Afeganistão: como o Talebã avançou tão rapidamente após saída dos EUA
Com a retirada de tropas americanas e da Otan, o Talebã ganhou espaço e pode estar perto de invadir a capital afegã, Cabul.
A rapidez com que o Talebã tem dominado territórios no Afeganistão surpreendeu muitas pessoas - capitais regionais parecem cair como dominós.
Enquanto os insurgentes avançam, o governo afegão tenta manter o controle sobre as cidades. Nesta semana, vazou um relatório de inteligência dos EUA que estima que Cabul pode ser atacada nas próximas semanas, e que o governo afegão pode entrar em colapso em 90 dias.
Nesta sexta (13/08), os talebãs já dominaram a segunda maior cidade do Afeganistão, Kandahar, de cerca de 600 mil habitantes.
Local de origem do Talebã, Kandahar é estrategicamente importante por possuir um aeroporto internacional, pela produção rural e industrial e por ser um dos maiores entrepostos comerciais do país.
Mas como esse avanço avassalador do grupo radical islâmico ocorreu tão rapidamente?
Os Estados Unidos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), entre eles o Reino Unido, gastaram boa parte dos últimos 20 anos treinando e equipando as forças de segurança do Afeganistão.
Inúmeros generais americanos e britânicos já declararam que haviam formado um Exército afegão mais poderoso e qualificado - promessas que hoje parecem vazias.
A força do Talebã
O governo afegão deveria, em tese, ter vantagem sobre os talebãs, com mais tropas à sua disposição. As forças de segurança do Afeganistão contam com 300 mil pessoas, pelo menos no papel. Isso inclui exército, força aérea e polícia.
Mas, na realidade, o país sempre teve dificuldades para alcançar as metas de recrutamento. O exército e a polícia têm uma história tumultuada, com número elevado de mortes, deserções e corrupção. Alguns comandantes inescrupulosos já se apoderaram de salários de tropas que simplesmente não existiam: os chamados "soldados fantasmas".
No seu último relatório ao Congresso dos EUA, o Inspetor Geral Especial para o Afeganistão (SIGAR) expressou "sérias preocupações sobre o efeito corrosivo da corrupção... e a questionável precisão dos dados sobre a robustez atual" das forças de segurança.
Jack Watling, do Royal United Services Institute, diz que o exército afegão nunca soube quantas tropas ele realmente tem. Além disso, diz Waitling, há problemas com manutenção de equipamentos e moral dos militares.
Soldados são frequentemente enviados para áreas onde eles não têm conexões tribais ou familiares. Essa é uma razão pela qual alguns rapidamente abandonaram seus postos sem sequer oferecer resistência, quando os territórios foram invadidos.
A força do Talebã é ainda mais difícil de mensurar. Segundo o Centro de Combate ao Terrorismo, estimativas sugerem que existem cerca de 60 mil combatentes. Com o apoio de milícias, o número pode chegar a 200 mil.
Dr. Mike Martin é um ex-oficial do exército britânico que escreveu o livro An Intimate War (Uma guerra íntima), sobre o conflito na província afegã de Helmand. Ele alerta para os perigos de definir o Talebã como um grupo monolítico.
Segundo Martin, o "Talebã está mais para uma coalizão de donos de franquias independentes, que se afiliaram, provavelmente temporariamente."
Ele observa que o governo afegão também sofre com divisões entre facções locais. A mudança na história do Afeganistão ilustra como famílias, tribos e até mesmo funcionários do governo mudaram de lado - muitas vezes para garantir sua própria sobrevivência.
Acesso a armas
Mais uma vez o governo afegão deveria ter vantagem tanto em financiamento quanto em armas. Ele recebeu, sobretudo dos EUA, bilhões de dólares para pagar salários de soldados e equipamentos. No seu relatório de julho de 2021, o Inspetor Geral Especial para o Afeganistão disse que mais de US$ 88 bilhões haviam sido gastos com segurança no Afeganistão.
Mas acrescentou: "A pergunta sobre se esse dinheiro foi bem gasto vai ser respondida pelo desenrolar do combate."
A força aérea afegã deveria garantir ao governo uma vantagem crítica no campo de batalha. Mas ela tem tido dificuldades para manter e tripular suas 211 aeronaves- um problema que vem se agravando com o fato de o Talebã direcionar deliberadamente ataques a pilotos. A aeronáutica afegã também não tem sido capaz de atender às demandas dos comandantes em terra.
Isso ajuda a explicar a recente participação da força aérea dos EUA na tentativa fracassada de manter o controle de cidades como Lashkar Gah. Ainda não está claro por quanto tempo os EUA estão dispostos a prover esse tipo de apoio.
O Talebã normalmente depende da receita do tráfico de drogas, mas também recebe apoio estrangeiro, principalmente do Paquistão.
Mais recentemente, o Talebã conseguiu capturar armas e equipamentos das forças de segurança afegãs, como metralhadoras, morteiros e artilharias.
O Afeganistão já estava inundado de armas após a invasão soviética, e o Talebã mostrou que o mais cruel pode derrotar uma força muito mais sofisticada.
Pense no efeito mortal do Dispositivo Explosivo Improvisado (IED) nas forças americanas e britânicas. Isso, somado ao profundo conhecimento local e à compreensão do terreno, têm garantido vantagem ao grupo radical islâmico.
Foco no norte e oeste
Apesar da natureza heterogênea do Talebã, alguns ainda enxergam evidências de um plano coordenado em seu avanço recente.
Ben Barry, um ex-brigadeiro do exército britânico e agora membro sênior do Instituto de Estudos Estratégicos, reconhece que os ganhos do Talebã podem ser oportunistas, mas acrescenta: "Se você fosse escrever um plano de ataque, seria difícil chegar a algo melhor do que isso. "
Ele aponta para o foco dos ataques do Talebã no norte e no oeste, não em seus tradicionais redutos do sul, com sucessivas capitais regionais caindo em suas mãos.
O Talebã também capturou passagens de fronteira importantes e postos de controle, canalizando as receitas alfandegárias que eram essenciais para o governo.
O grupo também aumentou os assassinatos de funcionários importantes, ativistas de direitos humanos e jornalistas. Com isso, lentamente, conseguiu eliminar alguns dos pequenos progressos obtidos nos últimos 20 anos.
Já a estratégia do governo afegão é mais difícil de identificar. Promessas de retomada do território capturado pelo Talebã parecem cada dia mais vazias.
Barry diz que o plano parece ser manter o controle das maiores cidades. Comandantes afegãos já foram deslocados para tentar evitar que Lahskar Gah e Helmand caiam nas mãos dos insurgentes.
Mas por quanto tempo vão conseguir evitar isso?
As forças especiais afegãs são relativamente pequenas em número, cerca de 10 mil, e elas já estão sobrecarregadas. O Talebã também parece estar ganhando a propaganda da guerra e a batalha de narrativas.
Barry diz que o sucesso atual deles no campo de batalha aumentou o moral e garantiu um senso de união. Em contraste, o governo afegão está vivendo um momento de atritos, com demissão de generais.
Qual o fim do jogo?
A situação certamente parece desoladora para o governo afegão.
Mas Jack Watling diz que "a situação ainda pode ser salva pela política". Se o governo conseguir conquistar o apoio dos líderes tribais, diz ele, ainda existe a chance de reverter o problema.
Essa visão é ecoada por Mike Martin, que aponta para o retorno do ex-senhor da guerra Abdul Rashid Dostum a Mazar-i-Sharif como um momento significativo. Ele já está negociando acordos.
A temporada de combates de verão logo terminará com o início do inverno afegão - tornando as operações mais difíceis para as forças em solo.
Ainda é possível que haja um 'empate' até o final do ano. O governo afegão vai se agarrar à defesa de Cabul e de uma gama de cidades grandes.
A maré pode até mudar se houver fraturas no Talebã. Mas, no momento, parece que os esforços dos EUA e da Otan em garantir paz, segurança e estabilidade no Afeganistão foram tão infrutíferos quanto os dos soviéticos que vieram antes deles.