Salão de beleza ajuda paquistanesas atacadas por ácido
Pelo menos 160 mulheres foram atacadas com ácido apenas em 2014; embora a pena varie de 14 anos de detenção à prisão perpétua, poucos agressores são condenados
Esteticistas trabalham duro em um salão de beleza em uma área nobre de Lahore, no Paquistão. O som de conversas e risos das mulheres se mistura aos ruídos de secadores de cabelo.
À primeira vista, ninguém associaria o local a vítimas de ataque de ácido. Mas, por mais de uma década, o salão de Musarat Misbah tem sido um refúgio para mulheres atacadas.
Tudo começou quando uma mulher foi ao salão de Musarat com o rosto coberto. "Quando ela tirou o véu, tive que sentar. Minhas pernas ficaram bambas", conta Musarat. "Diante de mim estava uma mulher sem rosto. Ela tinha perdido olhos e nariz e o pescoço e o rosto ficaram grudados. Ela não conseguia mexê-los."
A mulher esperava que Musarat, uma veterana do mercado de beleza, a ajudasse a melhorar sua aparência.
150 cirurgias
Musarat chamou médicos e pediu que ajudassem a mulher - e assim começou seu trabalho de caridade com vítimas de ataque por ácido.
Nos últimos 10 anos, Musarat ajudou centenas de vítimas. Com as doações, ela paga o tratamento médico das vítimas e, em seguida, treina-as para algum tipo de trabalho. Hoje, algumas estão empregadas no próprio salão.
Bushra Shafi é um das esteticistas mais experientes - e também uma sobrevivente de ataque por ácido. Ela foi atacada pela família do marido como punição por não pagar dote suficiente.
"Meu marido, meu cunhado e meu sogro derramaram ácido em mim, enquanto minha sogra me prendeu pelo pescoço. Eles não me levaram para o hospital por 10 dias. Meu rosto inchou tanto que virou só um grande pedaço de carne", disse Bushra.
Ela procurou Musarat para obter ajuda. Seus olhos foram queimados fechados. Ela tinha perdido o nariz e partes de suas orelhas haviam derretido.
A mulher passou anos se submetendo a operações e agora, depois de 150 cirurgias, teve a chance de começar uma nova vida. "Sou grata", diz ela. "Recuperei minha visão, minha audição, tenho um nariz com o qual posso respirar e uma língua para falar de novo." As cicatrizes no rosto não escondem seu sorriso enquanto ela fala.
A instituição de caridade de Musarat é uma das poucas no Paquistão que assumiram essa causa. Ela diz que o governo precisa fazer muito mais para ajudar essas mulheres. "Por ser uma questão relativa ao sexo feminino, vai logo para a parte de baixo da lista de prioridades do governo. Além disso, eles dizem que isso mancha a imagem do nosso país. É por isso que é abafado e varrido para debaixo do tapete", diz.
Até 2011, ataques com ácido não eram sequer crime no país. Mas mesmo após a lei ser alterada - a pena vai de 14 anos de detenção à prisão perpétua - poucos são condenados.
Dias antes do casamento
Houve pelo menos 160 ataques com ácido registrados só neste ano, mas instituições de caridade dizem que o número real é provavelmente muito maior.
Muitas vítimas não denunciam porque têm medo de ser atacadas novamente. E mesmo quando raros casos são registrados e chegam aos tribunais, os autores raramente são condenadas.
"Por causa do estigma social há muita pressão sobre as vítimas e suas famílias", diz Saad Rasool, um advogado trabalhando em uma nova lei para criminalizar ataques com ácido. "Muitas famílias fazem acordos fora do tribunal e ninguém é condenado", acrescenta.
Huma Shahid foi atacada em janeiro. Professora, ela voltava da universidade quando dois homens jogaram ácido nela, já do lado de fora de sua casa, e fugiram em uma moto. "Foi 10 dias antes do meu casamento", disse ela. "Eu estava prestes a casar com um homem que me adorava, mas, de repente, minha vida mudou."
Huma passou meses no hospital e diz que ainda precisa de cirurgias. Seu rosto ainda está coberto com uma máscara de proteção, que ela esconde com um lenço. Ela diz que o homem que a atacou com ácido ainda está foragido.
Bibi Aisha: a jovem afegã Bibi Aisha tornou-se mundialmente conhecida após seu rosto ter sido desfigurado aos 18 anos pelo marido, na província de Uruzgan, Afeganistão. O homem era simpatizante do Talibã e cortou a orelha e o nariz dela por ter reclamado aos seus pais sobre maus tratos dos sogros. Ela havia protestado contra o costume de seu país, adotado por sua família, que a deu como presente ao noivo quando tinha apenas 12 anos. Em agosto de 2010, Bibi Aisha foi capa da Time. Ela passou por uma cirurgia de reconstrução do nariz após o incidente
Foto: Time / Divulgação
Banaz Mahmod: a morte da jovem Banaz Mahmod, pelo chamado crime de honra, causou comoção mundial após a produção do filme-documentário "Banaz: A Love Story", de 2012, dirigido por Deeyah Khan. A jovem curda, de 20 anos, foi estrangulada em janeiro de 2006 no sul de Londres pelo pai e tio, nascidos no Iraque. O corpo dela foi encontrado enterrado dentro de uma mala no jardim da casa da família. Antes da morte, ela procurou a polícia dizendo estar sendo perseguida. "Estão me seguindo. Se alguma coisa me acontecer, são eles", disse aos oficiais. Banaz foi morta por ter se apaixonado por um homem, que não era aquele para quem estava prometida
Foto: Daily Mail / Reprodução
Cartaz do filme-documentário "Banaz: A Love Story", de 2012, dirigido por Deeyah Khan. O filme conta a história da jovem de 20 anos que foi assassinada pela família por, supostamente, ter se apaixonado por um homem
Foto: Wikipédia
Waris Dirie: assim como 99% das meninas da Somália, a somaliana Waris Dirie teve a genitália mutilada quando tinha apenas 5 anos. Ela conta que aquele foi o pior dia de sua vida e que quase morreu por causa do sangramento após o corte. Dirie fugiu da Somália quando tinha 13 anos, pois teria de se casar com um homem bem mais velho, em troca de 5 camelos. Ela fugiu para Londres onde, aos 18 anos, iniciou carreira de modelo. Depois de contar sua história publicamente, a ex-top model foi convidada a ser Embaixadora da ONU contra a prática de mutilação. Em 2002, ela abriu uma fundação que luta contra a mutilação genital feminina em vários países do mundo - a Desert Flower Foundation (Fundação Flor do Deserto)
Foto: Arquivo Fundação Flor do Deserto / Divulgação
Filme "Desert Flower" conta a história de Dirie, uma mulher somaliana que foge de seu país para Londres, por causa de um casamento forçado aos 13 anos; ela se tornou top model e causou uma "revolução" ao levantar o tema da mutilação genital pelo mundo
Foto: Arquivo Fundação Flor do Deserto / Divulgação
Malala Yousafzai: a estudante paquistanesa ficou internacionalmente conhecida por seu ativismo pelos direitos à educação e das mulheres, iniciado ainda quando criança. Em 2009, com quase 12 anos, Malala escreveu para a BBC, com um pseudônimo, detalhando sua vida dentro do regime do Talibã. Malala foi baleada na cabeça e pescoço em 9 de outubro de 2012, durante uma tentativa de assassinato, por talibãs armados, quando voltava para casa em um ônibus escolar. Ela passou inconsciente por quase dois meses, em estado crítico, porém, com a melhora do quadro, foi enviada para o Queen Elizabeth Hospital, em Birmingham, Inglaterra, para a reabilitação intensiva. Hoje, Malala vive no Reino Unido, após o Talibã reiterar desejo de matar ela e seu pai
Foto: AP
Hatun Surucu: era uma mulher curda que vivia na Alemanha, cuja família era originalmente de Erzurum, na Turquia. Surucu foi assassinada em Berlim em 2005, com 23 anos, por seu irmão mais novo, em um crime de honra, pois havia se divorciado do primo, a quem foi forçada a se casar aos 16 anos
Seu assassinato inflamou um debate público sobre o casamento forçado de famílias muçulmanas. Em outubro de 1999, Surucu fugiu da casa de seus pais em Berlim, encontrando refúgio em uma casa de cuidados a mães menores de idade. A curda frequentou a escola e se mudou para seu próprio apartamento no bairro de Tempelhof, em Berlim. Na época de seu assassinato, ela estava no final de um curso para se tornar um eletricista e namorava um alemão
Foto: Die Welt / Reprodução
Songol Surucu, irmão de Alpaslan e Mutlu Surucu, faz o sinal de vitória para os fotógrafos enquanto espera por seus dois irmãos fora de um tribunal em Berlim depois terem sido absolvidos da acusação da morte de sua irmã, Hatun Surucu, em 13 de abril de 2006. Um terceiro irmão, Ayhan Surucu, que era menor de idade na época do crime, confessou e foi condenado a 9 anos de prisão
Foto: Getty Images
Farzana Iqbal: a paquistanesa de 25 anos foi apedrejada até a morte por sua família do lado de fora de um dos principais tribunais do Paquistão no dia 27 de maio de 2014. Sua sentença de morte por honra aconteceu por ter se casado com o homem que amava.
Ela estava esperando a abertura da Alta Corte na cidade de Lahore, leste do país, quando um grupo de dezenas de homens a atacou com tijolos. O pai dela, dois irmãos e um ex-noivo (que é seu primo) estavam entre os agressores. Todos os suspeitos, exceto o pai, escaparam.
Farzana sofreu severos danos na cabeça e morreu no hospital. Seu marido disse que a polícia assistiu à cena e não fez nada para impedir os agressores. Ela estava grávida.
Foto: Reuters
Amina Bibi: a paquistanesa de 17 anos morreu no dia 14 de março de 2014 após atear fogo no próprio corpo depois de a polícia ter soltado 3 dos 5 homens que teriam a estuprado no mês anterior. A adolescente teria recorrido a ativistas de seu país para tentar recorrer à decisão do tribunal de Muzaffargarh, leste do país. Sem conseguir agir, ela colocou se imolou em frente a uma delegacia de polícia como forma de protesto.
Foto: Reuters
Meriam Yahia Ibrahim Ishag: a sudanesa de 27 anos foi condenada à forca em seu país por apostasia e adultério no dia 15 de maio de 2014. O tribunal deteve a mulher, que estava grávida e deu à luz na prisão, por ser cristã e não aceitar se converter ao islamismo. Ela terá a sentença cumprida dentro de dois anos. Meriam é casada com um homem cristão.
A condenação à morte da jovem por um tribunal de Cartum provocou uma onda de indignação e protestos. Segundo militantes de direitos humanos, a jovem, presa há 4 meses, permanecerá detida no presídio para mulheres de Ondurman, maior cidade do Sudão.
Foto: Daily Mail / Reprodução
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Huma diz que não consegue olhar seu rosto no espelho desde o ataque. "É tão doloroso. Fiquei chocada com a brutalidade do crime. As pessoas dizem que sou uma mulher forte. Mas não sou tão forte a ponto de me ver assim", disse ela.
Huma acrescenta que nunca esperou que isso pudesse acontecer com ela, pois acreditava que ataques com ácido fossem um problema de pessoas das áreas mais pobres, menos educadas.
"Eu acho que não é sobre ser educado ou não. É uma mentalidade. As pessoas acreditam que esses ataques contra mulheres são justificados. Elas são consideradas um sexo mais fraco", disse ela.
Huma levou seu caso à Justiça. Ela diz que, apesar de tudo, quer continuar com sua vida e seu trabalho - mas nem sempre é fácil.
"É muito frustrante perceber que a pessoa que fez isso comigo ainda não foi pega. Às vezes me sinto impotente."
Apesar de ainda ter uma série de operações pela frente, Huma diz que espera um dia ser capaz de se olhar no espelho novamente.
Entre os dias 27 e 29 de outubro, a BBC promove o debate "100 Women", que reúne 100 mulheres que tiveram destaque em suas áreas. O projeto traz uma série de reportagens mostrando a vida de diferentes mulheres pelo mundo. Participe do debate no Facebook e no Twitter usando a hashtag #100Women.