As crianças e adolescentes escravizados para plantar maconha no Reino Unido
Stephen é órfão, tinha 10 anos e vivia no Vietnã quando o convenceram a se mudar para o Reino Unido - supostamente onde poderia ter uma vida
Há um ano, a polícia britânica fez uma operação noturna em um lugar insólito: um bunker nuclear abandonado no bucólico vilarejo de Chilmark, no sul da Inglaterra.
Alertados por vizinhos que notaram um cheiro estranho, a polícia, após um mês de vigilância, entrou no local - um antigo refúgio do Ministério da Defesa - e encontrou uma plantação de maconha de magnitude industrial.
Cerca de 20 cômodos foram transformados para a produção em grande escala da droga: havia mais de 4 mil plantas com o valor potencial de quase US$ 3 milhões (cerca de R$ 9,7 milhões em valores atuais) ao ano.
E, encarcerados sem chave atrás de uma porta grossa, estavam três vietnamitas, dois deles adolescentes, que não falavam inglês.
Jardineiros escravos
As autoridades britânicas sabem que essa é uma tendência do crime "estabelecida" no país, segundo disse à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) a Agência Nacional para o Crime (NCA, na sigla em inglês).
De fato, segundo um relatório de 2012 do centro de pesquisas UK Human Trafficking Centre, 96% de todas as pessoas identificadas como vítimas em potencial do tráfico para o cultivo de maconha eram do Vietnã.
Essa prática criminosa só passou a vir a público recentemente.
Uma das histórias que emergiram foi a de "Stephen" - que não estava no bunker de Chilmark mas, antes de ser detido pela polícia, vivia em circunstâncias semelhantes em sua passagem por dezenas de apartamentos e casas no Reino Unido transformados de um dia para outro em plantações de maconha.
Órfão, ele tinha 10 anos e ganhava a vida limpando sapatos e vendendo jornais nas ruas de Hanói, capital do Vietnã, quando o convenceram de que poderia ter um trabalho e uma vida melhores no Reino Unido.
Isso aconteceu há nove anos. Ele calcula que tinha 12 anos quando chegou ao seu destino final, passando antes por Rússia e Polônia, entre outros países.
O vietnamita não sabia exatamente onde havia chegado mas lembra que, a partir de então, o grupo criminoso que o traficou o forçou a trabalhar por quatro anos em plantações de maconha - muitas vezes levando a produção escondida para casa, em condições de escravidão.
Stephen, que contou detalhadamente a sua história para o jornal britânico The Guardian, não sabe quando tempo ficou em cada ponto de produção. Ele também não falava inglês quando a polícia o deteve, com 16 anos.
O idioma foi aprendido depois, quando ele conseguiu ir à escola e começou a normalizar a sua vida.
Por ser menor de idade e vítima do tráfico de pessoas, as autoridades ofereceram-lhe um tradutor e uma família acolhedora - que atualmente o ajuda em seu esforço legal para permanecer no país.
Hoje, Stephen tem 19 anos e seu caso ficou conhecido porque seu pedido de refúgio foi negado pelas autoridades migratórias do Reino Unido.
Mas ele não quer voltar para o Vietnã. À espera dos resultados de seu recurso, o jovem compartilhou detalhes pertubadores das condições nas quais foi obrigado a viver.
'Às vezes, eu era eletrocutado'
Stephen contou que, quando chegou ao Reino Unido, três pessoas o acompanharam para que ele aprendesse o novo trabalho. Depois, o trancaram sem chave e o deixaram sozinho.
O menino tinha que manipular substâncias tóxicas, como fertilizantes, que o faziam passar mal. Ele também tinha que se esquivar de um complicado conjunto de cabos que corriam pela casa para alimentar as poderosas lâmpadas que aqueciam continuamente os espaços onde crescia a maconha.
"Às vezes, eu levava choque elétrico. Às vezes, eu esbarrava com a cabeça nas lâmpadas e queimava meu cabelo e meus braços", disse o jovem ao Guardian.
O vietnamita também contou que as janelas eram cobertas por um grosso plástico isolante, e era impossível ver o exterior.
Assim, ele não sabia se era dia ou noite, nem quanto tempo ele passava entre uma casa e outra. Stephen diz nunca ter tentado fugir porque ele não saberia para onde ir.
Em alguns dias, um grupo de homens vietnamitas vinham fiscalizar o seu trabalho e lhe trazer comida. Se havia problemas com as plantas, ele era agredido.
Segundo a NCA, os criminosos usam diferentes métodos de coerção para manter sob seu controle as as pessoas traficadas sob controle: confiscam documentos, estimulam o medo da polícia ou afirmam que as vítimas devem pagar uma grande dívida para cobrir os custos da viagem ao Reino Unido.
Com o tempo, os traficantes o fizeram fumar maconha e lhe davam álcool com a comida, assim como um pó branco que o fazia se sentir mais forte - e Stephen suspeita se tratar de cocaína.
O adolescente disse que conheceu dezenas de outros jovens traficados durante o cativeiro, desde pessoas mais velhas até um menino de 10 anos.
'A ponta do iceberg'
O caso de Stephen "não é incomum", segundo disse à BBC Mundo Chloe Setter, diretora de políticas e campanhas da ECPAT UK, organização sem fins lucrativos que apoia menores traficados.
Nos últimos cinco anos, mais de 1,3 mil vietnamitas foram identificados por autoridades britânicas como vítimas em potencial do tráfico de pessoas para trabalhos forçados, incluindo o cultivo de maconha, segundo dados da NCA.
Entre eles, mais de 500 eram menores de idade. Mas, segundo um relatório de 2013 do projeto RACE in Europe, um grupo de defesa dos direitos humanos, os dados oficiais são apenas "a ponta do iceberg".
O material denuncia que muitos menores vietnamitas traficados para o cultivo de maconha não eram tratados adequadamente pelas autoridades - inclusive sendo criminalizados como se fossem adultos.
Com frequência, as vítimas desaparecem e acabam voltando a trabalhar para seus traficantes. Isso foi, aliás, o que aconteceu com Stephen na primeira vez em que foi "liberado" pela polícia. Os traficantes o haviam deixado com muito medo das autoridades, lhe fornecendo um número de telefone para caso fosse detido.
Assim o fez e, dois dias depois de ver a luz do sol, seu pesadelo recomeçou.
Vítimas criminalizadas
"Ainda vemos casos de crianças que são presas e processadas nos tribunais", diz Chloe Setter, da ECPAT UK, que mediou o contato de Stephen com sua família acolhedora.
Mas Setter diz que, apesar disso, hoje há uma conscientização maior das circunstâncias a que esses menores são submetidos.
Quando Hai, outro menino vietnamita atendido pela ECPAT UK, foi detido pela polícia ainda adolescente, ele foi internado em uma instituição para jovens deliquentes sob a acusação de produção de drogas e roubo de cabos de eletricidade.
As autoridades avaliaram sua idade e concluíram que ele era um adulto, encaminhando-o à prisão. Ele cumpriu seis meses de uma sentença de um ano e foi da prisão diretamente a um centro de detenção para imigrantes para ser deportado para o Vietnã.
As autoridades com frequência põem em dúvida o fato de vítimas como Hai serem menores de idade.
Para Chloe Setter e Jakub Sobik, porta-voz da organização Anti Slavery, o que prevalece é uma cultura de incredulidade, que tende a ver essas pessoas como criminosas, e não vítimas.
Setter admite que determinar a verdadeira idade de uma vítima do tráfico é difícil, mas que deveria ser dado a elas "o benefício da dúvida, dada a sua vulnerabilidade".
"Não são eles os vilões da história", aponta.
Por outro lado, muitas vítimas chegaram ao Reino Unido como menores de idade, mas quando são identificadas pelas autoridades, são registradas como adultas.
Além disso, para um menor como Stephen, ser reconhecido como vítima do tráfico de pessoas não lhe garante a permissão para viver no Reino Unido. Ao completar 18 anos, essas pessoas devem pedir refúgio político ou enfrentar um processo de deportação.
Essas são as duas opções com as quais Stephen se depara hoje. Em decisão judicial da qual está recorrendo, um tribunal afirmou que sua vida não corre risco no Vietnã, negando a ele o refúgio político.
E, enquanto as vítmas se veem imersas em entraves legais, os traficantes normalmente saem ilesos.
Segundo Setter, entre os obstáculos para a investigação e punição desses criminosos está a dificuldade na obtenção de provas e de testemunhos das vítimas.
Em Chilmark, por exemplo, nenhum dos três vietnamitas encontrados encarcerados dentro do bunker denunciou os seus algozes pelo tráfico de pessoas.