Coronavírus: China troca autoridades no epicentro do surto em meio a crescente indignação popular
Avanço da doença tem sido uma prova de fogo para Partido Comunista Chinês e seu sistema político; autoridades locais costumam ter medo de expor problemas por causa da eventual reação de seus superiores.
Sob crescente pressão popular, a China decidiu trocar diversas autoridades por falhas no combate ao avanço do surto de coronavírus, que matou mais de 1.000 pessoas desde dezembro passado.
Foi tirado do cargo, por exemplo, o secretário do Partido Comunista Chinês para a Comissão de Saúde de Hubei, província cuja capital, Wuhan, é o epicentro da nova doença.
O avanço da doença tem sido uma prova de fogo para o Partido Comunista Chinês e seu sistema político autoritário, no qual autoridades locais costumam ter medo de expor problemas por causa da eventual reação de seus superiores.
Especial coronavírus
Como resposta, o mandatário chinês, Xi Jinping, decidiu fazer uma rara aparição, ao longo da crise, em uma unidade de saúde em Pequim onde são tratados pacientes com coronavírus. Usando máscara, ele afirmou: "Precisamos ter confiança de que vamos vencer a batalha contra o surto".
Na segunda-feira (10), 103 pessoas morreram em Hubei, um recorde diário, e o total de mortes no país chegou a 1.016.
Mas o número de novos casos registrados caiu 20% em relação ao dia anterior, de 3.062 para 2.478. Especialistas têm sido cautelosos, no entanto, em afirmar que a doença já atingiu seu pico.
Segundo a mídia estatal chinesa, houve centenas de demissões, investigações e advertências em Hubei e outras províncias durante o surto.
Mas a remoção de um determinado posto — embora seja considerada uma medida de censura — nem sempre significa que a pessoa será demitida completamente, pois também pode significar rebaixamento na hierarquia.
Além de serem retirados de seus cargos, os funcionários também podem ser punidos pelo Partido Comunista Chinês, que comanda o país.
O vice-chefe da Cruz Vermelha local, Zhang Qin, por exemplo, perdeu o cargo por "abandono do dever" na gestão das doações feitas a Hubei. Ele foi advertido dentro do partido e sofreu uma punição administrativa.
No início de fevereiro, o vice-chefe do departamento de estatísticas de Wuhan também foi retirado do posto, após ser acusado de "violar regras importantes na distribuição de máscaras".
Onda de fúria
Nos últimos dias, as autoridades chinesas têm enfrentado uma onda crescente de críticas por causa da condução da crise.
O ápice foi a morte de um médico, Li Wenliang, que fez alertas aos colegas sobre os perigos da doença, mas acabou enquadrado pela polícia e obrigado a assinar um documento no qual se comprometia a parar de "espalhar boatos". Ele acabou morrendo dias depois em decorrência do coronavírus, e sua história despertou fúria ao redor do país.
Já havia acusações contra o governo de subestimar a gravidade do vírus — e de, inicialmente, tentar mantê-lo em segredo.
A morte de Wenliang alimentou ainda mais essa sensação, desencadeando um debate sobre a falta de liberdade de expressão na China.
A rede social chinesa Weibo foi inundada por mensagens de revolta — é difícil lembrar um acontecimento nos últimos anos que tenha despertado tanta dor, raiva e desconfiança em relação ao governo.
As duas principais hashtags usadas diziam: "o governo de Wuhan deve desculpas ao Dr. Li Wenliang" e "queremos liberdade de expressão".
Mas ambas as hashtags foram rapidamente censuradas.
O governo central, em Pequim, enviou uma equipe de sua principal agência anticorrupção para investigar o tratamento dado a Li Wenliang. De acordo com o site chinês Pear Video, a esposa dele está grávida e deve dar à luz em junho.
"O caso revela os piores aspectos do sistema de comando e controle do governo da China, sob liderança de Xi Jinping, — e o Partido Comunista teria que ser cego para não ver", avalia Stephen McDonell, da BBC News em Pequim.
Como está a situação na China?
Há, até o momento, mais de 42,2 mil casos confirmados do novo coronavírus ao redor da China, nesta que é a mais grave crise de saúde pública desde o surto envolvendo outro coronavírus, a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), entre 2002 e 2003.
A Comissão de Saúde de Hubei afirmou ter registrado na província chinesa um total de 31.728 casos e 974 mortes, números que isoladamente apontariam para uma taxa de mortalidade em torno de 2%, 3%. Essa cifra, no entanto, ainda demanda mais tempo e informações confiáveis para ser determinada.
Mais de três quartos das mortes ocorreram em Wuhan, capital de Hubei, onde vivem mais de 11 milhões de pessoas. A cidade está sob quarentena há semanas, com a suspensão de aulas, circulação de transporte público e jornadas de trabalho.
Em Hong Kong, após a detecção de casos, mais de duas dezenas de apartamentos foram evacuados e colocados sob quarentena. Há suspeitas de que a doença possa estar se espalhando pela tubulação interna dos prédios, como já aconteceu em surtos anteriores.
Durante o avanço da Sars, no início dos anos 2000, mais de 300 moradores de um prédio de Hong Kong foram infectados por aquele coronavírus. Descobriu-se mais tarde que a transmissão se deu por causa de fatores como encanamento de esgoto defeituoso, sistema de ventilação e limpeza inadequada. Quarenta e duas pessoas morreram nesse episódio.
Nos últimos meses, Hong Kong viveu meses de protestos contra a influência crescente da China, algo que poderia abrir brecha para punir críticos e dissidentes do regime autoritário. Com o avanço do coronavírus, a questionada líder local, Carrie Lam, pregou: "Para lutar contra o vírus, Hong Kong precisa de cooperação total e da participação ativa de cada membro da sociedade".
"É hora de coesão social, é hora de todos nós mostrarmos responsabilidade civil."
Como está o resto do mundo?
Até esta segunda-feira (10), foram registrados mais de 40 mil casos no mundo, sendo 319 deles (menos de 1%) fora da China, em duas dezenas de países. Apenas a América Latina e a África não tiveram notificações.
No início da semana, o Brasil repatriou 34 pessoas que estavam em Wuhan. O grupo ficará em quarentena em Anápolis (GO) por 18 dias. Ninguém apresentou sintomas até agora.
No Reino Unido, quatro novos casos foram anunciados na segunda-feira, dobrando o número de registros no país. O governo ampliou poderes para manter pessoas sob quarentena, mas o risco ainda é considerado "moderado" pelo país.
Segundo as informações que se tem até o momento, o novo coronavírus mata cerca de 2 a cada 100 pessoas comprovadamente infectadas.
Mas faltam dados confiáveis para projeções mais precisas sobre quantas pessoas ainda devem contrair o vírus e quantas vão morrer. As análises se baseiam, por exemplo, no número de casos e mortes registrados e para quantas pessoas uma pessoa infectada é capaz de transmitir o vírus.
Só que uma das principais características do novo coronavírus é que ele pode ser transmitido ainda durante o período de incubação (entre 1 e 14 dias), quando a pessoa ainda não apresenta sintomas, como febre e tosse. E nem todo mundo que contrai o vírus fica doente. Tudo isso dificulta muito qualquer estimativa.
Ainda assim, à medida que o tempo passa, o número de casos tem aumentado muito mais rapidamente que o número de mortes, o que pode significar no futuro uma taxa de mortalidade bem menor que 2%.
"Numa situação como essa, na qual há tantas variáveis desconhecidas, é quase impossível prever com algum grau de precisão quando o número de casos chegará ao seu auge", afirmou Robin Thompson, especialista em epidemiologia matemática da Universidade Oxford, no Reino Unido.