Coronavirus e 'sopa de morcego"? Teoria de conspiração e fake news se espalham com avanço de surto
Morcegos, epidemia planejada, arma biológica, espionagem em laboratório - veja que histórias falsas e desinformação estão gerando mais pânico sobre o vírus.
Mais de 170 pessoas morreram em decorrência do coronavírus, segundo números oficiais divulgados até a publicação desta reportagem.
O número de casos confirmados subiu para 7.711 e lugares como Hong Kong anunciaram planos de proibir viagens para a China continental na tentativa de conter o avanço do vírus.
Mas não é só a doença que se espalha pela China e por outros países — a desinformação também cresce em ritmo alarmante e teorias de conspiração se espalham pelas redes. Você deve ter visto, por exemplo, os já famosos vídeos virais sobre sopas de morcego.
Desde a divulgação dos primeiros casos, a origem do coronavírus é alvo de debate na internet. Isso ganhou força com uma série de vídeos que supostamente mostrariam chineses comendo morcegos em meio a eclosão do vírus na cidade de Wuhan.
Um dos vídeos mostra uma mulher chinesa sorridente mostrando um morcego cozido para a câmara e dizendo que ele "tem gosto de frango". O vídeo causou revolta e alguns internautas começaram a culpar os hábitos alimentares dos chineses pela expansão da doença.
Mas o vídeo não foi filmado em Wuhan, nem na China. Originalmente filmado em 2016, ele mostra a blogueira e apresentadora Mengyum Wang durante uma viagem a Palau, um arquipélago no oceano Pacífico.
Morcegos
O vídeo voltou à tona nas redes sociais depois que casos de coronavírus emergiram em Wuhan no fim do ano passado.
Em meio à reação negativa nas redes, Wang pediu desculpas, dizendo que ela estava "apenas tentando apresentar a vida das pessoas locais" a sua audiência e não sabia que morcegos poderiam ser vetores de vírus.
O vídeo dela foi tirado do ar desde a controvérsia.
Acredita-se que o novo coronavírus tenha surgido a partir do comércio ilegal de animais selvagens em um mercado de frutos do mar em Wuhan.
Apesar de os morcegos terem sido citados em pesquisa chinesa recente como possível origem do vídeo, a sopa de morcego não é particularmente comum no país e as investigações sobre a origem real da doença continuam.
'Epidemia planejada'
Com o anúncio do primeiro caso de coronavírus nos EUA, na semana passada, começaram a circular pelo Twitter e pelo Facebook documentos de registros e patentes que à primeira vista sugeririam que especialistas sabiam da existência do vírus há anos.
Um dos primeiros a ecoarem essas suspeitas foi o youtuber Jordan Sather, um conhecido adepto de teorias de conspiração.
Em em uma longa sequência de tuítes compartilhada milhares de vezes, ele compartilhou um link para um registro de 2015 feito pelo Instituto Pirbright, em Surrey, na Inglaterra, que fala sobre o desenvolvimento de uma versão enfraquecida do coronavírus para uso potencial em vacinas para prevenir ou tratar doenças respiratórias.
O mesmo link também circulou amplamente em grupos antivacinas no Facebook.
Sather usou o fato de que a Fundação Bill & Melinda Gates é doadora tanto do Instituto Pirbright quanto de órgãos ligados ao desenvolvimento de vacinas para sugerir que a eclosão atual do vírus estaria teria sido deliberadamente fabricada para atrair recursos para a criação de uma vacina.
"Quanto dinheiro a Fundação Gates deu para programas de vacinação ao longo dos anos? O surto da doença foi planejado? A imprensa está sendo usada para espalhar medo sobre isso?", tuitou Sather.
Mas a patente do Pilbright não é para o novo coronavírus. O documento é um registro sobre a bronquite infecciosa das galinhas (BIG), uma linhagem que faz parte da grande família do coronavírus e que afeta aves.
Sobre a especulação em torno da Fundação Bill & Melinda, a porta-voz da Pirbright, Teresa Maughan, disse ao site Buzzfeed News que o estudo do instituto sobre o vírus da bronquite infecciosa não foi financiado pela fundação.
Conspirações de 'armas biológicas'
Outra afirmação sem embasamento que viralizou sugere que o vírus seria parte de um "programa secreto de armas biológicas" da China e teria sido espalhado pelo Instituto de Virologia de Wuhan.
Muitos perfis citam dois artigos amplamente compartilhados do jornal Washington Times que citam uma frase de um ex-oficial da inteligência israelense sobre o tema.
No entanto, nenhum dos dois artigos apresenta provas para a alegação e a fonte israelense diz nos textos que "até o momento, não há evidência ou indicação" que sugira que o instituto tenha espalhado o vírus.
Os dois artigos foram compartilhados por centenas de perfis, atingindo milhões de pessoas. A BBC News pediu comentários ao Washington Times, mas não obteve resposta.
O jornal britânico Daily Star publicou uma notícia similar na semana passada, afirmando que o vírus pode ter surgido em um laboratório secreto.
No entanto, a reportagem foi alterada e o jornal adicionou que não havia provas para a sugestão.
Pesquisas oficiais indicam que o vírus teria emergido do comércio ilegal de animais selvagens no mercado Huanan, que vende frutos do mar em Wuhan.
'Equipe de espionagem'
Outra teoria associou incorretamente o vírus à suspensão de uma pesquisadora do Laboratório Nacional de Microbiologia do Canadá.
A virologista Xiangguo Qiu, seu marido e alguns de seus estudantes chineses teriam sido afastados do laboratório no ano passado após desobedecerem regras, de acordo a TV pública canadense CBC. Na época, a polícia informou à rede que "não houve ameaças à saúde pública".
Outra teoria aponta que a virologista Qiu visitou duas vezes por ano, durante dois anos, o Laboratório Nacional de Biosegurança de Wuhan, da Academia Chinesa de Ciências.
Um texto com mais de 12 mil retuítes e 13 mil curtidas — dizia, sem provas, que Giu e seu marido seriam uma "equipe de espiões" que teria enviado "agentes patogênicos" para Wuhan, e que o marido seria "especialista em coronavírus".
Nenhuma das três afirmações do tuíte pode ser encontrada nas reportagens transmitidas pela CBC. Os termos coronavírus e espiões nem aparecem nas matérias.
A CBC informou que as alegações não têm fundamento.
Vídeo da 'enfermeira de Wuhan'
Versões distintas do vídeo de uma "denunciante", supostamente registrado por um "médico ou enfermeira" na província de Ubei, acumularam milhões de visualizações em várias redes sociais e apareceram em diversos blogs.
A versão mais popular foi divulgada no YouTube por um usuário coreano e trazia legendas em inglês e coreano — o vídeo já foi tirado do ar.
De acordo com as legendas em inglês, a mulher seria uma enfermeira no hospital de Wuhan. No entanto, ela não diz em nenhum momento ser enfermeira ou médica no vídeo. Isso parece ser apenas um chute feito pelos que compartilharam as imagens.
A mulher, que não se identifica, está vestindo roupa de proteção em um local desconhecido. No entanto, seu traje e a máscara não são os mesmos usados pela equipe médica em Hubei.
Devido a um bloqueio imposto pelas autoridades, é difícil verificar vídeos da província. Mas a mulher faz uma série de afirmações infundadas sobre o vírus, o que torna improvável que ela seja enfermeira ou paramédica.
Ela diz, por exemplo, que o número real de pessoas infectadas na China é de 90 mil. Mas, segundo dados oficiais, houve pouco mais de 7.700 infecções confirmadas até a publicação desta reportagem.
Ela também afirma que o vírus tem uma "segunda mutação", que poderia infectar até 14 pessoas. A Organização Mundial da Saúde tinha estimado, preliminarmente, que o número de infecções que um indivíduo portador do vírus poderia causar é de 1,4 a 2,5. Mas autoridades chinesas relataram nesta quinta o caso de um paciente "supercontagiante" que teria infectado ao menos 14 pessoas.
Seja como for, segundo Muyi Xiao, nativo de Wuhan e editor de imagens da revista online ChinaFile, a "enfermeira de Wuhan" não parece "alguém com formação profissional médica".
Embora a localização exata do vídeo seja desconhecida, é provável que a mulher seja um residente de Hubei compartilhando sua opinião pessoal sobre o surto.
"Acho que há [uma] possibilidade de que ela ache que está dizendo a verdade. Porque ninguém sabe a verdade", disse à BBC Badiucao, um ativista político chinês atualmente baseado na Austrália.
"A falta de transparência deixou as pessoas à mercê de palpites e pânico", disse.
*Com reportagem da BBC Monitoring e da BBC UGC Newsgathering