Haiti: após 50 anos, maior ditador das Américas é admirado
Há 50 anos, François Duvalier proclamava sua presidência vitalícia e entrava para a história como um dos mais sangrentos ditadores do mundo, embora até hoje desperte a admiração de seu povo
“Apenas civis podem possuir um país, não militares. O militar deve permanecer em seus quartéis e receber ordens e instruções do presidente, do rei, do imperador. Esta é a minha opinião, esta é a minha filosofia. Para ter paz e estabilidade, você deve ter um homem forte em todos os países”. Com esta contraditória afirmação, François Duvalier, o Papa Doc, justificava a sangrenta ditadura que havia instaurado no Haiti, desde que pôs os pés no palácio presidencial, em 22 de outubro de 1957.
Após assumir a liderança do país latino, o homem bom e afetivo que ajudava os mais necessitados, se transformou e tomou a forma de uma figura que, ao mesmo tempo, disseminava terror e despertava admiração.
Com o anúncio de sua presidência vitalícia em 2 de abril de 1964, Papa Doc (“papai doutor”) consolidou seu regime centralizador e autoritário. Durante os catorze anos em que esteve no poder, Doc montou uma leal guarda civil – os tontons macoutes, ou “bichos-papões – responsável pela aniquilação de todos os seus oponentes. Além disso, caçou e prendeu jornalistas, exterminou qualquer foco de insurgência da polícia e do exército e deu ordens para a produção e distribuição de panfletos nos quais se designava Deus.
Estrangeiros e empresários eram obrigados a pagar quantias em dinheiro à milícia de Doc, e, se não o fizessem, pagavam caro. O embaixador da Grã-Bretanha no país, Gerald Corley-Smith foi expulso do Haiti e viu a sua embaixada ser fechada por se opor ao regime autoritário do presidente haitiano.
Destino semelhante teve o arcebispo Raymond Poirier, que foi preso e colocado, apenas com a batina e um dólar no bolso, dentro de um avião com destino a Miami, no período em que a Igreja Católica passou a ser alvo de Papa Doc.
O ditador também gostava de luxo e tinha muitos caprichos. A população foi forçada a pagar uma taxa obrigatória para a construção da Duvalierville, a cidade de Duvalier. O dinheiro nunca foi empregado na edificação da cidade, mas sim, depositado nas contas do próprio ditador, em bancos do Haiti e da Suíça.
Durante seu reinado, Doc ordenou a prisão de profissionais da imprensa, a expropriação de terras para a construção de academias para seus guarda-costas, e a execução de quem quer que o desafiasse ou o traísse.
Quando dois de seus filhos foram quase mortos em um atentado, Doc ordenou que 65 de seus oficiais fossem fuzilados. Em outra ocasião, comandou pessoalmente o assassinato de 19 de seus principais seguidores, por desconfiar que seus homens tramavam um plano que o levaria à derrocada.
Quem foi François Duvalier
François Duvalier nasceu em um bairro pobre de Porto Príncipe. Filho de um professor e de uma funcionária de padaria, Duvalier se formou em medicina pela École de Médecine da capital haitiana e atuou durante anos em clínicas e hospitais tratando de doentes com enfermidades tropicais. Chegou a ser diretor do Serviço de Saúde Pública, de 1946 a 1949, e ministro do trabalho e da saúde durante os dois anos seguintes, época em que passou a integrar um grupo de intelectuais nacionalistas, que entrou para a clandestinidade em 1951. Seis anos mais tarde, Papa Doc aproveitou a implantação de um novo golpe militar e a renúncia de Magloire para se candidatar à presidência e com o respaldo dos próprios militares tomar o poder.
Um presidente negro com poderes 'sobrenaturais'
Doc, que se gabava por ser o primeiro homem negro e pobre do Haiti a se tornar presidente, consolidou seu poder entre os chefes espirituais regionais da religião vodun (tradição religiosa baseada nos acentrais dos povos Ewe-Fon da África Ocidental). Durante o período em que foi membro de um grupo de médicos financiado pelos Estados Unidos para percorrer o próprio Haiti, na década de 1940, Doc percebeu a importância que o vodun tinha para a população, principalmente entre os moradores das áreas rurais, e passou a usar a religião para construir um culto em torno de sua personalidade e amedrontar seus opositores.
Há relatos de que o presidente tentou por horas induzir a cabeça de um de seus inimigos, o capitão Blucher Phologénes, a revelar os planos de seus inimigos enquanto ele meditava na banheira, vestido apenas com seu chapéu negro.
Mas Doc não cometia torturas aos opositores apenas espiritualmente. Era comum o presidente descer até o porão de seu palácio para assistir prisioneiros políticos serem torturados.
Nenhum outro regime durou tanto quanto o de Papa Doc. Dos 36 presidentes que antecederam o ditador, 23 foram ou mortos ou depostos. Sob um clima de grande terror e sob a proteção constante dos 600 membros de guarda das forças do governo e de 5 milicianos, Doc liderou o Haiti até a sua morte, em 22 de abril de 1971.
Tal pai, tal filho
Com a morte de Papa Doc, o país viu emergir um novo ditador: Jean-Claude Duvalier, o filho de Papa Doc. 'Baby Doc' assistiu o pai comandar o país com mãos de ferro por 12 anos, e naturalmente, deu continuidade ao legado.
Durante o período em que se manteve no poder, Baby Doc matou milhares de opositores e desviou milhares de dólares. O país permaneceu sob o rígido controle da milícia dos bichos-papões e sob a vigilância da guarda “duvalerista”, conhecida como 'os dinossauros'.
O filho do grande ditador chegou a ensaiar uma liberalização na década de 1970, ao criar uma liga haitiana de direitos humanos e propor eleições, mas voltou a dominar o Haiti com rédeas curtas após se casar com Michele Bennet, uma rica herdeira protestante do antigo regime.
Contudo, Baby não foi tão bem sucedido quanto o pai, e acabou destituído em 1986, após uma revolta popular. Deposto, o filho de Doc fugiu com milhares de dólares para a França, onde viveu por anos com a namorada Veronique Roy em uma mansão do litoral sul da França, uma das regiões mais caras e sofisticadas do mundo.
Baby Doc só regressou ao seu país de origem em 2011, mesmo sob ameaças de prisão pelas forças do governo do então presidente René Préval.
O legado da 'era Doc' e a admiração de seu povo
Papa e Baby Doc deixaram seu o Haiti em extrema miséria. Durante seus mandatos, o Haiti viu a escalada de sua deterioração econômica e social como resultado de décadas de isolamento diplomático e do desvio de milhões de dólares de obras sociais. Em 1986, o índice de analfabetismo haitiano figurava entre um dos mais altos do mundo e a saúde pública se encontrava em um estado lamentável: cerca de 90% da população sofria de tuberculose ou desnutrição.
Desde o fim da 'era Doc', a miséria, agravada pelo terremoto de 2010, vem se perpetuando no país. A população está insatisfeita com o atual presidente, Michel Martelly, e há dias vem organizando protestos para pedir sua renúncia. O povo acusa Martelly de não ter feito o suficiente apara aliviar a fome no país, desde que tomou posse em maio de 2011.
Mesmo diante do legado de total miséria deixado por Papa e Baby Doc, existem haitianos que relatam outra versão dessa história. O haitiano Louis, de 40 anos, explica que, embora a situação do Haiti tenha ficado bastante difícil após do terremoto de 2010, o país não se encontra em estado de total desolação, pelo contrário. Segundo ele, os sistemas de saúde e educação haitianos são muito bons, e os problemas detectados em seu país não diferem dos enfrentados outras nações, inclusive o Brasil.
Sua percepção sobre Papa e Baby Doc é oposta à que o resto do mundo tem desses dois ditadores. “Eles são boas pessoas e suas histórias são limpas e suaves, ninguém pode falar mal deles, as pessoas que se opunham a eles e ao atual presidente são pessoas sem ideais, bandidos de terno”, garante o imigrante.
Louis é um dos muitos haitianos que aprenderam na escola a admirar os líderes de seu país. Não importa o que o mundo diga, nos livros de história do Haiti, Papa e Bay Doc são retratados como os 'deuses' que sempre afirmaram ser.
Diante da tamanha adoração de um povo a um líder autoritário, a reflexão que fica é se Papa Doc não estava certo ao afirmar que “o que você chama de democracia em seu país, em outra nação pode ser chamado de ditadura”.