Em meio à crise, venezuelanos continuam divididos por Chávez
Desaceleração econômica, desabastecimento e limitação da liberdade de imprensa deixam evidente a influência que o líder da Revolução Bolivariana ainda exerce sobre seu povo, mesmo dois anos após sua morte
O povo venezuelano tem vivido um pesadelo desde a morte do ex-presidente Hugo Chávez. No meio do fogo cruzado entre oposição e o governo de Nicolás Maduro, está o cidadão comum, que vara noite em filas de supermercados para comprar produtos básicos, leva bala de borracha nos protestos e tem o direito de expressão e informação cerceados.
O filho de Chávez e sua comitiva acusam a imprensa, o empresariado e a oposição de provocar a escassez, inflar a população contra o regime e organizar um golpe. Os empresários e políticos, por sua vez, culpam o controle cambial pela restrição de dólares para importação e pela consequente queda da produção interna, e o governo pela incapacidade de gerir a crise.
O fato é que nesse jogo de empurra-empurra, o país sucumbe de forma vertiginosa à desaceleração econômica, e a megainflação - superior a 64% - coloca em risco a continuidade de programas sociais responsáveis pela redução da pobreza, em meio ao crescimento da impopularidade de seu líder. O menino dos olhos de Chávez atingiu, em janeiro deste ano, a menor popularidade de seu mandato, 22%.
É fato também que a polarização na Venezuela não atinge somente quem está no centro do poder - ou na disputa por ele - mas também a população, que invariavelmente se posiciona a favor ou contra o regime, que se conserva há 15 anos no comando de um país altamente politizado.
Opiniões
Maria Fernanda Arias Godoy, 26 anos, é arquiteta. Desde março de 2014, mantém um pé na Venezuela, sua terra natal, e outro no Brasil, onde faz um curso de pós-graduação. “Não acho que eu devo ficar no Brasil mais que dez meses, tenho muita vontade de voltar”, diz ela no início da entrevista. Maria mora hoje no bairro República, centro de São Paulo, com o namorado, mas viveu os últimos oito anos em Caracas. Esteve no país de origem pela última vez em novembro de 2014, e, embora reconheça que haja uma crise política e econômica, afirma que é complicado dizer se a situação por lá piorou desde que veio ao Brasil.
“Dizer que melhorou ou piorou é como fazer um julgamento preto e branco. Estamos vivendo uma crise que se agravou depois que Chávez morreu. A oposição não reconhece que a gente escolheu Maduro para continuar com a revolução e reafirmar o andamento político que a gente tinha, mas você percebe que as pessoas nesses últimos 15 anos tiveram uma melhora muito importante na sua qualidade de vida e no seu poder aquisitivo. Hoje todos comem três vezes por dia, o analfabetismo foi eliminado e quem ainda não conseguiu resolver seus problemas está na fila para conseguir uma moradia. É uma transformação extraordinária. O governo não está apenas distribuindo a renda, mas também criando um plano de impostos e leis para criar ordem. Não vivemos no socialismo ainda, mas estamos construindo.”
Diangela Lugo, 27 anos, é estudante de jornalismo. Nasceu na cidade de Morón, estado de Carabobo, e nunca saiu de seu país. Trabalha em um jornal de oposição, que, como muitos outros, foi comprado pelo governo e obrigado a adotar uma linha editorial diferente da que estava acostumado. Hoje, as críticas ao regime devem ser muito limitadas. Ela não se sente confortável com o modelo político vigente no país onde vive.
“Não concordo com essa tendência política que está há mais de 15 anos no poder. A Venezuela na qual vivemos hoje não é a Venezuela da qual deveríamos estar disfrutando; os venezuelanos falam muito das riquezas que temos como nação, mas nos demos conta de que todo esse potencial está sendo desperdiçado. A insegurança é uma questão muito importante, vivemos com medo e sofremos com a escassez de produtos básicos que deveriam ser fáceis de ser encontrados.”
Diante dessa divisão, a explosão de protestos em fevereiro do ano passado se tornou inevitável. Durante quase cinco meses de atos contra o governo, os confrontos entre manifestantes e a Guarda Nacional Bolivariana culminaram com a morte de cerca de de 40 pessoas. Entre as reinvindicações dos participantes, estavam medidas de combate à insegurança e ao desabastecimento, questões, que, de acordo com Maria, são completamente dirigidas.
“Essa sabotagem contra o governo acontece nas cidades maiores e mais populosas, como Caracas, Valencia, Maracay, Porto La Cruz. Quando visitei minha família em um povoado no sul do país, estava tudo tranquilo, então, isso que a oposição faz não é uma casualidade, é um show feito para a mídia, para que ela possa ver e fazer uma foto”.
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Segundo a arquiteta, o regime tem razão quando atribuiu ao setor privado e aos meios de comunicação o problema do desabastecimento e das “compras nervosas” de produtos importados como tentativa de prejudicar a imagem do chavismo. Hoje, faltam na Venezuela farinha, frango, papel higiênico, fralda descartável, café, margarina, desodorante, sabão em pó, entre outros produtos fundamentais.
“Você vai ao supermercado e não encontra os alimentos básicos. Então, dez dias depois, você vê nos canais de notícias do governo e nos canais de política de esquerda, imagens de galpões no interior cheios de comida e medicamentos dos quais as pessoas têm sido privadas há um tempão. Isso é um crime que eles cometem contra a população”, opina Maria Fernanda Arias Godoy.
Líderes das indústrias se defendem, atribuindo a escassez exacerbada, ao governo, é claro. Com menos dólares em caixa, o governo não tem como importar os alimentos e os bens de consumo. Além disso, o corte das entregas noturnas, em função da falta de segurança, a falta de pneus para caminhões devido ao impacto de controle de divisas e as estradas de má conservação também explicariam o problema.
Liberdade de expressão e teoria da conspiração
A mídia não é acusada pelos chavistas de exercer um papel importante na desestabilização do regime apenas através da veiculação de imagens de compras nervosas e dos mercados desabastecidos. Emissoras também são acusadas por transmitirem aos outros países cenas supostamente adulteradas. Maria denunciou ao Terra que muitas das imagens que foram veiculadas em fevereiro do ano passado foram montadas. Elas não mostravam, segundo ela, protestos organizados na Venezuela, mas em países como Grécia, Chile e Espanha.
“Não posso discordar dela (Maria), porque é certo que muitas informações sobre os protestos do ano passado foram exageradas, e que foram transmitidas imagens de confrontos entre manifestantes e policiais que nem sequer eram da Venezuela. Mas também é verdade que a manipulação não é feita apenas pela oposição: as informações são alteradas por ambas as partes, do governo e dos canais de tendência opositora”, acrescenta Diangela.
As liberdades de expressão e informação também são assuntos muito discutidos na Venezuela. Maria costuma dizer, por exemplo, que o maior inimigo das revoluções contemporâneas é a “grande mídia”.
“A imprensa internacional mente sobre a Venezuela e muitos donos da grande mídia no país são caras do setor privado que se beneficiariam se o governo caísse. Tem gente que acha que tem liberdade de expressão até demais na Venezuela e que se pergunta como é que o governo não faz nada contra essas pessoas que falam mentiras”, argumenta.
Guerrilha comunicacional
Quem não é chavista, não votou em Maduro na última eleição e trabalha na imprensa, não compartilha dessa opinião. O comentário de que "existe liberdade de expressão até demais na Venezuela" pode soar até como uma piada para Diangela, que teve o trabalho totalmente comprometido depois que o jornal em que atua foi apropriado pelo regime.
“Como jornalista, temos nossa função totalmente cerceada. O governo fala muito em hegemonia comunicacional. Canais que eram reconhecidos, estavam há muito tempo no ar, foram fechados. Existe essa tentativa de cercear a minha liberdade de exercer a profissão de jornalista e a liberdade dos usuários de ler e acompanhar as informações da maneira mais equilibrada possível”.
Diangela conta que muitas rádios que transmitiam programas opinativos tiveram que mudar o estilo informativo e crítico de seus programas e adotar um formato musical e comercial, “se desprendendo do que poderia significar um problema ou um inconveniente para não ser alvo de represálias”.
Existe na Venezuela algo chamado “guerrilha comunicacional”, um movimento composto por seguidores do governo, que atua nas redes sociais para atacar as opiniões contrárias ao regime.
Segundo descrito pela presidência, o grupo, constituído por cerca de 70 estudantes com idades entre 13 e 17 anos, tem a função de “contrariar e enxurrada de ataques contra a Revolução Bolivariana e promover uma nova maneira de ver o mundo através do socialismo”.
Mas o que não falta são venezuelanos dispostos a contribuir para a consolidação do tão discutido sistema socialista na Venezuela. Começando pelos milhares de chavistas, que assim como Maria, não têm dúvidas de que os atos iniciados em 2014 são uma tentativa de golpe contra o presidente.
“Toda a crise que a gente está vivendo faz parte de um plano, mas nós não estamos dispostos a perder o que construímos. O setor privado e a oposição pensavam que quando Chávez morresse, a revolução também morreria. Além disso, existem, obviamente, os interesses internacionais, a ingerência americana que é latente. Não é casualidade que o preço do petróleo esteja baixando e que estejamos sofrendo com o desabastecimento: eles estão arriscando tudo para tirar o governo revolucionário do país”, diz.
À exemplo do governo, Maria aponta que algumas pessoas foram pagas para disseminar a violência nos protestos realizados no início de 2014. “Me lembro que em um dos protestos, na tentativa de avançar ainda mais em direção ao Palácio de Miraflores, os manifestantes causaram muitos estragos, quebraram toda uma praça que estava começando a ser reformada. Eles não saíram nas ruas protestando pacificamente, eles estavam trancando as ruas, queimando lixo, eu mesma não consegui entrar ou sair do trabalho alguns dias porque eles criavam barricada e queriam obrigar todo mundo a acompanhar a saída deles”, lembra.
Seguindo ainda a linha das autoridades oficiais, ela acusa o opositor Leopoldo López de ser o mentor das manifestações violentas do início do ano passado e Maria Corina Machado – rival do chavismo há uma década e indiciada pelo crime de conspiração em uma suposta trama para assassinar o presidente – de infiltrar pessoas nas filas que se formam nos mercados para quebrar vitrines e saquear mercadorias. “Tem um vídeo que foi mostrado por Maduro em cadeia nacional de Maria Corina no fim de uma fila suscitando a violência e dizendo mensagens diretas e subliminares que indicam o seu desejo de tomar o poder”.
A instabilidade, seja econômica ou política, na Venezuela revela não apenas a vulnerabilidade e a insegurança dos venezuelanos, mas mantém o otimismo de que melhores tempos estão por vir, ainda que por vias distintas.
“Eu, como jovem venezuelana, às vezes me desespero muito”, desabafa Maria. “Mas a gente não pode perder a oportunidade de fazer a diferença. Somos um país polarizado, sim, mas além disso, somos um país politizado. A gente discute e se critica, diferentemente de muitos países da América Latina, onde as pessoas só pensam em se formar, ganhar dinheiro e comprar coisas. A gente acordou faz 20 anos e realmente está trabalhando para ter um país melhor e mais justo", completa a venezuelana, que sente orgulho em dizer que votou em Maduro e que quer voltar para a Venezuela para construir a “revolução”.
Diangela, por sua vez, crê que os problemas são fruto da administração ineficiente do governo, mas também reconhece que a oposição aposta no fracasso do regime. “Talvez exista mais interesse do lado do governo em desprestigiar a oposição, mas, por outro lado, há certos setores da oposição que entraram nesse jogo, ao manipular informações e gerar o caos. Existe uma luta pelo poder. Por enquanto, vivemos na penumbra, sem saber se sairemos disso e quando sairemos disso, mas não podemos perder a esperança”.
Ao contrário da arquiteta, a fé de Diangela não incide sobre a "revolução", mas sobre a mesma oposição que é tão recriminada por Maria. Seus principais líderes viram na caótica situação vivida no início do ano passado a oportunidade de deixar de lado suas diferenças em favor de chegar ao poder no curto prazo, e é nessa aposta que Diangela arrisca todas as suas fichas.
“A união da oposição seria a única maneira de combater a imagem não de Maduro, mas de Chávez”.