Kai dang ku, a tradicional calça aberta para crianças que perde espaço para fraldas na China moderna e gera debate
Calças abertas nos fundilhos mantêm apelo para parte da sociedade apesar da revolução das fraldas descartáveis a partir dos anos 2000.
A cena da criança pequena que caminha ainda trôpega entre os primeiros passos, abaixa-se em plena luz do dia — na rua, no parque ou até mesmo no shopping — e alivia-se com a naturalidade de quem vai ao banheiro, talvez seja a que mais choque os "laowai" (como são chamados os "gringos") na Pequim contemporânea.
Para que tenham essa liberdade de movimentos, muitos bebês chineses usam, desde bem cedo, a tradicional "kai dang ku", ou a calça aberta nos fundilhos, em tradução livre.
É verdade que hoje elas são menos numerosas do que no passado recente, mas estão longe de passar despercebidas. Trata-se de um fenômeno que muitos estrangeiros têm dificuldades em entender. Para a maioria deles, é um hábito pouco higiênico, antissocial, que acaba prejudicando as crianças.
"Estive na semana passada no The Place, um dos shoppings mais luxuosos daqui de Pequim, e vi uma criança se abaixar para fazer número dois. Em seguida, vi a mãe recolher o que ficou para trás. Fiquei horrorizada. É muito estranho", conta uma advogada brasileira que acaba de se mudar para a cidade.
Engana-se quem acha que essas calças chinesas têm só desvantagens. Educadores chineses (e estrangeiros também) reconhecem que os bebês que usam esse tipo de roupa podem aprender mais depressa o treinamento do banheiro, com todos os seus rituais e movimentos para se aliviarem.
Não é apenas fazer o que tiver vontade, como acontece com os que usam fralda. Os pais, ou avós que, em geral, cuidam das crianças com mais frequência na China, costumam repreendê-las quando fazem suas necessidades no local errado. Com isso, elas também passam a ter um entendimento mais rápido de quando e onde fazer. Na China, as crianças são treinadas a partir de três a quatro meses de idade, enquanto, no Ocidente, depois de um ano e meio de idade.
"É preciso ficar em cima. A gente mesmo aprende a identificar quando estão fazendo as necessidades. Sabemos identificar os sinais", diz A. Zhang, de 51 anos, que é avó e trabalhou como babá por muitos anos.
Tudo isso leva muitos — "laowai" inclusive — a criar fóruns de debates na internet para discutir o assunto.
Com a ascensão de dezenas de milhões chineses à classe média, o desenvolvimento dos grandes centros urbanos e novos padrões de comportamento, essas calças tendem a sumir ou a se restringir às áreas rurais mais afastadas.
A médio prazo, contudo, ainda devem ter uma boa sobrevida. Há inúmeras ofertas de diferentes modelos nas lojas online e físicas por toda a China. Em um conhecido mercado de roupas nas proximidades do Jardim Zoológico da capital é difícil encontrar macacões totalmente fechados para bebês no estande das roupas infantis.
Muitos fabricantes sabem que as "kai dang ku" têm o seu apelo e são populares em uma camada importante da sociedade, mesmo depois da revolução das fraldas descartáveis no país no início dos anos 2000.
"É muito comum. Não dá para dizer uma marca específica que faça esse tipo de roupa. São muitas. Existem menos crianças usando-as aqui em Pequim, mas esse ainda é um hábito bem popular", afirma Sue Chen, de 26 anos, professora.
Contaminação
É claro que acidentes acontecem e acontecerão, em casa ou na rua. Não raro, veem-se crianças agachadas nas ruelas dos "hutongs" (as casas tipicamente chinesas nos bairros tradicionais) aliviando-se como querem, sem qualquer repreensão - o resultado é sujeira em áreas públicas, mau cheiro e chamariz para bichos e doenças. Isso é ainda mais frequente no interior do país.
Em um condomínio considerado caro no centro de Pequim, para onde cada vez mais chineses se mudam como símbolo de status, foi afixado no parquinho um bilhete pedindo às mães que não deixem os pequenos com a "kai dang ku" usar o escorregador. A medida teria por objetivo evitar que as outras crianças, que costumam descer ou subir no brinquedo encostando as mãos - e até a boca -, sofressem algum tipo de de contaminação.
Aos olhos da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), a "kai dang ku" tem benefícios. As partes íntimas concentrariam mais Yang (que, com o Ying, forma polos opostos de energia) do que as outras, segundo a médica de MTC Yiting Huang. E permitir que as crianças o liberem para que mantenham o equilíbrio com o Ying é visto como favorável para a saúde e para reduzir a incidência de doenças.
Na avaliação de Huang, a calça, que foi criada quando ainda não havia fraldas descartáveis, deixa um espaço livre para o corpo dos bebês que não conseguem controlar ainda as suas necessidades.
"Se não trocar (a fralda) na hora, ficam sujos e podem ter infecções", diz a médica, que, ainda assim, acha mais higiênico para as crianças o uso das fraldas descartáveis.
Há quem diga que a calça furada é benéfica sobretudo para meninos, porque seus órgãos sexuais se desenvolveriam ao ar livre, sem a pressão ou o calor, o que aumentaria a fertilidade dos homens por deixar o saco escrotal em uma temperatura menos quente do que o resto do corpo.
Para muitos médicos, o hábito de vestir esses modelos vem de um período em que a água deveria ser destinada às plantações, não existiam as fraldas descartáveis no país. Depois, quando estas passaram a existir, custavam muito caro.
'Ecoroupas'
Hoje, essas calças ainda podem pesar no orçamento de quem mora no interior. Mas começa a surgir uma espécie de consenso de que as "kai dang ku" devem ficar, como outros hábitos chineses, no passado.
"Em primeiro lugar, não é higiênico para os órgãos sexuais e sistema urinário das crianças. Em segundo, não protege a intimidade das crianças", avalia a pediatra do hospital de crianças da Província de Shanxi, Dra. Han Zhiyin.
É indiscutível que as "kai dang ku" poupam o meio ambiente das toneladas e toneladas de lixo produzidas pelas fraldas descartáveis, principalmente em um país como a China (com seus quase 1,4 bilhão de habitantes), onde os números de consumo e de rejeitos sempre assustam.
Nos Estados Unidos e na Europa há um movimento de pais que defendem a volta das fraldas de pano justamente para proteger o ambiente. Estima-se que os consumidores joguem foram 20 bilhões de fraldas descartáveis por ano, algo em torno de 3,5 milhões de toneladas de lixo.
Fraldas como símbolo de status
Esse é um problema com o qual os chineses terão de lidar para além das dificuldades com o excesso de produção de lixo no país.
Além da simpatia de médicos pelas fraldas descartáveis, há ainda o fato de estas terem se tornado um símbolo de status. Isso fez da China um verdadeiro Eldorado para os grandes fabricantes mundiais.
As vendas anuais dos modelos descartáveis crescem 50% por ano, ou mais, a depender da marca. Trata-se de um mercado estimado em US$ 200 milhões por ano, de acordo com números de 2015.
Segundo a consultoria AB, a revolução começou em 1998 na China, com a entrada de uma grande marca ocidental no mercado, acompanhada de uma forte campanha de marketing para ensinar as mães a usarem essas fraldas descartáveis.
A tendência é que esse mercado continue a crescer, tanto para as fabricantes estrangeiras, quanto para as chinesas - com destaque para marcas premium, ainda mais caras. Elas fazem sucesso porque também são prova de ascensão social.
Quanto às "kai dang ku", elas ainda devem resistir por algum tempo. Ainda que virem história, há quem diga que terão inspirado o movimento "comunicação de eliminação", que vem ganhando força entre americanos. Trata-se dos sinais usados pelos adultos para se comunicar com as crianças que estão aprendendo a usar o banheiro antes mesmo que aprendam a falar.