As mulheres que caçam minas terrestres que restaram da guerra civil em Angola
Conflito acabou em 2002, mas até hoje deixa mortos e mutilados no país africano.
Um número crescente de mulheres em Angola está trabalhando para eliminar as minas terrestres deixadas pela guerra civil que se estendeu por 27 anos no país e que ainda causam estragos muito depois do fim do conflito.
"Não quero que a minha filha ou qualquer outra criança seja a próxima vítima de uma mina terrestre", disse Helena Kasongo à BBC em uma videochamada do Moxico, no leste de Angola.
Seu sorriso se abre quando ela fala sobre a filha de três anos, apesar da natureza sombria do assunto.
A criança ainda é muito nova para realmente entender o que a mãe, aos 25 anos, faz como trabalho - arriscar a vida todos os dias no "escritório".
Kasongo, no entanto, está convencida de que a menina um dia entenderá o que a levou a se tornar uma "sapadora" - o termo angolano para pessoas que "limpam" minas.
Ainda hoje angolanos morrem ou sofrem mutilações porque há milhões de minas terrestres e munições não detonadas remanescentes do conflito que terminou em 2002.
O único levantamento nacional sobre o tema, realizado pelo governo angolano em 2014, constatou que cerca de 88 mil pessoas viviam com ferimentos causados por minas terrestres no país.
Organizações como a International Campaign to Ban Landmines (Campanha Internacional para Proibir Minas Terrestres) dizem que o número real pode ser ainda maior, já que não há monitoramento oficial contínuo das ocorrências.
As crianças são, muitas vezes, as principais vítimas.
Há três meses, uma menina de seis anos foi morta e outras seis ficaram feridas em uma explosão na província do Moxico. Segundo a mídia local, as crianças brincavam com uma bomba não detonada que encontraram em um campo sem saberem o que era o objeto.
"Esta é uma história que todos nós conhecemos muito bem. Não há ninguém em Angola que não conheça alguém que se machucou. Precisamos interromper este ciclo para o bem de nosso povo e de nossa nação", acrescenta Kasongo.
Ela trabalha para o Mines Advisory Group (Mag), uma ONG que desde 1989 supervisiona a destruição de minas terrestres e diversas munições não detonadas em 70 países. Um deles é Angola, onde se estima que uma área de 7.300 hectares, equivalente a mais de 10 mil campos de futebol, ainda precisa ser limpa.
Isso não apenas representa um risco à vida, mas também limita as atividades básicas nas áreas afetadas, incluindo agricultura e construção.
É algo que prejudica a economia em lugares já em dificuldades - mais da metade dos angolanos vive abaixo da linha de pobreza internacional do Banco Mundial (ganhando o equivalente a menos de US$ 2, ou R$ 10, por dia), apesar da existência de uma indústria petrolífera em expansão.
"As minas terrestres custam vidas e membros, mas também dificultam o desenvolvimento e impedem que os deslocados retornem para suas casas após o conflito", disse o CEO da Mag, Darren Cormack, em um comunicado.
"Eles prendem as comunidades não apenas no medo, mas também na pobreza."
As mulheres estão entre os grupos mais afetados pela pobreza, o que ajuda a explicar por que muitas têm se tornando "sapadoras".
O trabalho oferece salários que podem ser considerados bons para os padrões do país, variando de US$ 440 a US$ 600 (R$ 2.225 a R$3.034) por mês, e há uma perspectiva estável de trabalho, dada a quantidade de terra ainda a ser coberta.
As mulheres já representam quase 40% do quadro de funcionários dedicados à desminagem na Mag em Angola e há mais de 600 mulheres que atuam nesta área para a Halo Trust, outra organização de desminagem que opera no país.
"A ação humanitária contra as minas tem sido tradicionalmente um setor dominado por homens, em parte devido ao descarte especializado de munições explosivas e aos antecedentes militares de muitos funcionários", explica Cormack.
"Procuramos recrutar e treinar proativamente mulheres desminadoras em todos os nossos programas como parte de uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo para lidar com o desequilíbrio de gênero."
Kasongo e os colegas passam em média seis horas por dia e seis dias por semana vasculhando áreas em busca de minas terrestres ou explosivos.
Os funcionários usam equipamento de proteção pesado e, usando um detector de metais, varrem metodicamente um pedaço de terra para encontrar os perigos ocultos. Depois que os locais são mapeados, especialistas em bombas entram para desarmar os explosivos.
As mulheres desafiam uma série de estereótipos de gênero e enfrentam pressão de amigos e familiares.
"Minha mãe e meus irmãos não queriam que eu virasse sapadora de jeito nenhum. Disseram que não era coisa que mulher devia fazer", diz Joaquina Barbosa, 27, que também trabalha na Mag.
"Mas eu estava desempregada há cinco anos e queria trabalhar fazendo algo que me satisfizesse. Felizmente, não tive um parceiro para tentar me impedir. [No futuro,] qualquer homem terá que me aturar fazendo um trabalho perigoso", acrescenta ela, com uma gargalhada.
O fato de terem coragem não significa que sejam imunes ao medo. Ngoie Graça Mulunda, de 35 anos, que exerce a função há quase cinco anos, admite estar sempre alerta para o perigo.
"Só relaxo depois de largar o equipamento. O medo é um companheiro constante, mas também é o que faz você ficar atento para não errar", afirma.
"Neste tipo de trabalho, seu primeiro erro pode ser o último."
Acidentes são raros, mas não inéditos. Segundo a Mag, houve apenas dois feridos e nenhuma morte de desminadores desde 2012, quando começaram a ser feitos registros completos.
Angola, no entanto, ainda tem um longo caminho a percorrer para se livrar das minas.
O país é membro da Convenção de Minas Antipessoal desde 1997, ano em que a princesa Diana fez uma famosa visita ao país para aumentar a conscientização sobre a questão das minas terrestres.
Nos termos do tratado, o governo angolano se comprometia a concluir a desobstrução total do território até dezembro de 2013, mas o prazo original foi prorrogado e está atualmente definido para 2028.
Uma das razões para o atraso, segundo a Mag, é a falta de recursos de doações, que responde pela maior parte do financiamento das atividades de desminagem em todo o mundo.
A escala global do problema é imensa: pelo menos 5.544 pessoas foram mortas ou feridas por minas em todo o mundo em 2021, segundo a International Campaign to Ban Landmines. A maioria das vítimas eram civis, metade das quais eram crianças.
As sapadoras de Angola, porém, já sonham em levar sua experiência para outros lugares, assim que o trabalho em seu próprio país terminar.
"Eu realmente gostaria de ajudar outros países a se livrarem de suas minas terrestres e evitar que mais pessoas sofram ferimentos ou morram", diz Kasongo. "Só as pessoas que moram em um lugar onde o perigo está ao lado podem realmente entender esse sentimento."