Por que a Turquia não intervém contra o Estado Islâmico?
O país faz três exigências ao Ocidente: uma zona de exclusão aérea, uma zona segura paralela a essa e o treinamento de rebeldes sírios moderados
O ministro de Relações Exteriores da Turquia, Mevlüt Çavusoglu, disse nesta quinta-feira que "não é realista" pensar que a Turquia possa mandar tropas sozinha para uma operação em solo contra o autodenominado Estado Islâmico, que está tentando tomar Kobane, uma cidade síria de importância estratégica na fronteira com o país.
"Estamos conversando. Quando houver uma decisão comum, a Turquia não vai deixar de fazer sua parte", disse o chanceler turco.
Após um encontro em Ancara com o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, Çavusoglu pediu a criação de uma zona de exclusão aérea na fronteira turca com a Síria.
A ideia da zona de exclusão seria proteger os refugiados que estão fugindo da Síria, juntamente com a criação de uma zona neutra na fronteira. Como o Estado Islâmico não tem força aérea, o principal prejudicado pela criação de tal zona de exclusão seria a Aeronáutica síria.
As declarações foram feitas após os militantes do Estado Islâmico terem avançado em Kobane, passando a controlar um terço da cidade de maioria curda, de acordo com o que foi relatado à BBC por uma autoridade local.
A mesma autoridade disse também que as forças curdas defendendo Kobane precisam urgentemente de mais armas para combater o Estado Islâmico.
Os militantes, porém, teriam sido forçados a recuar nas últimas horas para subúrbios de Kobane por força de novos bombardeios americanos.
Pressão
Até agora, os tanques da Turquia, a segunda maior força militar da Otan, permanecem do outro lado da fronteira próxima a Kobane. E o país tem impedido que combatentes curdos cruzem para a Síria para se juntar à luta contra o Estado Islâmico.
O parlamento turco já autorizou, na semana passada, uma ação militar contra os jihadistas no Iraque e na Síria, mas até agora não agiu.
O ministro da Defesa disse também na semana passada que o governo não tinha nenhum plano imediato para enviar tropas para o exterior ou aceitar tropas estrangeiras no país.
Isso, apesar da pressão de países ocidentais para que a Turquia participe da ofensiva contra o grupo e ajude as forças curdas em Kobane. "A Turquia certamente pode ajudar", disse o secretário de Defesa britânico, Michael Fallon. "Este é um problema para a Turquia."
Um alto funcionário americano disse ao jornal The New York Times que "há uma crescente ansiedade sobre a Turquia atrasando a sua ação para evitar um massacre a menos de dois quilômetros de sua fronteira."
"Depois de todas as condenações da catástrofe humanitária na Síria estão inventando razões para não agir para evitar outra catástrofe", disse o funcionário, que falou anonimamente para evitar criticar publicamente um aliado, segundo o jornal. "Não é assim que age um aliado da Otan enquanto há um inferno no outro lado da fronteira", acrescentou.
Mas o que explica a postura turca?
Fronteira crucial
Se conseguir controlar Kobane, o domínio do grupo jihadista alcançará um longo trecho de 900 km na fronteira entre os dois países.
A divisa tem sido a principal rota de entrada de combatentes estrangeiros que chegam à Síria para lutar contra o regime do presidente sírio Bashar al-Assad, em meio a uma guerra civil que já dura mais de três anos, e para o contrabando de petróleo dos campos controlados pelo EI.
Cerca de 400 pessoas morreram e mais de 160 mil sírios, em sua maioria curdos, fugiram da cidade nas últimas três semanas, quando o EI lançou uma ofensiva para tomá-la.
Na terça-feira, pelo menos 12 pessoas foram na Turquia mortas em protestos curdos pela falta de apoio militar do governo.
O presidente, Recep Tayyip Erdogan, disse na terça-feira que só com bombardeios aéreos não seria possível derrotar os cerca de 30 mil combatentes do Estado Islâmico que controlam partes do território do Iraque e da Síria, e que era necessária uma operação em terra.
"Alertamos o Ocidente. Queremos três coisas: uma zona de exclusão aérea, uma zona segura paralela a essa e o treinamento de rebeldes sírios moderados", disse ele.
Ambivalência turca
O conflito perto de sua fronteira em Kobane ilustra a ambivalência do governo turco.
"A inação de Erdogan pode ser explicada pelos dilemas únicos que o EI representa para a Turquia. Cada resposta política destinada a resolver esses dilemas cria novos desafios, que vão da política interna à questão latente da autonomia curda", escreveu Steven A. Cook, do centro de estudos americano Conselho de Relações Exteriores, na revista Foreign Policy.
"Não há saída para Erdogan", acrescentou. "Ação ou omissão: ambas envolvem ameaças à segurança e riscos políticos que o presidente turco preferiria evitar."
Ele se opõe ao governo de Assad e, apesar de ver o EI como uma ameaça, não está confortável com passar a ideia de que reforça o poder do presidente sírio, nem interesse a ele fortalecer a capacidade militar dos curdos, com quem o governo em Ancara mantém um velho conflito que deixou mais de 40 mil mortos.
A Turquia teme que as armas enviadas aos curdos iraquianos pelos países ocidentais acabem nas mãos do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, considerado um grupo terrorista pela Turquia, EUA e União Europeia), que se juntou ao combate ao EI no norte do Iraque.
Em setembro, quando o EI avançou sobre a cidade de Kobane, no Curdistão sírio, a polícia turca entrou em confronto com curdos turcos, que queriam atravessar a fronteira para ajudar seus correligionários.
Mais de 160 mil pessoas cruzaram a fronteira e no total a Turquia abriga cerca de um milhão de refugiados sírios.
Isso tem um custo econômico, estimado em US$ 3,5 milhões até o momento, mas também político, segundo Selin Girit, do serviço turco da BBC.
"Depois de lutar contra os guerrilheiros do PKK curdo no sudeste do país por quase 30 anos, a Turquia não quer que consolidem seu poder na região nem ver armas ocidentais nas mãos do PKK", explica Girit.
Sunitas
A Turquia tem negociado um acordo de paz com o PKK de forma intermitente durante anos, e a última coisa que quer ver é a destruição deste processo.
O PKK pode sair fortalecido da luta contra o EI, mas os curdos, que representam cerca de 20% da população do país, parecem querer que a Turquia se envolva militarmente na Síria como uma pré-condição para prosseguir no processo de paz, acrescenta.
Hugh Pope, vice-diretor do programa de Europa e Ásia Central da organização internacional International Crisis Group, mencionou outras preocupações possíveis para as autoridades turcas.
"Uma parte significativa do público turco acredita que os sunitas da Síria e no Oriente Médio são vítimas de injustiça e que, mesmo que as táticas do EI sejam repugnantes, o EI representa um legítimo apelo sunita."
"Apesar de algumas pesquisas de opinião pública mostrarem que a maioria dos turcos vê o EI como uma ameaça, um funcionário turco disse ao Crisis Group que uma pesquisa interna do governo mostrou mais simpatia pelo EI no eleitorado sunita do partido do governo. Isso torna difícil para o governo turco atacar diretamente o EI".