Oficinas de alfabetização dão esperanças a refugiados do Mali
A iniciativa faz parte das atividades realizadas nos campos de refugiados do Acnur no Burkina Faso, um dos países que abrigam milhares de malinenses que fugiram dos conflitos registrados no norte do país
Desde o começo de 2012, dezenas de milhares de malinenses têm sido obrigados a deixar suas casas para fugir de fundamentalistas armados. A situação se agravou em janeiro deste ano, quando o país pediu ajuda à França, que iniciou uma operação para recuperar parte do território ocupada por esses grupos. Muitas dessas pessoas estão alojadas em campos de refugiados instalados em países vizinhos e administrados pela agência da ONU para refugiados, o Acnur.
Nesses lugares, que às vezes abrigam tanta gente quanto uma cidade, a situação se torna ainda mais complexa. Pessoas diferentes, oriundas de diferentes lugares, às vezes com diferentes "status" (hierarquias sociais que variam de acordo com cada cultura) são obrigadas a viver juntos. Uma coexistência nem sempre fácil. É aí que entra o trabalho dos funcionários do Acnur: além de proporcionar as mínimas condições de sobrevivência, mediar a convivência.
O brasileiro Hugo Reichenberger, 30 anos, trabalha no Acnur desde 2008 e recentemente esteve no campo de refugiados de Goudebou, no Burkina Faso. Lá, sua principal tarefa era divulgar as atividades mantidas pela agência ao resto do mundo. Como as oficinas de alfabetização, cujas imagens, de autoria do fotógrafo Brian Sokol e publicadas na conta do Acnur no Instagram (@unrefugees), ilustram este texto. Reichenberger contou ao Terra sobre esse projeto e falou do desafio diário de tentar tornar a vida dos refugiados menos difícil.
Terra - A situação no Mali vem fazendo com que dezenas de milhares de pessoas saiam de suas casas e busquem abrigo em campos de refugiados. Qual é a realidade enfrentada pelo Acnur nesses campos?
Hugo Reichenberger- Os refugiados vêm de uma região do norte do Mali onde nunca houve muita presença do Estado e de serviços sociais como educação e saúde. Portanto, estamos trabalhando com uma população que nunca teve a oportunidade de ir à escola, de receber tratamento médico ou de se beneficiar de projetos de geração de renda e de alfabetização. Além disso, é uma comunidade de refugiados extremamente hierarquizada e subdividida, pois reflete a sociedade e a cultura do norte do Mali.
Terra - Quais são as implicações dessa hierarquização no dia a dia de um campo de refugiados?
Hugo Reichenberger - Por exemplo, há, em nossos campos, pessoas com o status de “nobres” e outras que são consideradas “serventes” dos “nobres”. Há também grandes divisões étnicas (touaregs, árabes e songhois que nem sempre se entendem), geográficas (os refugiados de diversas regiões não necessariamente se entendem com pessoas de outra região) e divisões entre “clãs” (na mesma região pode haver pessoas da mesma etnia mas que seguem um líder diferente).
Terra - E quais são as dificuldades do Acnur para lidar com essa realidade?
Hugo Reichenberger - Isso dificulta o trabalho em quase todas as áreas. Na saúde, é difícil de conscientizar as mulheres a fazer consultas pré-natal, pois simplesmente nunca houve este serviço de onde vieram. A mesma coisa para a escola - temos uma taxa de escolarização muito baixa. Em relação às divisões entre os próprios refugiados, enfrentamos dificuldades desde o estabelecimento dos campos de refugiados, porque grupos se recusaram a viver ao lado de outros. Como resposta, o Acnur estabeleceu campos separados, para que haja a privacidade que eles tanto prezam.
Terra - Nesse sentido, qual é o papel de iniciativas das oficinas de alfabetização, como a das fotos publicadas no Instagram da agência?
Hugo Reichenberger - O curso de alfabetização foi um grande sucesso porque não oferece só a alfabetização, mas também promove a igualdade e a paz entre refugiados divididos e hierarquizados. Desde que o curso foi aberto, em janeiro, houve um rápido crescimento. Começou com 500 alunos em 14 centros e hoje conta com 1.200 alunos em 26 centros.
Terra - Além da questão prática (aprender a ler e escrever), que tipo de resultado você destacaria?
Hugo Reichenberger - O que mais emociona é ver a mistura de etnias e castas. Por exemplo, no curso que fotografamos, havia a jovem “servente” Wanagofad, 22 anos, estudando ao lado do “nobre” Moussa, da etnia Touareg, 55 anos, que é considerado líder de seu clã. Ao lado dos dois estava Mohamed, 22 anos, que é árabe. Ao conversar com os alunos, percebemos que todos anseiam pelo retorno da paz ao Mali, e que eles enxergam na alfabetização, um novo conhecimento que vai lhes permitir de reconstruir uma nova vida ao retornar. E também para contribuir para uma paz duradoura. (Confira os depoimentos na galeria de fotos)
Por exemplo, Fadimata, 30 anos, que perdeu seu marido na guerra, vê na alfabetização a possibilidade de restabelecer o comércio de seu companheiro em sua cidade natal. Assim, daria a seu bebê, que nasceu depois da morte de seu marido, um futuro melhor. A própria “servente” Wanagofad diz que antes tinha medo de aprender a ler e escrever, pois este direito sempre lhe foi negado e sempre achou que não teria capacidade para tal. Agora ela percebe que é “igual a todos” e sente livre ao perceber isto. Mas as palavras mais marcantes vieram de uma aluna chamada Miriam, que disse: “uma pessoa que não sabe ler e escrever se torna vítima daquele que sabe. Foi o que aconteceu conosco. De agora em diante, seremos mestres de nosso próprio destino.”