Como Cuba se tornou o centro da nova crise entre EUA e Europa
Uma mudança recém-anunciada na política americana em relação à Cuba ameaça empresas europeias com investimentos na ilha
Uma mudança na política americana sobre Cuba, considerada uma ameaça a empresas estrangeiras com investimentos na ilha, colocou os Estados Unidos e a União Europeia em rota de colisão em uma disputa que deve chegar à Justiça.
O problema surgiu na semana passada, quando o governo do presidente Donald Trump anunciou que cidadãos americanos que tiveram propriedades confiscadas na ilha após a revolução de 1959 poderiam passar a processar empresas estrangeiras com negócios nessas áreas.
A possibilidade foi aberta na esteira da Lei Helms-Burton, que foi aprovada pelo Congresso americano em 1996, mas o dispositivo com essa previsão de processos foi sucessivamente suspenso pelos governantes americanos anteriores.
"Os americanos que tiveram propriedades privadas que trabalharam duro para conseguir e foram roubadas em Cuba serão finalmente autorizados a entrar na Justiça", disse o conselheiro de Segurança Nacional americano, John Bolton, que deu o sinal verde do governo para as ações judiciais.
A medida tem sido criticada e contestada pelo Canadá e por países europeus que teriam investidores afetados. Esses países ameaçam também recorrer à Justiça ou a outros tipos de retaliação.
Possíveis retaliações
A União Europeia afirmou que pode se ver "forçada a usar todos os meios a sua disposição (...) para proteger seus interesses" no país caribenho, incluindo reativar um caso contra os EUA na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Em uma carta enviada ao secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, as encarregadas das áreas de relações exteriores e de comércio do bloco - Federica Mogherini e Cecilia Malmström - ressaltaram que as empresas europeias processadas naquele país poderiam recorrer aos tribunais europeus para tentar recuperar qualquer perda.
De acordo com a carta, elas também salientaram a Pompeo que muitos dos principais potenciais requerentes sob a Lei Helms-Burton também têm interesses na União Europeia.
"Isso poderia desencadear um ciclo contraproducente que prejudicaria o clima de negócios", diz a carta.
O que é a Lei Helms-Burton?
Oficialmente chamada de Lei de Liberdade e Solidariedade Democrática com Cuba, a Lei Helms-Burton endureceu ainda mais o embargo econômico que os EUA impuseram aos cubanos.
Ela foi aprovada pelo Congresso dos EUA em 1996, mas um de seus dispositivos, o chamado Título 3, que permite a abertura de processos por propriedades em Cuba, foi suspenso quase imediatamente para evitar conflitos com a União Europeia e com o Canadá, que também têm empresas com investimentos significativos em Cuba.
O dispositivo significa que os americanos cujas propriedades foram confiscadas após a Revolução Cubana podem agora processar empresas que são acusadas de terem se beneficiado - ou de terem "traficado" - nessas propriedades.
Durante 23 anos, as administrações Clinton, Bush, Obama e até mesmo Trump continuaram a suspendê-lo a cada seis meses, com a última suspensão assinada por Pompeo no início do mês, a estendendo até o dia 1º de maio.
Trump, no entanto, tem endurecido a posição dos EUA em um claro contraste com a política de reaproximação de Barack Obama.
E na semana passada o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, John Bolton, anunciou a suspensão da proibição como parte de uma série de medidas para pressionar os governos de Cuba, Venezuela e Nicarágua, os quais descreveu como "uma troika da tirania".
Ainda não está claro se os potenciais processos - que acredita-se que seriam apresentados principalmente por cidadãos cubano-americanos - seriam admissíveis nos tribunais dos EUA, que poderiam se ver sobrecarregados por eles.
De acordo com a organização de inteligência Stratfor, o número de ações relacionadas aos confiscos poderia chegar a cerca de 6.000 e chegar a US$ 1,9 bilhão, sem incluir correção de décadas de juros.
A Reuters, por sua vez, disse que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos já registrou 5.913 reclamações de empresas e indivíduos que foram sujeitos à expropriação em Cuba, por um valor estimado em US$ 8 bilhões.
O Departamento de Estado calcula que a mudança poderia gerar até 200 mil ações judiciais.
Entre as empresas americanas com direito a reclamações estão nomes de peso, como Exxon Mobil, Texaco, Coca Cola, Colgate Palmolive e Office Depot.
Muitas, entretanto, podem se abster para não ter que enfrentar alguns de seus clientes nos tribunais ou afetar suas operações na União Europeia.
Problemas à vista
As chancelarias de vários países europeus têm se pronunciado contra a medida.
O Reino Unido, por exemplo, ressaltou que considera "ilegal, segundo o direito internacional (...) a aplicação extraterritorial das sanções do Título 3 (da Lei Helms Burton)" e avisou que trabalhará com a UE para proteger suas empresas.
"A melhor maneira de estimular Cuba a respeitar as liberdades democráticas e os direitos humanos, implementar uma reforma política ou desempenhar um papel menos nocivo na Venezuela é através do diálogo e da cooperação, não do isolamento", disse um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores britânico.
Muitos especialistas têm alertado que as chances de os que foram alvos de confisco receberem alguma compensação poderiam se complicar, em vez de serem facilitadas, pela entrada em vigor do polêmico Título 3.
Entre as empresas europeias que podem ser afetadas estão as redes hoteleiras espanholas Meliá, Iberostar e Barceló, assim como a francesa Accor. Também estão na lista a fabricante de bebidas francesa Pernod Ricard, dona da marca Havana Club, e o conglomerado de bens de consumo britânico-holandês Unilever.
De fato, desde 2017, a União Europeia é o principal parceiro comercial de Cuba, que tem sido alvo de várias sanções comerciais por parte dos Estados Unidos - incluindo um embargo econômico - desde o início da década de 1960.
Mas, para muitos analistas, o endurecimento de sanções - que haviam sido relaxadas a partir do final do segundo mandato de Obama - tem como objetivo enfraquecer a aliança entre Cuba e Venezuela. E, principalmente, servir como "agrado" de Trump à influente comunidade cubano-americana na Flórida antes das eleições de 2020.