Assassinatos de 149 mineiros revelam corrida do ouro com tortura e desmatamento na Venezuela
A busca por ouro e diamante em uma das áreas mais ricas em minerais da Venezuela virou um pesadelo para os que deixaram suas cidades na expectativa de uma oportunidade de prosperar no próprio país.
A busca por ouro e diamante em uma das áreas mais ricas em minérios da Venezuela virou um pesadelo para os que deixaram suas cidades na expectativa de uma oportunidade de prosperar no próprio país. O lugar, sem água corrente, luz e banheiros, onde crianças trabalham, é controlado por quadrilhas, chamadas de "sindicatos", que mandam nos mineiros inexperientes. Estes são alvos de castigos cruéis, "como tiros nas mãos" e "assassinatos", quando desobedecem seus empregadores.
A região do Arco Mineiro do Orinoco (AMO), entre os Estados de Bolívar, do Delta Amacuro e do Amazonas, na fronteira com o Brasil, registrou a morte de pelo menos 149 mineiros desde 2016. A área de garimpo é alvo de denúncias de prostituição e de exploração sexual de adolescentes e de tráfico de mulheres e passou a ser uma ameaça para comunidades indígenas com a proliferação da malária e do mercúrio e a presença de grupos armados e casos de violência.
A situação de calamidade integra o relatório da alta comissária de Direitos Humanos das Nações Unidas, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, divulgado na semana passada.
"As pessoas que trabalham na região do Arco Mineiro do Orinoco estão presas em um contexto generalizado de exploração trabalhista e altos níveis de violência por parte de grupos criminosos que controlam as minas. As pessoas entrevistadas pelo ACNUDH (equipe do organismo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos) indicaram que os que não acatam as regras impostas pelas quadrilhas são alvo de castigos corporais. Os castigos incluem assassinatos", diz o relatório.
O documento afirma que os grupos criminosos atuam com o beneplácito de comandantes militares em troca de propinas. Essa região imensa, que representa cerca de 12% do território nacional, foi criada, oficialmente, por um decreto do presidente Nicolás Maduro, em 2016. O governo a batizou de área de "desenvolvimento estratégico". Mas a empreitada vem sendo criticada por entidades de ecologistas. Em suas redes sociais, opositores, como o deputado Americo de Grazia, do Estado de Bolívar e crítico de Maduro, se referem aos desmatamentos e a outras irregularidades provocados pela mineração, como "Arco Mineiro de Morte" (Arco Minero de la Muerte), "ouro de sangue" ou "ecocídio" (dano ambiental).
Opositores denunciam ainda que entre os "grupos criminosos" estariam integrantes das guerrilhas colombianas, mas o relatório da ONU não cita estes grupos textualmente.
Em entrevista à BBC News Brasil, o biólogo venezuelano Alejandro Álvarez, coordenador geral da ONG Clima21-Ambiente e Direitos Humanos, cujo trabalho foi citado no relatório da ONU, disse que, na sua visão, o documento deixou de incluir mais dados comprovados por pesquisadores de diferentes nacionalidades sobre a situação na região citada por Bachelet.
"O relatório poderia ter incluído ainda mais detalhes que estão disponíveis sobre quais grupos criminosos estão afetando a região da Venezuela. Existem documentos sérios sobre isso. E a parte da informação ambiental foi insuficiente. Faltou incluir, por exemplo, o nível de desmatamento na região (do Arco Mineiro do Orinoco)", disse o especialista, que está estudando o impacto do mercúrio e outros fatores no ambiente venezuelano.
'Mão cortada' e 'descalços'
O relatório das Nações Unidas, no entanto, cita detalhes da crueldade vigente nesta corrida do ouro venezuelano. O documento cita entrevistas com ex-mineiros e testemunhas da violência no local, além de fazer referências a investigações e outras denúncias prévias que já apontavam a série de males no Arco Mineiro do Orinoco. Informa que os mineiros são inexperientes neste ramo e entram nas minas sem equipamentos e até descalços.
No texto, são citados vários exemplos de crimes que ocorreram na zona do garimpo, nos últimos dois anos, entre 2018 e 2020.
"Um mineiro apanhou em público por roubar um cilindro de gás; um jovem levou tiros nas mãos por roubar um gramo de ouro; uma mulher levou uma surra por furtar um telefone de um dos integrantes do sindicato; um mineiro teve uma mão cortada por não ter declarado uma pepita de ouro", informa-se no relatório da ONU que foi apresentado aos 47 estados membros do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, na Suíça. A série de crimes, descritos no documento, inclui, segundo informação recebida pelo organismo, o assassinato de dois adolescentes, executados após terem sido acusados de serem agentes infiltrados de um 'sindicato' adversário.
Os dramas ocorrem em um país que tem sido notícia por suas amplas dificuldades políticas, econômicas e sociais, que provocaram a saída de milhares de venezuelanos do país e que, em muitos casos, estão retornando à terra natal diante das dificuldades com a pandemia.
Fossas clandestinas
O relatório aponta ainda para o fato de corpos de mineiros mortos será jogados em fossas clandestinas. "Segundo as informações recebidas pelo ACNUDH, é frequente que cadáveres de mineiros sejam jogados em poços abandonados que funcionam como fossas clandestinas. O ACNUDH documentou cinco casos de pessoas que desapareceram enquanto trabalhavam nas minas entre 2016 e 2020. Seus familiares contaram que as pessoas da região têm medo de falar sobre os desaparecimentos", afirma-se no relatório.
Os crimes são explicados por casos de furtos, roubos, desconfiança sobre traições amorosas e por disputas pelo controle das minas, que incluem enfrentamentos violentos que ocorreram entre março de 2016 e março de 2020, diz o relatório. Foi nestes enfrentamentos que 140 homens e nove mulheres teriam morrido, ainda de acordo com o documento. "A maioria das vítimas era de mineiros ou integrantes de grupos criminosos, alvos de gente armada e outras quadrilhas. Em oito desses incidentes, membros das forças de segurança do Estado, responsáveis pelas operações de segurança na zona, estiveram envolvidos em algumas das mortes. O ACNUDH solicitou informação ao governo (venezuelano) sobre estes incidentes, mas não recebeu respostas", afirma-se no relatório.
Os casos de violência ocorrem apesar da forte presença militar no AMO e nos municípios vizinhos. Quando o Arco Mineiro do Orinoco foi criado, por decreto, foi estabelecido que a Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) deve ser responsável por "proteger e manter" as atividades industriais na região. As autoridades militares, diz o relatório, informaram ao ACNUDH sobre os problemas com a segurança, principalmente com a entrada de grupos criminosos nas área de minas. Elas informaram ainda que o governo está "fazendo esforços" para regularizar a exploração mineira e "neutralizar grupos criminosos" com operações especiais de segurança.
O governo informou ainda que implementou o que chamou de "Mãos de Metal" ('Manos de metal') para combater o tráfico ilegal de ouro, que bloqueou mais de 400 contas de criminosos e que 22 pessoas foram presas. Mas o ACNUDH entendeu que os "esforços do governo são insuficientes" para organizar e regularizar a atividade de mineração na zona do AMO, já que detectou até trabalho infantil, entre as outras irregularidades na região.
Indígenas
A corrida pelo ouro já afetou o ecossistema da região onde estima-se que existam mais de 7.000 toneladas em reservas de ouro, cobre, diamante, bauxita e outros minerais. De acordo com o relatório da ONU, o Arco Mineiro do Orinoco afeta territórios tradicionais de dezesseis grupos indígenas que moram em quase duzentas comunidades nessa região, e além dela.
"A presença de grupos armados e o dano ambiental provocam a perda de territórios tradicionais e dos recursos naturais e afeta a conservação e proteção do meio ambiente", diz o relatório. A falta de demarcação das terras indígenas complica ainda mais a situação de seus habitantes, alerta o documento.
As comunidades indígenas denunciaram, afirma-se no relatório, que em novembro passado integrantes de um grupo criminoso atacaram com armas a comunidade de Ikabaru, no território indígena Pemón, no estado de Bolívar. No ataque, informa-se, oito pessoas morreram, incluindo um indígena, um adolescente e policial. "Os povos indígenas também denunciaram abusos contra os direitos humanos por parte de grupos criminosos no território das comunidades Ye'kwana e Sanema, dentro do AMO", afirma-se. "Inclusive com roubo e abuso de mulheres. No dia seis de maio de 2020, um desses grupos fez uma emboscada para os moradores indígenas na porta de uma das minas e mataram um indígena Wayuu e sequestraram uma indígena Ye'kwana, que foi resgatada por forças militares", diz o documento.
'Mercúrio' e petróleo
Falando de Caracas, o biólogo venezuelano Alejandro Álvarez afirmou que o alto índice de mercúrio, usado na exploração das minas, contaminou rios e peixes da região e afeta a saúde das populações da região. "As pessoas começam a respirar esse mercúrio. E o que sobra de mercúrio na exploração do ouro é jogado no solo e afeta os rios e peixes da Amazônia venezuelana (os estados Bolívar e Amazonas), na fronteira com o Brasil", disse.
Ele lembrou que a intenção do governo Maduro, como foi informado pela imprensa local, era ter o ouro como uma alternativa econômica ao petróleo, principalmente depois da queda na produção e nos preços do combustível, mas não existem evidências de que o mineral esteja contribuindo para a economia venezuelana. O especialista citou levantamentos que apontam para os efeitos do mercúrio nas crianças, com 38% delas com níveis de mercúrio superiores aos valores recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Muitos, observou, têm sintomas de intoxicação, deficiências neurológicas e problemas congênitos.
Além das informações e alertas sobre a situação no Arco Mineiro do Orinoco, o relatório das Nações Unidas aponta, detalhadamente, para outras violações contra os direitos humanos, como casos de torturas de presos e mortes de vítimas por forças de segurança em outros pontos do país caribenho.