Conheça os brasileiros que salvaram perseguidos pelo nazismo
Dois brasileiros contrariaram as ordens das circulares secretas do então presidente Getúlio Vargas e concederam centenas de vistos de entrada no Brasil a judeus e outros perseguidos pelo regime nazista de Adolf Hitler nas décadas de 1930 e 1940. Aracy Guimarães Rosa, funcionária do consulado em Hamburgo, na Alemanha, e Luis Martins de Souza Dantas, embaixador brasileiro em Paris, na França, hoje são lembrados como heróis nacionais reconhecidos internacionalmente.
Os nomes do “Anjo de Hamburgo” e do “Schindler brasileiro”, como eles ficaram conhecidos, estão no Jardim dos Justos do Museu do Holocausto (Yad Vashem, em hebraico), em Jerusalém. Agora, os dois receberão homenagens em um evento que terá a participação da presidente Dilma Rousseff, convertendo-se assim, no primeiro reconhecimento – ainda que informal – do governo brasileiro aos ex-funcionários que salvaram vidas descumprindo ordens.
“A dimensão da tragédia entre 1939 e 1941 já estava de tal forma explícita no cotidiano da população que ambos tiveram uma sensibilidade fora do comum diante do que estavam observando, que era a expressão máxima do totalitarismo”, afirma a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo (USP). A partir da abertura dos arquivos do Ministério das Relações Exteriores, a professora descobriu a história dos heróis brasileiros relatada em seus livros O antissemitismo na era Vargas (1987) e Cidadão do Mundo (2009).
“Eles defenderam que não estavam lidando apenas com papéis ou categorias de vistos, mas sim com seres humanos”, diz a historiadora. Segundo ela, em um dos telegramas enviados por Souza Dantas e que faz parte do inquérito sobre a concessão de vistos que contrariavam as circulares secretas, o diplomata dizia estar diante de pessoas “à beira do suicídio”.
As circulares do governo de Getúlio Vargas também foram descobertas pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro em consultas aos arquivos do Itamaraty. Entre as alegações para impedir a entrada de judeus no Brasil, estavam as de que se tratavam de “pessoas perigosas para a segurança nacional” e que “não interessam à composição da raça brasileira”. Os documentos assimilavam, inclusive, a terminologia do nazismo, afirmando que os judeus não eram bem-vindos porque não eram arianos.
Na época, 99% da diplomacia brasileira endossavam as circulares secretas antissemitas do governo, segundo a professora. Atitudes como a de Aracy e Souza Dantas são exceções, mas a historiadora acredita que pode haver outras pessoas que, de dentro das embaixadas e consulados brasileiros, ajudaram a salvar vidas com ações semelhantes. “Encontrei três nomes sobre os quais há indícios de que também eram sensíveis à questão judaica”, afirma.
Anjo de Hamburgo
As atitudes heroicas de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa (1908-2011) renderam à ex-chefe do setor de passaportes do Consulado do Brasil o apelido de “Anjo de Hamburgo”. Ela trabalhou junto com o escritor João Guimarães Rosa, com quem se casaria depois, quando ele era cônsul adjunto em Hamburgo, na Alemanha. Segundo Maria Luiza Tucci Carneiro, não há provas de que o escritor sabia que Aracy concedia os vistos contrariando as ordens do governo, mas “algumas passagens mostram que ele era sensível à questão”.
Aracy chegou a transportar pessoas em seu próprio carro até a fronteira, segundo seus relatos. Aos que procuravam o consulado para tentar fugir para o Brasil, ela emitia um novo documento com nomes falsos. “Outra forma muito usada era emitir o visto como católicos”, diz a historiadora.
O advogado Eduardo Tess Filho, neto de Aracy, conta que a avó sempre foi muito discreta sobre suas atitudes heroicas mesmo após voltar ao Brasil, em 1942. “Só fui conhecer essa história com 19 anos”, conta Tess, 57 anos. “Ela fez o que fez não para ser homenageada, fez porque acreditava que era o certo”, explica. Aracy morreu em 2011 aos 102 anos. Em vida, viu seu nome ser grafado no Jardim dos Justos, em Israel, um reconhecimento lembrado com orgulho pela família.
Schindler brasileiro
O chefe da missão diplomática brasileira na França, Luís Martins de Souza Dantas (1876-1954) concedeu pelo menos 800 vistos para salvar a vida de perseguidos por Hitler, segundo as contas do escritor Fábio Koifman, no livro Quixote nas trevas. Pela atitude, Souza Dantas é frequentemente citado como “Schindler brasileiro”, em referência ao empresário alemão Oskar Schindler, que salvou 1.200 judeus do Holocausto.
Dos vistos concedidos pessoalmente pelo embaixador, mais de 400 foram para judeus. Os demais foram para integrantes de outros grupos perseguidos, como homossexuais, ciganos, negros ou ativistas de esquerda. Ele executou o trabalho até a invasão alemã à embaixada brasileira, quando o País se uniu aos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, pouco antes de ser descoberto pelo governo Vargas e virar alvo de um inquérito administrativo do Itamaraty.
“Ele voltou para o Brasil discretamente, quando deveria ter sido recebido aqui como herói de guerra”, defende Maria Luiza Tucci Carneiro. “As homenagens que ele recebeu em 1944 foram constrangedoras e incômodas para o governo Vargas”, conta. Souza Dantas foi o primeiro brasileiro a discursar na ONU, mas o convite foi feito sem citar os atos heroicos em prol dos judeus. Ele foi convidado como diplomata sobrevivente do nazismo.
Ao alcance de todos
A Universidade de São Paulo (USP) mantém um arquivo digital sobre o holocausto. O trabalho, coordenado pela professora Maria Luiza, reúne fotos e documentos obtidos a partir dos arquivos do Itamaraty. Dados de “justos” como Souza Dantas e Aracy, e de outros personagens que ajudam a contar a história recente, podem ser acessados gratuitamente no endereço www.arqshoah.com.br.
Homenagens
Nesta quarta-feira, familiares de Aracy e Souza Dantas participarão de uma cerimônia em Brasília em homenagem aos heróis brasileiros e aos seis milhões de judeus exterminados pelo nazismo. O evento, promovido pela Confederação Israelita do Brasil (Conib) para marcar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (27 de janeiro), contará com a presença da presidente Dilma Rousseff. Dessa forma, os dois ex-funcionários que salvaram vidas ao descumprir as ordens do então governo brasileiro serão reconhecidos como heróis pela Nação pela primeira vez.
“A cerimônia representa um momento importante, de reflexão sobre um capítulo nefasto da história e de ação para fortalecer a ideia da democracia no mundo, de respeito às diferenças, para impedir que novos genocídios aconteçam”, afirma Claudio Lottenberg, presidente da Conib, entidade representativa da comunidade judaica brasileira. O cerimônia vai acontecer no Hotel Royal Tulip, em Brasília, às 19h.
O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto foi criado pela ONU para homenagear na data em que tropas soviéticas libertaram o campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, em 1945.