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Coronavírus: o drama dos brasileiros que vivem ilegalmente na Itália, esquecidos na pandemia

Durante crise, a Itália acabou deixando de fora pessoas que não têm como contar com o apoio do Estado neste momento.

20 mar 2020 - 15h26
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O coronavírus já matou mais pessoas na Itália do que em qualquer outro país
O coronavírus já matou mais pessoas na Itália do que em qualquer outro país
Foto: Yara Nardi/Reuters / BBC News Brasil

Ao confinar a todos em uma quarentena forçada — que acaba de ser prorrogada até maio — e de praticamente fechar a economia do país, a Itália acabou deixando de fora pessoas que não têm como contar com o apoio do Estado neste momento.

Imigrantes que vivem em situação ilegal, ou "indocumentados" no jargão oficial, se preparam para o que pode se tornar uma crise humanitária nas próximas semanas.

Esse pode ser o caso de 4 mil a 6 mil brasileiros que vivem na região do Lácio, que engloba Roma, de acordo com dados da Comunidade Brasileira Católica Nossa Senhora Aparecida.

Sem poder trabalhar, essas pessoas não recebem salários, como muitos dos que vivem a quarentena imposta pela pandemia da covid-19 mundo afora. E ainda enfrentam um problema adicional: estão fora da rede de proteção social italiana.

Não têm direito aos benefícios que, no momento, são cruciais para a sobrevivência (embora possam usar o sistema de saúde, como prevê a lei migratória).

A maioria delas, ajudantes de cozinha, lavadores de prato, babás e domésticas, foi dispensada após a determinação do governo para que todos se fechem em casa.

Quadro tende a se agravar

À BBC News Brasil, o coordenador da Comunidade Brasileira Católica Nossa Senhora Aparecida, em Roma, Hamilton Gomes, afirma que o quadro deve se agravar em 30 dias, quando esses brasileiros completam um mês inteiro sem renda.

"Março foi menos pior, porque quem trabalhou em fevereiro recebeu no início do mês. Ou seja, conseguiu ter um pouco de dinheiro em caixa. A crise de fato deve estourar em uns 30 dias."

Hamilton Gomes (direita) em reunião da comunidade brasileira em maio do ano passado.
Hamilton Gomes (direita) em reunião da comunidade brasileira em maio do ano passado.
Foto: Hamilton Gomes/Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Aos poucos, os desvalidos começam a contar com a generosidade alheia. Vários estão sendo ajudados por instituições de caridade ou por uma rede solidária surgida dentro da própria comunidade brasileira.

Neste momento, segundo Gomes, é difícil ajudar a quem precisa, já que estão todos presos em casa.

Ele relata outro agravante. O governo italiano pode expulsar os "indocumentados" a qualquer momento. Com os controles nas ruas da cidade, em que são exigidos papéis com a chamada autodeclaração de saúde que permite as saídas esporádicas para compras ou outras atividades urgentes, quem não tem documentos tem medo de circular.

À BBC News Brasil, o padre Luiz Gabriel Martínez, que é capelão da Missão Latino-Americana em Roma, afirmou que a ação social da missão que existe há mais 20 anos cresceu, sobretudo agora.

Segundo ele, nestes primeiros dias de isolamento, três brasileiros o procuraram para pedir alimentos, que conseguiu doar. Ele destaca que a situação se repete para outras nacionalidades.

"A polícia está detendo as pessoas que saem sem um motivo justificado, de emergência. Quem não tem documentos não tem como provar que está trabalhando e corre muito risco", disse o padre colombiano, que também é presidente da Associação Humilitas, que trabalha com pastoral e ajuda social, oferecendo assessoria jurídica e psicológica a imigrantes.

Durante o confinamento, ele conduz orações e meditação por grupos de WhatsApp.

"Seguimos acompanhando as pessoas pelos meios que temos, WhatsApp e uma página no Facebook."

"Não dá para fazer muito agora. Mas sempre se dá um jeito. Por telefone, é possível acionar alguém que possa fazer compras para quem não pode sair de casa por qualquer que seja o motivo. Essa semana, consegui uma pessoa que deixou remédios na portaria do prédio de uma brasileira que cuida de uma idosa. Ela não sai por medo de contaminação", disse Hamilton.

Em Roma, alguns bares e cafés seguem funcionando, mas apenas fazendo entregas
Em Roma, alguns bares e cafés seguem funcionando, mas apenas fazendo entregas
Foto: Remo Casilli/Reuters / BBC News Brasil

'A vida é cara'

Parte da ajuda aos brasileiros, que deverá ser oferecida na forma de cestas de alimentos, deve se dar pela rede das igrejas católicas.

Gomes pediu à comunidade que fizesse pequenas doações no ofertório e, no mês passado, pediu que, aqueles que observassem jejum da Quaresma, contribuíssem com o equivalente ao que gastariam com as refeições em um envelope que seria entregue após a missa das 17 horas.

"Foram três, quatro, cinco euros por pessoa. Ainda temos um pouco de dinheiro no caixa. Quero converter em alimentos."

O brasileiro, que é confeiteiro numa padaria em Roma, pela primeira vez em muito tempo passou o dia dos pais (que, Itália, é em março) com o filho de cinco anos em casa.

Esta é a época em que a demanda pelo bignè di San Giuseppe, o doce típico para se comer na semana dos pais, explode.

"Eu teria feito seis mil, se fosse como no ano passado. Vendemos 10 mil na semana em 2019. Esse ano? Zero. Fiz uns aqui em casa", conta.

A jornalista Luciana Garcia, que está indocumentada na Itália já há alguns anos, afirma que estava para receber o visto de residência, em função do trabalho que fazia para uma escritora italiana, mas a chefe morreu duas semanas antes do início da quarentena.

Sua situação, no entanto, não é das mais difíceis, pois a nova empregadora para quem faz pesquisa já avisou que pretende continuar lhe pagando, ainda que esteja sem trabalhar.

"Essa é a minha sorte, porque, como outras pessoas, não tenho poupança. É complicado juntar dinheiro aqui. A vida é cara e muita gente manda dinheiro para o Brasil", afirma a brasileira, que divide um apartamento com uma italiana e uma romena.

Por determinação do governo, as contas de luz, gás e eletricidade na Itália foram suspensas. E, quanto voltarem a ser cobradas, serão pagas pela metade.

"Acho que, depois, todo mundo terá de pagar o restante. Os aluguéis terão de ser negociados caso a caso com os proprietários de imóveis. O que vai pegar mesmo é a alimentação e a compra de remédios", disse Hamilton.

Para Luciana, este é um momento de reflexão.

"É hora de o mundo mudar. Já se pode ver peixes nos canais de Veneza. Aqui, perto da minha casa, ouço passarinhos e vejo borboletas, coisa que não via há tempos por conta da poluição. Precisou o homem se recolher para que a natureza pudesse retomar o lugar dela", afirmou.

Redes de apoio

A paróquia de São José em Roma já convocou um grupo de voluntários para trabalhar. Hamilton Gomes pede que os interessados em fazer doações de alimentos o façam na Missão Latino-Americana na capital italiana.

Enquanto isso, ele criou um grupo de WhatsApp da comunidade para compartilhar todos os dias as reflexões do padre da paróquia e mensagens de ajuda.

Ele também coordenou um grupo que liga para três ou quatro pessoas por semana apenas para conversar por telefone durante esses tempos difíceis.

A avaliação é de que as redes de solidariedade serão fundamentais para que todos superem a crise. Até porque ninguém poderá sair de casa enquanto a contaminação continuar do lado de fora.

A realidade dos brasileiros indocumentados na Itália pode se repetir em outros países europeus sob quarentena.

"Ninguém vai poder se levantar sozinho", conclui Luciana.

O Itamaraty afirma que o Consulado e a Embaixada em Roma estão em contato com os brasileiros e têm tentado prestar os serviços emergenciais necessários, a despeito da quarenta. Na sua página na internet, têm traduzido normas e instruções do governo italiano para o português.

Turistas 'presos'

Ao mesmo tempo, em uma situação de menos risco, centenas de brasileiros ainda estão presos no exterior tentando voltar para casa. É o caso de quase 250 pessoas no Marrocos. Até dia 19, a Embaixada do Brasil já havia conseguido repatriar 40.

Um grupo de seis mulheres que viajava pelo país com a guia Andreia Oliveira, dona da Agência de Turismo 50+, especializada sobretudo na terceira idade, deve conseguir voltar para o Brasil nesta sexta-feira.

Esta é a previsão para o voo charter, organizado pelos ministérios das Relações Exteriores e do Turismo e financiado pela TV Record (que tinha 73 funcionários gravando uma novela no país). A aeronave, segundo o Itamaraty, deve levar pouco mais de 200 pessoas de volta.

Andreia conta que já não há restaurantes nos hotéis vizinhos e, no seu, não há mais café da manhã.

"Algumas dessas senhoras tomam medicação, que já está acabando. Estamos confiantes. Duas pessoas da embaixada me ligaram. Até podermos sair, estamos fazendo compras num mercado aqui perto para comer. Não temos prato, nem copo. Eu vou lá na cozinha do hotel, pego prato, ponho em cima da pia", relata.

Elas embarcaram para o Marrocos no último dia 6 e tinham a volta prevista para este sábado (21).

"Quando chegamos, estava tudo normal. Não tinha caso no Marrocos. No Brasil, não havia essa preocupação como hoje", afirma Andreia.

O Ministério das Relações Exteriores criou um Grupo Especial de Crise para assuntos consulares e migratórios (G-CON) para auxiliar os cidadãos brasileiros.

"No momento, os esforços estão concentrados em gestões diplomáticas com autoridades nos diversos países, para abertura excepcional de espaços aéreos, e em entendimentos com companhias aéreas, para a realização de voos destinados a repatriar os brasileiros", diz a nota, que acrescenta que o trabalho das embaixadas e consulados do Brasil permitiu mapear as dificuldades enfrentadas pelos cidadãos para voltar para o Brasil.

O Itamaraty forneceu números de telefones para quem precisar de ajuda (Américas: +55 61 98260-0610; Europa: +55 61 98260-0787; África e Oriente Médio: +55 61 98260-0568; Ásia e Oceania: +55 61 98260-0613).

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