A lei que pode tirar da prisão militares que cometeram crimes durante ditadura no Uruguai
Os senadores do Uruguai aprovaram uma nova lei que vai permitir que criminosos com mais de 65 anos sejam libertados da cadeia para cumprir pena domiciliar. A legislação pode beneficiar militares condenados por crimes durante a ditadura que governou o país por 12 anos.
Militares condenados por violações de direitos humanos durante a ditadura do Uruguai, que durou de 1973 a 1985, vão poder em breve cumprir suas penas em casa.
Os senadores do país aprovaram uma nova lei que - se aprovada em definitivo pela Câmara dos Deputados - vai permitir que criminosos com mais de 65 anos sejam libertados da cadeia para cumprir pena domiciliar.
Organizações que representam as vítimas da ditadura descrevem o projeto como "um grande retrocesso".
Patricia López, da Associação de Mães e Familiares de Pessoas Desaparecidas do Uruguai, chama a nova lei de "moralmente inaceitável". "Temos visto tão pouca justiça para as vítimas da ditadura e esta lei é um grande revés", diz.
Os defensores da lei dizem que ela é uma "medida humanitária" que beneficiará não apenas pessoas com mais de 65 anos, mas também mães e mulheres grávidas que estão atualmente na prisão.
Carmen Asiaín é uma das senadoras que votou a favor do projeto. Ela diz que os parlamentares tiveram "o cuidado de respeitar as convenções internacionais de direitos humanos e de não criar situações de impunidade".
De acordo com o projeto, observa a senadora do Partido Nacional, os condenados com mais de 65 anos só poderão cumprir a pena em prisão domiciliar se um juiz concordar que a sua saúde física ou mental é tão frágil que permanecer no presídio afetaria sua "dignidade humana".
Embora condenados por crimes contra a humanidade sejam excluídos da medida, ativistas de direitos humanos argumentam que a maioria dos oficiais uruguaios foram condenados por crimes "menos graves", como homicídio ou lesões corporais, e, portanto, podem ser beneficiados caso a legislação seja aprovada em definitivo.
Milhares de pessoas foram torturadas e 197 pessoas desapareceram à força durante o regime militar do Uruguai, segundo dados do governo do Uruguai. Outras 202 pessoas foram vítimas de execuções extrajudiciais entre 1968 e 1985.
A pesquisadora Francesca Lessa, acadêmica da University College London, passou anos recolhendo dados sobre os crimes cometidos durante os 12 anos de ditadura do Uruguai e acompanhou as tentativas de levar os responsáveis à justiça. A ONG de direitos humanos Observatório Luz Ibarburu também participou do trabalho.
O Uruguai retomou a democracia em 1985, mas uma lei de imunidade anistiou integrantes das forças armadas acusados de violações dos direitos humanos. Isso durou até 2011.
Até essa data, apenas 28 pessoas haviam sido condenadas por abusos durante a ditadura.
Pablo Chargoñia, do Observatório Luz Ibarburu, afirma que o novo projeto de lei pode fazer com que os poucos policiais condenados sejam mandados para casa.
O tempo também está contra quem tenta investigar os crimes da ditadura. O golpe que deu início ao regime militar ocorreu há 50 anos e muitos dos envolvidos morreram antes de serem processados, explica Chargoñia.
Além de tentar processar os golpistas, grupos de direitos humanos tentam descobrir o que aconteceu com os "desaparecidos", pessoas que foram sequestradas pelo regime.
As entidades pediram às Forças Armadas do Uruguai que divulgassem informações sobre o paradeiro dessas pessoas. Mas até agora, dos 197 uruguaios considerados desaparecidos, apenas foram encontrados os restos mortais de 31.
A busca é complicada pelo fato de muitos terem sido vítimas de um plano secreto denominado Operação Condor, no qual as ditaduras da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai trabalharam em conjunto para localizar os seus opositores nas fronteiras.
Vinte e cinco dos 31 corpos foram encontrados na Argentina, mostrando até que ponto as ditaduras dos dois países vizinhos colaboraram entre si.
Embora a maioria dos desaparecidos há décadas sejam considerados mortos, os sobreviventes da Operação Condor conseguiram fornecer informações sobre como funcionavam os regimes militares.
Sara Méndez é uma dessas pessoas. Na década de 1970, a ativista e professora uruguaia vivia exilada na capital argentina, Buenos Aires.
Bebês retirados das mães
Em 13 de julho de 1976, ela foi sequestrada em uma operação conjunta das forças armadas uruguaia e argentina. Enquanto homens armados a empurravam com os olhos vendados para dentro de um carro, deixaram para trás o seu filho, nascido três semanas antes.
Sara foi levada para uma casa de tortura secreta em Buenos Aires, antes de ser enviada de volta ao Uruguai, onde ficou presa por cinco anos.
Ela passou os 25 anos seguintes procurando seu filho, Aníbal Mendez, antes de finalmente encontrá-lo em 2002, na Argentina. Aníbal havia sido adotado por um comandante de polícia em Buenos Aires e nada sabia sobre seus passado.
Quando Aníbal tinha 25 anos, o homem que ele pensava ser seu pai lhe contou que ele era adotado:
"Ele disse que um bebê havia sido abandonado em uma clínica local. Ouvi a versão dele, mas não acreditei", diz Aníbal, hoje com 47 anos.
Aníbal concordou em fazer um teste de DNA, que confirmou que Sara é sua mãe. Ele e Sara passaram os últimos 20 anos construindo um relacionamento.
"No começo foi muito difícil. Imagine, uma pessoa que não te criou, que você acabou de conhecer, mas que você sabe que é sua mãe biológica, isso foi algo que tivemos que superar", explica.
Aníbal também teve que lidar com sentimentos conflitantes pelo casal que o criou.
"Tenho muita certeza de que essas duas pessoas que me criaram cometeram este crime terrível de pegar um bebê e mudar sua identidade. Mas não vou apagar esse amor que eles me deram nem o amor que também senti por eles."
Sara diz que se reconectar com o filho "demorou muitos anos de trabalho".
Estima-se que 500 bebês foram retirados de mulheres presas políticas como Sara durante a ditadura argentina. Dessas, 133 depois reencontraram suas famílias biológicas.
Mas os roubos de bebês deixaram um legado de traumas complexos.
"Penso que o roubo de bebês foi uma das coisas mais cruéis que estas ditaduras fizeram. A captura de uma criança por pessoas que faziam parte de um aparelho repressivo que perseguiu, torturou e matou seus pais", diz Sara.
Ela está preocupada com o fato de a proposta de lei que atualmente tramita no Congresso do Uruguai "não faça distinção entre crimes comuns e crimes cometidos pelo Estado".
Ela também acha que o projeto "não leva em consideração a opinião da vítima na hora de decidir qualquer modificação do regime prisional dos militares condenados".
Três militares reformados e um policial cumprem atualmente penas no Uruguai em conexão com o sequestro e tortura de Sara Méndez.
Um deles já foi colocado em prisão domiciliar. Se o projeto for aprovado, os outros também poderão cumprir suas penas em casa.