A vida e carreira de Javier Milei, o novo presidente eleito da Argentina
Economista ultraliberal prometeu se distanciar da China, país que investiu consideravelmente na Argentina nos últimos anos, e do Brasil, já que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é de esquerda.
Javier Milei — O Leão, O Rei, O Louco, o Avis Rara —, líder da coalizão A Liberdade Avança, o homem que prometeu revolucionar tudo para transformar a Argentina novamente em uma potência global, foi eleito presidente neste domingo (19/11).
O rival Sergio Massa concedeu a vitória ao anarcocapitalista em discurso poucas horas depois, mesmo antes do resultado oficial. A contagem de votos segue e dá no momento uma vantagem de quase 12 pontos percentuais de Milei sobre Massa.
A posse do novo presidente argentino está marcada para o dia 10 de dezembro.
As propostas de Milei são descritas como "libertárias" e "anarcocapitalistas". Incluem a dolarização da economia através de uma "competição livre de moedas", a eliminação do Banco Central e a drástica redução do tamanho do Estado, através da eliminação de ministérios, obras públicas e privatização de empresas estatais.
Ao vencer no segundo turno, Milei se torna o primeiro economista a chegar à Casa Rosada. Trata-se de um fato significativo em um país que já foi um dos mais ricos do mundo, mas há anos sofre com uma inflação anual acima de 100% e onde 40% da população vive atualmente abaixo da linha de pobreza.
Em contraste com Massa, Milei afirma que gastará menos, não mais.
Ele também promete combater o que chama de "casta política". De fato, o desgaste com a política tradicional e a falta de alternativas parecem ter trabalhado a seu favor.
"Ele conseguiu captar o cansaço dos ricos, dos pobres, dos de classe média, dos jovens, dos adultos, o cansaço de todos", disse Juan Carlos de Pablo, economista da Universidade de San Andrés e amigo de Milei há mais de 30 anos, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
"Milei soube se conectar 'a partir do exótico' com o cansaço de uma sociedade argentina que prefere mandar tudo às favas a continuar vivendo como agora", disse Juan Negri, diretor da carreira de Ciência Política e Governo da Universidade Torcuato Di Tella.
Mas quais são os marcos na vida e na carreira de Javier Milei?
'Sem medo'
Javier Gerardo Milei nasceu em 22 de outubro de 1970 na cidade de Buenos Aires e cresceu em uma família de classe média no bairro de Villa Devoto.
Seu pai, Norberto Horacio Milei, de 78 anos, passou a vida trabalhando com ônibus, primeiro como motorista e depois como proprietário de sete linhas de transporte. Sua mãe, Alicia Luján Lucich, de 73 anos, é dona de casa.
Ele descreve sua infância como reservada, dividindo seu tempo entre os estudos e o esporte. O apelido de "O Louco" foi dado a ele quando frequentava a escola Cardenal Copello, um sinal de que naquela época seu tom, palavras e imagem eram únicos entre seus colegas.
Ele chegou a jogar como goleiro no Club Atlético Chacarita Juniors, da segunda divisão do futebol argentino, uma posição que, em suas próprias palavras, melhor refletia seu caráter singular.
No entanto, como ele mesmo contou, o que realmente marcou sua infância foi a violência. Tanto que, desde 2010, ele não tem mais contato com quem ele prefere chamar de seus "genitores".
Milei lembra que, em 2 de abril de 1982, ele assistia pela televisão ao general e presidente Leopoldo Galtieri anunciar o desembarque de tropas argentinas nas Ilhas Malvinas/Falklands, sob controle do Reino Unido.
O episódio marcou o início de uma guerra que tirou a vida de 655 combatentes argentinos e 255 militares britânicos. Ele tinha apenas 11 anos e disse a seu pai que a decisão do governo militar lhe parecia um "delírio" devido à desigualdade de forças entre os exércitos.
"Meu pai teve um acesso de fúria. Ele começou a me dar socos e chutes. Ele me chutou por toda a cozinha", lembrou Milei em uma entrevista ao jornalista Agustín Gallardo cinco anos atrás.
"Quando cresci, ele parou de me bater e passou a infligir violência psicológica", contou. "Ele sempre me disse que eu era lixo, que eu iria morrer de fome, que eu seria inútil."
Mas, na perspectiva de Milei, o abuso físico e psicológico que ele sofreu na infância e juventude, em vez de enfraquecê-lo, o fortaleceu.
"Isso fez com que agora eu não tenha medo de nada", afirma.
O verdadeiro chefe
Mas "O Leão", como seus seguidores o chamam devido ao cabelo de "juba" — um apelido que muitos aproveitaram vendendo camisetas com sua figura —, não cresceu sozinho.
Karina Milei, sua única irmã, um ano e meio mais nova do que ele, desempenha um papel central em sua vida.
Apelidada no masculino como "O Chefe", Karina foi peça fundamental na formação política que o levou à Presidência.
Milei reconhece que "sem ela, nada disso teria acontecido".
O presidente eleito comparou o vínculo deles com o do profeta mais importante do judaísmo, Moisés, e seu irmão Aarão.
"Moisés era um grande líder, mas não um grande divulgador. Deus enviou Aarão para que ele se comunicasse. Eu sou para a Kari o que Aarão é para Moisés."
Milei, que se considera católico, mencionou a possibilidade de se converter ao judaísmo e expressou críticas severas ao papa Francisco, a quem chamou de "representante do maligno na Terra" e que "tem afinidade com comunistas assassinos".
Embora tenha amenizado seu discurso, como fez em outras ocasiões, as críticas ao papa argentino estão alinhadas com a rejeição contundente que ele demonstrou ao comunismo e socialismo, afirmando que isso o coloca em sintonia com outros líderes da direita radical, como o brasileiro Jair Bolsonaro, o chileno José Antonio Kast e o partido espanhol Vox.
Na imprensa, Milei tem sido comparado várias vezes ao ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. "Minha afinidade com Trump e Bolsonaro é quase natural", disse em relação ao americano e ao ex-presidente do Brasil.
Agora na Presidência, Milei prometeu se distanciar da China, país que investiu consideravelmente na Argentina nos últimos anos, e do Brasil, já que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é de esquerda.
"Meus aliados serão os Estados Unidos e Israel", declarou antes da vitória.
Sobre sua vida pessoal, sabe-se que ele é um amante do rock e liderou a banda Everest, dedicada a fazer versões de músicas dos Rolling Stones.
Milei mantém seu estilo roqueiro, com jaqueta de couro e longas madeixas, embora também tenha revelado ser um apaixonado por ópera.
Ele também fala repetidamente de seu amor por seus cães, chamados Conan, Murray, Milton, Robert e Lucas, nomeados em homenagem aos economistas liberais Murray Rothbard, Milton Friedman e Robert Lucas.
"Agradeço a vitória aos meus filhotes de quatro patas", disse após vencer as primárias de agosto, referindo-se aos seus cinco mastins, cópias genéticas de um cão chamado Conan, criados em um laboratório no norte do Estado de Nova York. Ele não tem filhos.
As únicas namoradas conhecidas são personalidades famosas no mundo do entretenimento: a cantora Daniela Pérez e a humorista Fátima Flórez, com quem anunciou um relacionamento algumas semanas após sua vitória nas primárias de agosto passado.
De acordo com relatos da imprensa, foi ela quem o apelidou de "O Rei", em referência ao leão.
O 'catecismo' do anarcocapitalismo
A primeira vez que Javier Milei votou para presidente foi em 1989. Naquele ano, ele não escolheu o peronista Carlos Menem, que acabou vencendo, nem o representante do governo, o radical de centro-direita Eduardo Angeloz.
Naquelas eleições, ele se inclinou pelo político, militar e economista Álvaro Alsogaray, que na década de 1950 foi ministro da Indústria no governo ditatorial de Pedro Eugenio Aramburu. Alsogaray é reconhecido como o principal defensor do liberalismo na Argentina na segunda metade do século 20.
Com o passar dos anos, no entanto, Milei esclareceu que as ideias de Alsogaray não refletem com precisão suas preferências políticas.
Ele prefere se identificar como anarcocapitalista, uma corrente que busca minimizar o papel do Estado na economia, ou, como ele mesmo colocou, "um 'não-Estado'".
É uma proposta radical e complexa, que seus críticos alertam que pode funcionar bem como discurso, mas que pode se tornar um problema na prática diante da eventual perda de empregos públicos e de programas de assistência social dos quais depende uma boa parte da população.
Na Argentina, as universidades são gratuitas há quase um século, o sistema de saúde pública é robusto, e o emprego no setor público, acima da média regional, representa 18% dos trabalhadores empregados.
No entanto, embora ele repita isso e o caracterize tanto, Milei nem sempre foi um "anarcocapitalista".
Nos primeiros anos de sua carreira como estudante de Economia na Universidade de Belgrano, assim como durante as mestrados que realizou no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social (Ides) e na Universidade Torcuato Di Tella (UTDT), ele se considerava um liberal clássico.
"Naquela época, ele era um economista matemático, um neoclássico tradicional, com uma atração especial por matemática", lembra Stefanoni, que se dedicou nos últimos anos ao estudo do movimento libertário na Argentina e cursou Microeconomia na Universidade de Buenos Aires com Milei como professor.
Foi somente em 2014 que Milei aderiu ao mundo da Escola Austríaca, graças à leitura do libertário Murray Rothbard, um economista americano reconhecido por unir ideias libertárias à extrema direita e dar forma ao chamado "paleo-libertarismo".
"Milei adota ideias de um libertarianismo de extrema direita e tenta aplicá-las na Argentina, algo sem precedentes neste país", diz Stefanoni.
Para o economista Juan Carlos de Pablo — que acredita que essas ideias têm aspectos excelentes e outros muito ruins, como a crença de que não há falhas de mercado — Milei adotou a Escola Austríaca "de forma extrema, mais como um catecismo do que como um pensamento".
O mesmo pode ser dito do liberalismo com o qual frequentemente explica suas decisões.
Um diálogo que exemplifica claramente a liberdade que ele defende é aquele que ele teve no canal TN, depois que seu partido votou contra uma lei para expandir o programa de combate a doenças cardíacas congênitas, uma das principais causas de mortalidade em recém-nascidos.
Quando perguntado sobre a razão da recusa, ele respondeu: "Isso implica mais intervenção do Estado na vida dos indivíduos e mais gastos. Isso não funciona assim. Nós votamos com base nos princípios liberais".
Na mesma linha, estão algumas das posições que mais preocupam aqueles que o consideram um salto no escuro.
São exemplos sua oposição ao aborto e ao feminismo, sua defesa do porte de armas e da venda de órgãos, e a ambiguidade com que ele se referiu até mesmo ao tráfico de bebês.
'Moralmente superiores'
Embora Milei tenha ocupado seu primeiro cargo público apenas em 2021, quando foi eleito deputado pela capital, ele já havia incursionado no âmbito público como divulgador das ideias libertárias.
Foi no início dos anos 2000 que ele se aproximou dos meios de comunicação e em 2015 começou a aparecer com mais frequência.
O jornalista argentino Roberto García, um dos primeiros a convidá-lo para um programa de televisão, notou que ele era um homem que "dizia coisas diferentes dos outros economistas".
Na época, quando era diretor de redação do jornal Ámbito Financiero, García o convidou para falar sobre seus relatórios econômicos, mas rapidamente percebeu que Milei tinha a habilidade de manter a audiência atenta devido ao seu tom fervoroso.
"Milei é uma avis rara", disse García à BBC News Mundo. Ele afirma que, há 15 anos, ninguém poderia imaginar que algumas das propostas de Milei poderiam ser aceitas pela sociedade argentina.
Foi nesse contexto que Milei começou a promover o que chamou de "batalha cultural", na qual introduziu questionamentos que raramente eram ouvidos até então, como a possibilidade de dolarização ou críticas ao consenso alcançado em relação aos direitos humanos após o governo militar dos anos 1970 e 1980.
"Os esquerdistas estão perdendo a batalha cultural. Enquanto continuarem repetindo suas mentiras, nós, os liberais, continuaremos defendendo nossas verdades. Venceremos porque somos moralmente superiores", disse Milei em 2018.
Na televisão, ele construiu uma imagem que soube se conectar com a ansiedade econômica dos argentinos que querem mudanças e se identificam com ele.
"Milei criou um personagem para a televisão. Muitas vezes eu disse a ele para ter cuidado, para não enlouquecer de tanto se fazer de louco", confidencia seu amigo Juan Carlos de Pablo, com quem Milei trocava opiniões sobre o pensamento econômico e alguns discos de ópera.
"Não é a primeira vez que o personagem devora a pessoa", afirma.
Estabelecido como figura fácil nos meios de comunicação, chegou a vez do que ele chamou de "batalha política", que começou há dois anos com a fundação da coalizão A Liberdade Avança, com o qual disputou as eleições legislativas de 2021 e superou as melhores expectativas ao obter 17% dos votos em Buenos Aires.
Além dos corredores das universidades e dos estúdios de TV, ele passou pela Corporación América, um grupo do poderoso empresário Eduardo Eurnekian, que administra os principais aeroportos da Argentina e da América Latina, onde ocupou o cargo de economista-chefe até o dia anterior à sua posse como deputado em 2021.
Dois anos depois, Milei conseguiu chegar à Presidência, tendo ocupado apenas um cargo público, com um partido novo e diversificado, que não conta com governadores regionais.
A primeira questão que se coloca agora é até que ponto suas ideias radicais poderão ser realmente aplicadas a partir de um Estado que ele considerou seu principal "inimigo" e em um ambiente que ele conhece pouco porque despreza.
Inicia-se agora o verdadeiro teste para O Rei, O Leão, O Louco, o Avis Rara, o homem que expressou sua fúria contra o que ele se tornará a partir desse dia: o líder do governo e do Estado argentino.
"Por meses me chamaram de louco por propor um caminho diferente para nosso país. A loucura é continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes", disse durante a campanha.