] é uma evolução, já que permite navegar com mais rapidez", conta Scarpa. "Mas a gôndola, por ser assimétrica, é mais controlável e mais fácil de remar nos canais pequenos."
"A gôndola [se tornou] cada vez mais popular, o que levou à autorização de mais gôndolas. Por isso, a categoria de gondoleiro ficou dominante, e o número de sandoli na lagoa diminuiu."
Atualmente, existem apenas 20 sandolisti (remadores de sandolo) em Veneza, contra 433 gondolieri (gondoleiros).
Mas, para os poucos sandolisti remanescentes, viajar pelo canal em um sandolo é uma forma única de vivenciar a história de Veneza.
A maioria acredita que o projeto do barco inspirou a gôndola. Por isso, ele ocupa uma posição de destaque entre muitos venezianos nostálgicos.
E, mais do que isso, o sandolo pode explorar regiões da cidade que as gôndolas não alcançam. Afinal, as gôndolas são autorizadas a atravessar as regiões onde ficam as nove estações, mas apenas os sandoli podem se aventurar através delas.
Por isso, passear de sandolo oferece aos turistas a oportunidade única de visitar marcos históricos menos concorridos de Veneza, como o Gueto Judeu, a Ponte dei Greci e a Ponte dell'Olio, entre outros.
E, por ser menor que a gôndola, o sandolo pode navegar por canais mais estreitos, até bolsões menos explorados da cidade.
"É um trabalho puramente tradicional, passado de geração em geração, que conta a história de Veneza", afirma Chiara Favaro, filha de um remador de sandolo.
"Quando você está em um [sandolo], você observa a cidade com outros olhos - uma Veneza oculta, autêntica. O sandolista pode contar coisas que o guia de turismo não sabe, pois muitas histórias costumam ser passadas do avô para o pai e para o filho."
Foi o caso de Luca Padoan. Ele tem 53 anos de idade e conta sua história, enquanto se senta no banco acolchoado do seu sandolo.
"Comecei quando tinha sete anos, com meu avô, que tinha um barco parecido, que usávamos para pescar. Faço [agora] este trabalho há 26 anos."
"A partir de novembro, vou me dedicar à manutenção do barco. Eu pinto de novo, enquanto minha mãe conserta o acolchoamento. É um negócio de família."
Em março, com a chegada da primavera na Itália, é hora de voltar a remar.
Como Padoan, Scarpa conheceu o trabalho muito jovem. Também aos sete anos, ele passava os fins de semana aprendendo a remar com seu pai. E, depois de cursar a universidade, ele voltou a Veneza para aprimorar a técnica.
Hoje em dia, nem todos desejam dar continuidade ao tradicional negócio da família. A queda da atividade entre as gerações também abriu a porta para a entrada de novos remadores, oriundos de famílias, até então, sem a histórica tradição dos sandolisti.
A prefeitura de Veneza promove concursos para que candidatos a sandolisti possam solicitar licenças para entrar na profissão. Para se qualificarem, os candidatos devem fazer um curso de navegação profissional e precisam ser aprovados em um teste de nado e remo.
"No começo, eu consertava aparelhos domésticos, depois trabalhei como motorista de táxi e, então, voltei ao conserto de aparelhos", conta outro sandolista, Mariano Pozzobon. Ele enxuga o rosto com um lenço azul, depois de voltar de um passeio com turistas.
"Cheguei aqui através dos meus amigos e, agora, faço este trabalho há 30 anos."
Outros sandolisti concordam que não existe outro trabalho que eles prefiram fazer. Operar os barcos tipicamente venezianos é mais do que uma simples profissão.
"Cada barco é um mundo próprio", afirma Valentino Scarpa. "[É] um trabalho familiar e o amor é passado através das gerações."
"Não é apenas um emprego com retorno econômico, mas uma paixão. É um trabalho que você só encontra aqui - e faz você se sentir ainda mais veneziano."
"Quando [os turistas] saem do barco, eles precisam estar em êxtase", explica Livio Bon, enquanto ajuda um casal francês a se acomodar no seu sandolo.
"Eles precisam sentir o som da água dos canais nos seus ouvidos, a brisa no pescoço, o barco balançando sob o peso do condutor. Eles precisam respirar a beleza."
"O sandolo permite que você saboreie totalmente a história de Veneza."
Para passear de sandolo
Os sandoli de Veneza saem de nove stazi (estações). Os preços são os mesmos dos passeios de gôndola.
Das nove às 10 horas da manhã, o passeio dura 30 minutos e custa 90 euros (cerca de R$ 553) por barco. O preço pode ser dividido entre os passageiros, com lotação máxima de cinco pessoas. Das 19 h às quatro horas da manhã, os passeios duram 35 minutos e custam 110 euros (cerca de R$ 675).
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.