A luta de sobreviventes contra padre acusado de tortura na ditadura argentina
Sobreviventes de crimes cometidos por militares nos anos 1970 na Argentina lutam para que um padre seja julgado por seu suposto papel em sequestros e tortura contra opositores do regime.
Sobreviventes de crimes cometidos por militares nos anos 1970 na Argentina lutam para que um padre seja julgado por seu suposto papel em sequestros e tortura contra opositores do regime.
O caso mostra que as feridas causadas pelo golpe militar ainda estão longe de cicatrizadas.
"No momento em que vi entrar Franco Reverberi, o padre do meu vilarejo, eu achei que fosse morrer", recorda Mario Bracamonte.
O fato de um clérigo visitá-lo em sua cela de prisão no norte da Argentina não era reconfortante.
"Eu estava deitado no chão encharcado de sangue depois de uma noite de tortura. Ele entrou vestido com seu uniforme militar e me olhou impassível. Eu não conseguia acreditar."
Mario Bracamonte foi um dos milhares de argentinos sequestrados por soldados após o golpe militar de 24 de março de 1976.
Liderada por Jorge Videla, a junta militar que tomou o poder tinha como alvo qualquer pessoa que se opusesse à ditadura. Cerca de 30 mil pessoas foram mortas até a transição para a democracia, em 1983.
Mario, que tinha 28 anos na época, acabou na mira dos soldados por seu ativismo de esquerda.
Como milhares de outras pessoas, ele foi levado para um centro de detenção clandestino onde supostos opositores do regime seriam torturados.
Muitos foram mortos, alguns nos chamados "voos da morte", quando as vítimas eram drogadas e atiradas de helicópteros e aviões ao mar ainda vivas.
Mário sobreviveu a esse período sombrio.
Depois de ser transferido para outros centros de detenção clandestinos em Mendoza e La Plata, foi finalmente solto em 4 de março de 1977, quase um ano após sua prisão.
Sua esposa Titi, que estava presa no centro de detenção La Departamental, em sua cidade natal, San Rafael, também sobreviveu.
Casados anos antes de serem presos, eles não falaram sobre o tempo que passaram no cativeiro nem em público, nem um com o outro, até 2010.
Nesse ano, Franco Reverberi foi intimado a comparecer a um julgamento contra soldados acusados por crimes cometidos durante o regime militar — mas não como acusado, e sim como testemunha.
No entanto, durante esse julgamento, quatro ex-detentos — entre eles Mario Bracamonte — testemunharam que o Padre Franco Reverberi, de nacionalidade italiana de nascimento, havia frequentado regularmente o centro de detenção clandestino.
Eles disseram que, em vez de ajudar os prisioneiros, ele os observava sendo torturados, às vezes segurando uma Bíblia, enquanto dizia que era a vontade de Deus que eles fornecessem aos seus torturadores as informações que procuravam.
Depois do depoimento dos quatro ex-detidos, Franco Reverberi, que negou qualquer irregularidade, foi formalmente acusado em outubro de 2010.
Ele não foi o primeiro membro do clero católico a ser acusado de colaborar ativamente com a junta militar argentina.
Em 2007, Christian von Wernich, um padre católico que trabalhava como capelão da polícia em Buenos Aires, foi considerado culpado por cumplicidade em sete assassinatos e dezenas de sequestros e casos de tortura.
Ele foi condenado à prisão perpétua.
Franco Reverberi, no entanto, nunca compareceu ao tribunal. O padre embarcou num voo para o seu país de origem em maio de 2011.
Quando foi convocado para dar a sua versão dos acontecimentos, em junho de 2011, ele estava fora do alcance do judiciário argentino.
Ele foi para Sorbolo, uma pequena cidade no norte da Itália, de onde a família do padre emigrou quando ele tinha apenas 11 anos.
Lá ele celebra missas regularmente e muitos dos 10 mil moradores da cidade preferem não falar sobre as acusações que foram levantadas contra o padre.
Ilaria, uma atriz nascida em Sorbolo, diz que só soube das denúncias em 2021, enquanto ouvia um programa de rádio.
"Para mim foi um choque e achei que ninguém soubesse. Quando comecei a perguntar e notei que quase todo mundo sabia, me senti ainda pior: já não reconhecia a minha própria vizinhança", diz a mulher de 49 anos.
Lorenza Ramazzotti diz que alguns se uniram a favor do padre.
"A comunidade está dividida", explica a ex-professora de 69 anos, acrescentando que ela própria está convencida de que "se uma pessoa é inocente, como Reverberi afirma ser, essa pessoa não foge".
"E se ele realmente cometeu crimes tão hediondos quanto aqueles de que é acusado, me pergunto como ele pode continuar a ser padre com esse peso na consciência", acrescenta ela.
O estudante Manuel Furlan, de 25 anos, diz que ficou "profundamente envergonhado" quando descobriu que "uma pessoa acusada daqueles crimes, e ainda por cima um padre, era originária e vive no meu vilarejo".
Furlan quer que Franco Reverberi seja extraditado para a Argentina para que possa ser julgado "e considerado culpado ou inocente".
A Argentina há tempo muito solicita que o padre seja enviado de volta para ser julgado.
Mas o homem, hoje com 85 anos, que sempre afirmou ser inocente, resistiu com sucesso a uma tentativa de extradição.
Ele sempre negou ter fugido para a Itália para escapar da Justiça, dizendo que na verdade voltou ao seu país de origem para uma visita e depois não conseguiu retornar à Argentina por conta de sua saúde debilitada.
Em 2021, um segundo pedido de extradição foi apresentado pelo advogado argentino Richard Ermili.
Ermili diz que as provas contra o padre são "sólidas".
O pedido de extradição de 2021 também acusa Franco Reverberi de envolvimento no assassinato de José Guillermo Berón, um cidadão argentino desaparecido em 1976 aos 20 anos.
No início deste mês, o ministro da Justiça italiano assinou este segundo pedido de extradição depois de ele ter sido aprovado pelo mais alto tribunal italiano.
Mas o advogado de Franco Reverberi já havia interposto um recurso, o que significa que o processo permanece atualmente paralisado enquanto se aguarda o resultado do recurso.
A BBC entrou em contato com o advogado de Franco Reverberi, mas ainda não recebeu resposta.
Para Mario Bracamonte, o dia da extradição do padre não deve chegar tão cedo.
"Tenho quase 80 anos. Quero poder olhá-lo nos olhos e perguntar onde estão os corpos dos outros ativistas que desapareceram", afirma.
É um sentimento ecoado por Laura Berón.
A sobrinha do ativista desaparecido José Guillermo Berón diz esperar que "a Justiça seja finalmente feita, mesmo que ele nunca pague realmente pelos enormes danos que causou, já que viveu quase toda a sua vida com total impunidade".