Coronavírus: Brasileiro descreve vida sob quarentena e faz apelo a Bolsonaro
Estudante de mestrado Calebe Guerra, 28, faz parte de grupo que gravou vídeo pedindo que presidente retire brasileiros de Wuhan; Palácio do Planalto não quis comentar.
"O confinamento gera uma certa ansiedade. De repente, o mundo está voltado para a cidade onde você mora, todas as notícias estão voltadas para você", diz o paulista Calebe Guerra, 28. Ele concede entrevista à BBC News Brasil de dentro do apartamento onde mora em Wuhan, na província de Hubei, na China, e de onde quase não sai mais.
Mas gostaria de sair —e ter, pelo menos, a opção de voltar a seu país de origem, como é o caso de outros cidadãos estrangeiros que moram na China. Por causa do surto do coronavírus, cujo epicentro é a província de Hubei, a cidade de Wuhan, onde vivem 11 milhões de pessoas, está fechada. Ninguém pode sair, a não ser por meio de negociações entre outros países e a China.
Agora, um grupo organizado de 58 brasileiros residentes de Wuhan —31 dos quais ainda estão na cidade— escreveram uma carta-aberta e fizeram um vídeo direcionado ao governo brasileiro pedindo que intervenha e os retire da cidade. De acordo com Guerra, a maioria dos brasileiros são estudantes —alguns dos quais chegaram ali apenas em setembro do ano passado — e há famílias. Seis são crianças. O grupo diz estar preocupado com a saúde emocional dos brasileiros vivendo essa espécie de quarentena em Wuhan.
Consultado neste domingo, 2, pela BBC News Brasil, o Palácio do Planalto não quis comentar o vídeo divulgado.
Diversos países, como Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Japão, Índia, entre outros, já resgataram ou iniciaram trâmites para resgatar seus cidadãos em Wuhan. Os últimos países que anunciaram repatriar cidadãos foram o Egito e a Argélia, neste domingo, 2.
O presidente Jair Bolsonaro vem até agora descartando a possibilidade de repatriação dos brasileiros. Nesta sexta, 31, ele afirmou que o governo estuda estratégias para buscar esses brasileiros que vivem na China e querem retornar ao Brasil. Mas, segundo ele, é preciso antes resolver entraves diplomáticos, jurídicos e orçamentários.
'Principalmente para brasileiros'
Guerra vive há nove anos na China. Em uma entrevista por Skpe com a BBC News Brasil, conta ter viajado para aprender mandarim, apaixonou-se "perdidamente" pelo país e pela língua e então ficou para fazer faculdade de Letras e Literatura. Morou em duas cidades no noroeste da China e mudou-se há um ano e meio para Wuhan, no centro da China, onde faz um mestrado sobre literatura clássica.
Por considerar-se alguém "caseiro" e que normalmente fica dentro da biblioteca ou de cafés estudando e por ter experiência morando na China, o confinamento para ele não está sendo tão estressante, explica Guerra, que diz não conhecer ninguém que foi infectado com o vírus.
Mas outros brasileiros não estão tendo a mesma experiência: os que não sabem mandarim, ligam a TV e não entendem a língua. Não estão acostumados a ficarem tanto tempo dentro de casa. Há crianças que tampouco podem sair.
"De repente, você está num lugar que é completamente diferente do seu país, para muita gente que chegou aqui há pouco tempo. Você tem a pressão da sua família do Brasil. Você acorda e todos eles ficam perguntando constantemente como que está a situação, de voltarem para o Brasil, do governo auxiliar, gerada de uma preocupação sincera", diz ele à BBC News Brasil.
Além disso, "a melhor prevenção, a de mais sucesso, é ficar em casa". "É bastante informação na mentalidade de qualquer pessoa, mas principalmente na cultura brasileira, que é mais de sair, de ir para casa do amigo, de estar com amigo, de dormir fora, de comer junto, de fazer churrasco. Gera uma ansiedade legal nos brasileiros que estão aqui."
Por causa disso, o grupo de 58 brasileiros criou uma espécie de rede de apoio, conversando todos os dias entre si. Por meio do aplicativo de troca de mensagens da China, o WeChat, podem fazer conversas de vídeo com até nove pessoas, e é nesse momento que falam sobre suas inseguranças, vida pessoal etc. É o confinamento que gera mais ansiedade, e não o medo de contrair o vírus, já que todos tomam os cuidados indicados pelo Estado: lavar bastante as mãos ao chegar em casa, quando saem de casa, e usar máscaras.
Mas a rotina de todos mudou bastante.
Ele e outros brasileiros têm recebido apoio das instituições aos quais são ligados —universidades e empresas— que ligam para monitorar sua situação, conta. Os estudantes que moram em dormitórios também estão recebendo comida e máscaras na porta de seus quartos.
Já Guerra, que mora em um apartamento com um amigo chinês, tem recebido alimentos frescos distribuídos pela administração do condomínio onde mora. Ele diz que pode fazer uma lista e que assim recebe as comidas que pede.
Diz sentir falta da academia, mas que dá um jeito em casa, pulando corda, por exemplo. Nos últimos quatro dias, têm trabalhado com algo inusitado: ensinando seu cachorro a fazer xixi e cocô dentro de casa, já que não pode levá-lo para passear.
Pedido ao governo brasileiro
Os brasileiros dizem ter três motivos principais para pedir que o governo brasileiro tome providências e os busque em Wuhan:
1) Tempo indeterminado do isolamento da cidade: "Nós ainda não sabemos ao certo quando vai terminar o isolamento da cidade. Essa incerteza acaba influenciando a vida emocional de algumas pessoas que estão aqui", diz Guerra.
2) Segurança: "Nos sentimos seguros fisicamente, instituições estão nos auxiliando, têm nos acompanhado de perto. Mas as condições psicológicas desse pessoal brasileiro são mais complicadas de atender. Há pessoas que lidam de diferentes formas com a situação. Esse confinamento traz uma ansiedade muito grande. Nossa preocupação são as condições psicológicas e emocionais desses brasileiros que estão aqui. A gente quer ter essa mesma segurança que sentimos do Estado chinês por parte do Estado brasileiro".
3) Valor do cidadão para seu país: "Esse é o momento para o Estado brasileiro provar que seus cidadãos também têm valor. Ninguém está aqui na China se desligando do Brasil. A gente veio para cá para estudar, para se educar, para academicamente nos tornarmos melhores para voltar para o Brasil e produzir para o Brasil. O mundo está assistindo como os outros países está lidando com a situação e é o momento do Brasil mostrar que vale a pena a gente vir para cá, se capacitar, estudar, porque o país valoriza a gente".
Quarentena
O grupo de brasileiros, que se reveza no vídeo lendo trechos da carta-aberta, lembra também da colaboração logística que o governo chinês tem oferecido a essas operações, já conduzidas por países como Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, entre outros. O período de quarentena, uma vez fora do território chinês, tem sido de 14 dias, tempo considerado máximo para que sintomas possam se manifestar.
Uma das razões pelas quais o governo brasileiro não estaria organizando a retirada de brasileiros seria a falta de legislação específica para determinar a quarentena dos brasileiros em território nacional após o desembarque. "Nós não temos uma lei de quarentena. Ao trazer brasileiros para cá, nossa ideia obviamente era colocar em local para quarentena, mas qualquer ação judicial tira de lá e aí seria uma irresponsabilidade", disse Bolsonaro.
No vídeo, no entanto, os brasileiros mencionam que estariam dispostos a cumprir o período em um local seguro fora do Brasil.
O presidente brasileiro também mencionou os custos envolvidos em uma operação de repatriamento de brasileiros. A jornalistas, afirmou que um voo fretado pode custar até US$ 500 mil (R$ 2,1 milhões). "Pode ser pequeno para o tamanho do orçamento brasileiro, mas precisa de aprovação do Congresso", disse.
Mortes
Até agora e desde a primeira identificação do vírus, em dezembro, mais de 300 pessoas morreram por causa da doença —a maioria das pessoas estavam na província onde fica Wuhan, Hubei. Mais de 14 mil pessoas foram infectadas. Esse novo vírus, contudo, se espalha mais rápido, mas mata menos do que os da SARS, que causou um surto na China em 2002 e 2003, e que o H1N1.
Neste domingo, 2, a primeira morte fora da China foi confirmada: um homem de 44 anos morreu nas Filipinas após ser infectado. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), ele não foi infectado dentro do país. Ele havia viajado de Wuhan às Filipinas via Hong Kong.
No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, existem 16 casos suspeitos. Nenhum foi confirmado.