A novela brasileira que inspirou capitalistas em Cuba
Pequenos restaurantes residenciais surfam na onda da abertura econômica gradual e da reaproximação com os EUA
Não é um restaurante tradicional: as cadeiras e mesas estão na sala, nos corredores ou nos quartos da casa.
Há muitos assim em Cuba, onde são conhecidos como paladares.
Um paladar chamado San Cristóbal, no humilde e popular centro de Havana, foi o local escolhido pelo presidente dos EUA, Barack Obama, para seu primeiro jantar na cidade, no último dia 20.
A escolha de Obama – que teria sido uma recomendação do casal de cantores Jay Z e Beyoncé, que visitaram o local em 2013 - não foi casual.
Entre as prioridades da visita histórica de Obama a Cuba estava o incentivo aos negócios privados, e o presidente teve até um encontro com pequenos empresários de sucesso, entre os quais estava seu anfitrião no jantar.
Os paladares são um dos negócios privados que mais crescem na ilha, e o nome desses pequenos restaurantes residenciais tem uma origem bem peculiar.
Nome de novela
Muitos se perguntam onde surgiu o nome, e a origem está no Brasil - mais precisamente na novela "Vale Tudo", veiculada pela Rede Globo entre 1988 e 1989 e transmitida pela TV cubana no começo dos anos 1990.
A trama conta a história de uma mãe, Raquel Accioli (interpretada por Regina Duarte), cuja filha inescrupulosa, María de Fátima (Glória Pires), deixa a mãe na pobreza ao vender a única propriedade da família.
Raquel começa a vender lanches na praia no Rio, o negócio cresce e ela abre seu primeiro restaurante, chamado Paladar.
Ao longo da história, a personagem se torna uma empresária de sucesso, com sua própria cadeia de restaurantes.
A novela foi muito popular em Cuba e em outros países. Transmitida no auge da grave crise econômica que acompanhou a queda de regimes comunistas pelo mundo, "Vale Tudo" paralisava um país já anestesiado.
Era tempo de sonhar. E muitos cubanos sonharam em ter seus próprios negócios, como Raquel.
O renascimento da empresa privada
A revolução de Fidel Castro nacionalizou os pequenos negócios privados em 1968, e alguns poucos resistiram por décadas - como barbeiros, costureiras e manicures - em um limbo paralegal.
A crise econômica asfixiante da década de 1990 levou o governo a emitir a primeira onda de licenças para negócios privados, entre eles restaurantes, denominados oficialmente como "por conta própria".
Por isso, os trabalhadores privados são conhecidos como "cuentapropistas".
E os primeiros restaurantes particulares em quase 30 anos receberam em Cuba a denominação de "paladares".
Apesar de a palavra ser um substantivo masculino, em Cuba é usada como feminino - talvez porque inicialmente as pessoas se referissem a esses locais como "a casa do paladar".
Restrições duras
Os primeiros paladares estavam submetidos a restrições duras: não podiam ter mais de 12 cadeiras, os empregados deveriam ser todos membros da família e a venda de carne vermelha e de lagosta era proibida.
Ainda assim, negócios começaram a crescer e se tornaram concorrentes dos ineficientes e desabastecidos restaurantes estatais.
Os donos de paladares estão sujeitos a uma pesda carga tributária - cerca de 50% - e a inspeções estatais sistemáticas.
Muitas dessas vistorias acabam com apreensão de produtos e fechamento dos locais.
Até meados dos anos 2000, a maioria dos paladares do país havia fechado.
Sobravam alguns em Havana, como a La Guarida, imortalizada em cena do filme Morango e Chocolate (1994), único filme cubano indicado ao Oscar.
Nova era
Em 2006, Raúl Castro substituiu o irmão Fidel à frente do governo, e em 2010 decidiu abrir as portas novamente ao trabalho privado, após reconhecer que o Estado não tinha capacidade de ser a fonte única de emprego.
Emitiram-se licenças para cerca de 200 modalidades de trabalho privado, e várias restrições aos paladares foram suspensas.
Nessa nova era, os restaurantes residenciais podem vender carne vermeha e lagosta, produtos considerados de luxo na ilha. São autorizados ainda a ter até 20 cadeiras e empregados que não sejam familiares.
A clientela é uma elite de cubanos de renda superior à média da população, construída por meio de remessas, salários em moeda conversível ou também porque são "cuentapropistas".
Os preços da maioria dos paladares são proibitivos para empregados do setor estatal.
Em meio a essa abertura, Carlos Cristóbal Márquez - que já havia viajado um pouco pelo mundo - decidiu voltar a Havana e abrir o paladar que recebeu Obama.
A aproximação entre EUA e Cuba, que começou na verdade em 2009, quando Obama levantou restrições ao envio de dinheiro e a viagens de cubano-americanos à ilha, também facilitou a remessa de recursos a pequenos empresários.
Talheres, pratos, toalhas de mesa e até alimentos chegam hoje de Miami e outras cidades americanas aos paladares cubanos.
Reconhecimento
Vários paladares fizeram fama internacional.
Em 2012, o paladar Dona Eutimia, também em Havana, foi incluído em uma lista da revista Newsweek/The Daily Beast dos 101 melhores locais para se comer no mundo.
No mesmo ano, o jornal britânico The Guardian incluiu o San Cristóbal e o Dona Eutimia em relação dos dez melhores paladares cubanos.
A lista dos melhores restaurantes cubanos do portal e guia de viagens TripAdvisor é encabeçada pelo San Cristóbal e outros restaurantes privados.
Apesar do êxito, seus proprietários não podem expandir os negócios, pois a criação de cadeias de negócios continua proibida na ilha.
A reunião dos empresários cubanos com Obama tratou justamente da possibilidade de abertura da primeira cadeia de paladares de Cuba.
A possibilidade anima muitos cubanos que, como a Raquel de "Vale Tudo", tiveram que começar do zero e sonham com um futuro mais próspero.