Homem que fugiu de ditadura argentina localiza irmão 40 anos depois
Ismael Suleiman tinha sete anos quando fugiu após ser sequestrado junto com irmão de 4 meses por três homens; a mãe, ativista política, tinha 'desaparecido' dias antes; denúncia anônima e exame de DNA permitiram reencontro.
Quando tinha sete anos, o argentino Ismael Suleiman, hoje de 49 anos, aproveitou um momento de distração de seus sequestradores, pulou o muro e caminhou até a rodoviária da cidade de San Miguel de Tucumán, no noroeste da Argentina.
Ele sabia que seu tio trabalhava ali, em um dos guichês de venda de passagens.
Ismael e o irmão mais novo, de quatro meses, tinham sido levados por três homens da casa onde moravam, no interior da província de Tucumán.
"Lembro como se fosse hoje daquele momento horroroso, quando aqueles três homens nos tiraram de casa à força e nos colocaram num carro. Um deles usava uma boina militar. Foi tudo rápido", contou Ismael à BBC News Brasil.
O sequestro ocorreu dias depois de a mãe deles, uma empregada doméstica e ativista política, ter "desaparecido".
Segundo entidades de direitos humanos, Rosario del Carmen Ramos, que hoje teria 69 anos, continua desaparecida.
"Ainda sonho com ela", disse Ismael, emocionado. "Ainda tenho a esperança de encontrá-la. E sempre tive certeza de que encontraria meu irmão."
Há poucos dias, os dois irmãos se reencontraram. Uma denúncia anônima feita à entidade de direitos humanos Avós da Praça de Maio, criada em 1977 por mulheres que se juntaram para tentar recuperar os filhos dos seus filhos, disse que um vendedor ambulante em San Miguel de Tucumán, capital da província de Tucumán, teria sido criado por pessoas ligadas à ditadura argentina que comandou o país de 1976 e 1983. E que ele poderia ser filho de desaparecidos políticos.
Na Argentina, as campanhas para a localização das pessoas sequestradas durante o regime militar são permanentes. A Avós da Praça de Maio pede, através de anúncios, que o público denuncie quando souber ou desconfiar de casos do tipo. Mesmo pessoas com dúvidas em relação à própria identidade são incentivadas a procurar a entidade.
A campanha mais recente, lançada em julho passado, chamada de "Abraço postergado', foi veiculada em rádios, TVs e cartazes nas ruas do país. O objetivo, como em outras campanhas anteriores, é ajudar pessoas subtraídas de suas famílias na ditadura, e com o nome trocado, a recuperar suas identidades, famílias e histórias biológicas.
Ismael e sua família tinham deixado há anos amostras de sangue no Banco Nacional de Dados Genéticos, que é a base para a identificação das pessoas definidas como "desaparecidas" durante a ditadura militar.
Quando surgiu a denúncia anônima, os dados do vendedor ambulante, que aceitou fazer o exame de DNA, foram comparados com os dados de mais de 300 grupos familiares armazenados na instituição, criada por iniciativa das Avós da Praça de Maio.
Os resultados deram positivo com os da família de Ismael.
O bebê de quase cinco mesestinha sido recebido, da mãe biológica, o nome de Marcos Eduardo Ramos. Hoje, ele tem 42 anos.
"Quando me ligaram para dizer que meu irmão tinha sido encontrado, chorei muito", disse Ismael. Os dois e o outro irmão, Camilo, de 46 anos, que não estava com eles no dia do sequestro, se reencontraram na entidade Avós da Praça de Maio, em Buenos Aires.
"Parecia que não chegaríamos nunca a Buenos Aires de tão nervoso que eu estava", disse Ismael. O voo entre a capital de Tucumán e a capital argentina dura cerca de uma hora. "Parecia uma eternidade", afirmou.
Marcos teve o nome trocado por seus "apropriadores", como são chamadas, pelas entidades de direitos humanos, as família que adotaram filhos de desaparecidos políticos. O nome que a família que o criou lhe deu continua reservado por questões judiciais e porque ele está recebendo ajuda psicológica para se adaptar à nova realidade.
"Todos choramos muito e sem parar quando nos encontramos. Foi muito emocionante. Maravilhoso. Agora, estamos tentando recuperar o tempo perdido", disse Ismael, com a voz embargada e quase inaudível.
Vocês se parecem? "O corpo dele parece com o meu, os gestos e a altura também. Mas o rosto não. Hoje, ele é uma pessoa triste, traumatizada. Espero que a gente fique cada vez mais unido. Já fizemos churrasco para ele aqui em casa. Mas ainda vai demorar para que ele se sinta em casa".
Ismael acha que a história do irmão - e a dele também - teria sido outra se a mãe e eles não tivessem sido sequestrados. Rosario del Carmen já tinha sido levada uma vez pelas autoridades quando estava grávida de Marcos. Mas tinha sido liberada. Daquela segunda vez, no final de 1976, foi diferente. E seu destino continua sendo um mistério. "Se minha mãe e meu irmão não tivessem sido sequestrados, com certeza, meu irmão não seria o homem solitário que é hoje", disse.
Ele contou que os dois têm se falado várias vezes ao dia, ao telefone, desde o reencontro no início deste mês de agosto.
"É estranho, mas é como se sentíssemos saudade daquilo que não nos deixaram viver", disse Ismael, comovido.
Durante estes mais de 40 anos, Ismael e Marcos cresceram na mesma província e algumas vezes moraram a poucas quadras um do outro.
Quando foram sequestrados, recorda Ismael, eles foram levados para uma casa e, ali, separados e levados para lugares diferentes.
A família que se apropriou de Ismael já tinha até dado entrada no cartório da papelada para mudar sua identidade quando ele escapou e foi procurar o tio na rodoviária - como descobriram seus familiares mais tarde.
Ismael trabalha hoje em um emprego temporário colhendo limão no interior de Tucumán. Marcos continua morando na capital da província. Ele é o neto 128 a ser localizado e a ter a identidade recuperada pelas Avós da Praça de Maio. Elas estimam que pelo menos outros 300 ainda vivam, sem saber, com a identidade que não lhes corresponde.
O drama dos recém-nascidos e das crianças roubadas de seus pais durante a ditadura já inspirou vários livros e filmes, como A História Oficial, que ganhou Oscar para Melhor Filme Estrangeiro em 1986.
Segundo historiadores e a própria Justiça argentina, houve um esquema sistemático organizado por militares que envolvia a partos ilegais de mulheres detidas, sequestro dos filhos e sua posterior troca da identidade, como ocorreu com Marcos.
As primeiras denúncias na Justiça surgiram em 1985, logo após o retorno da democracia, no julgamento das juntas militares por crimes durante a ditadura. A partir do final dos anos 1990, foi intensificada a identificação daqueles bebês, com a intervenção da Justiça e de entidades de direitos humanos.
Vários militares foram presos pelo roubo de bebês - entre eles o general Jorge Videla, que comandou a ditadura entre 1976 e 1983 e foi condenado a 50 anos de prisão pelo crime.