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Coronavírus: por que é 'questão de tempo' a OMS declarar uma pandemia, segundo especialistas

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil diz que surto originado na China já atende os critérios para ser considerado uma epidemia em escala global e afirmam que a organização deve reconhecer isso nos próximos dias.

4 mar 2020 - 13h09
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Em dois meses, novo vírus identificado na China já chegou outros 77 países, em todos os continentes com exceção da Antártida
Em dois meses, novo vírus identificado na China já chegou outros 77 países, em todos os continentes com exceção da Antártida
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Desde 31 de dezembro, quando a China informou a Organização Mundial da Saúde (OMS) que um vírus até então desconhecido estava se espalhando pelo país, ele já chegou a outros 77 países e a todos os continentes exceto a Antártida, infectando mais de 93 mil pessoas e levando 3,2 mil delas à morte.

A escalada do surto originado na cidade chinesa de Wuhan e a velocidade com que o Sars-cov-2, como é chamado oficialmente o novo coronavírus, se espalhou pelo mundo impressionam, mas isso não é exatamente surpreendente em um mundo globalizado.

Outro aspecto torna mais preocupante esta evolução. Em ao menos 31 países, de todas as regiões do mundo, já foi comprovado que o vírus está se disseminando localmente.

Isso já seria suficiente, na opinião de especialistas, para que fosse declarada uma pandemia, ou seja, uma epidemia em escala global. Mas a OMS não fez isso até o momento, o que foi criticado pelo governo brasileiro, para quem a organização já deveria ter dado esse passo.

"Do ponto de vista técnico e epidemiológico, é claramente uma pandemia. A questão é a OMS reconhecer isso", diz Eduardo Carmo, pesquisador do núcleo de epidemiologia e vigilância em saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Brasília.

"A meu ver, está havendo uma hesitação e uma demora, mas ela vai ter que declarar que há uma pandemia instalada."

Essa visão é compartilhada por outros especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia e diretor-médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro, diz que a situação atual já se configura como uma pandemia diante da transmissão sustentada do vírus nos continentes. "A expectativa é que a OMS declare nos próximos dias", diz Chebabo.

O infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), também acredita que "falta pouco" para isso ocorrer.

"A opinião de todos no mundo é que não se está conseguindo segurar o vírus. Provavelmente, a OMS ainda está se convencendo disso, mas, quando for comprovada a transmissão sustentada no Brasil, acho que vai declarar", diz Boulos.

A infectologista Rosana Ritchmann, do Instituto Emílio Ribas, concorda que estamos diante de uma pandemia e que o Brasil tem um peso importante na avaliação feita pela OMS.

"Há estudos que mostram que existem países-chave para a situação piorar, e o Brasil, por ter uma grande densidade populacional e ser um grande eixo regional de viagens internacionais, é um deles", diz Ritchmann.

"Na hora em que começarmos a ver casos (de transmissão) aqui dentro ou na Argentina, vão declarar. É uma questão de tempo."

O que é uma pandemia

A humanidade enfrenta pandemias desde ao menos 1580, quando um vírus do tipo influenza, que causa gripes, surgiu na Ásia e se espalhou para a África, Europa e América do Norte.

O termo é usado para descrever uma situação em que uma doença infecciosa ameaça muitas pessoas ao redor do mundo simultaneamente.

Uma das pandemias mais graves já enfrentadas ocorreu entre 1918 e 1920. Estima-se que 50 milhões de pessoas tenham morrido na pandemia da gripe espanhola, mais do que os 17 milhões de vítimas, entre civis e militares, da 1ª Guerra Mundial.

O exemplo mais recente foi a disseminação global do vírus influenza H1N1, que causou a pandemia da gripe suína, em 2009. Especialistas acreditam que ele tenha infectado milhões de pessoas e matado centenas de milhares.

Disseminação global do coronavírus gera receio em quase todos os países, entre eles o Paquistão
Disseminação global do coronavírus gera receio em quase todos os países, entre eles o Paquistão
Foto: AFP / BBC News Brasil

Mas uma pandemia não se caracteriza pela gravidade da doença que ela causa. "O principal fator é o geográfico, quando todas as pessoas no mundo correm risco", diz Ritchmann.

Pandemias são mais prováveis com novos vírus. Como não temos defesas naturais contra eles ou medicamentos e vacinas para nos proteger, eles conseguem infectar muitas pessoas e se espalhar facilmente e de forma sustentada.

O novo coronavírus preenche todos estes requisitos, na opinião do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Para ele, a organização já deveria ter declarado uma pandemia. "Já tem critérios para isso", disse Mandetta em uma coletiva de imprensa na última quinta-feira (26/02).

Nancy Messonnier, diretora do Centro Nacional de Imunização e Doenças Respiratórias do Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, a agência governamental americana de saúde pública, afirmou há uma semana o novo coronavírus se aproximava rapidamente de um status pandêmico.

"O fato de esse vírus ter causado doenças, incluindo doenças que resultaram em morte, e uma propagação sustentada de pessoa para pessoa é preocupante. Esses fatores atendem a dois dos critérios para uma pandemia", disse Messonnier.

"À medida que a disseminação local é detectada em mais e mais países, o mundo se aproxima do terceiro critério: disseminação mundial do novo vírus."

OMS age com cautela diante do novo coronavírus

A OMS tem sido cautelosa em confirmar oficialmente a progressão da gravidade do surto.

No fim de janeiro, a organização reuniu por duas semanas seguidas seu comitê de emergência para avaliar se havia uma situação de emergência de saúde pública de interesse internacional.

Após a primeira reunião, disse que ainda era cedo para isso, mas, após a segunda, reconheceu que a disseminação internacional do Sars-Cov-2 representava um risco para outros países e exigia uma resposta global coordenada para conter o novo coronavírus.

Naquele momento, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, afirmou que a transmissão local fora da China e um receio sobre o impacto do coronavírus sobre países com sistemas de saúde mais frágeis levou àquela decisão.

E foi só no sábado passado que a organização disse que o novo coronavírus representa um perigo "muito alto" globalmente, o nível máximo de sua classificação de risco.

O mesmo padrão parece se repetir agora. Ghebreyesus afirmou na semana passada que o vírus tem um "potencial pândemico", mas que ainda não tinha chegado a este estágio, porque não estaria se espalhando livremente pelo mundo, nem provocando mortes em larga escala.

"Estamos monitorando a situação a cada momento do dia e analisando os dados. Já disse isso antes e vou repetir: a OMS não hesitará em declarar uma pandemia, se as evidências apontarem isso", disse Ghebreyesus na segunda-feira (02/03).

Por que a OMS ainda não declarou uma pandemia?

Declarar uma pandemia significa dizer que os esforços para conter a expansão mundial do vírus falharam e que a epidemia está fora de controle. No entanto, esta crise passa agora por um momento singular desde que começou.

O grupo de nações afetadas cresce dia a dia, assim como daquelas onde há transmissão local, mas o número de mortes fora da China superou pela primeira vez, nesta quarta-feira (4/2), os óbitos registrados no país. O número de casos confirmados entre os chineses também vem caindo progressivamente.

"Declarar ou não uma pandemia depende do recado que a OMS quer passar para o mundo", afirma Chebabo.

"A OMS usa o exemplo da China e de outros países, como Vietnã e Camboja, que tiveram casos no início e conseguiram conter a disseminação, para dizer que ainda há espaço para contenção."

Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, disse que não hesitará em declarar uma pandemia quando houver evidências científicas disso
Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, disse que não hesitará em declarar uma pandemia quando houver evidências científicas disso
Foto: AFP / BBC News Brasil

Ao afirmar que estamos diante de uma pandemia, a OMS sinaliza que é hora de passar para a fase de mitigação, ou seja, deixar de se concentrar na detecção de novos casos e adotar medidas para tratar os pacientes em estados mais grave e evitar mortes.

Mas, antes disso, a organização precisa garantir que terá como apoiar os países mais pobres na ações necessárias para isso, diz Boulos.

"A OMS subsidia muitos países e deve estar se mexendo há algum tempo para garantir que, na hora em que a pandemia for declarada, terá os recursos financeiros necessários."

A organização também tem sido cuidadosa diante da evolução do novo coronavírus porque foi bastante criticada por ter considerado a disseminação da gripe suína uma pandemia, três meses após ela eclodir no México.

Isso gerou uma corrida global para a compra de medicamentos e outros insumos para combater o vírus H1N1, que, depois, se mostrou menos letal do que se esperava.

Carmo, da Fiocruz, participou de um comitê independente que avaliou a resposta da OMS diante da gripe suína e diz que, na época, a decisão não foi tomada de forma isolada pela organização, mas com base em estudos científicos que faziam "previsões catastróficas".

Ele avalia que a OMS deve declarar agora uma pandemia para que seja possível otimizar recursos e direcionar esforços de forma mais eficiente, e evitar assim um colapso dos sistemas de saúde de seus países-membros.

"Quanto mais há esse atraso, mais esses sistemas vão estar concentrados em detectar novos casos enquanto precisam lidar com os pacientes graves, o que leva a uma sobrecarrega. Se não houver uma mudança, os insumos e pessoal que temos à disposição serão insuficientes para dar conta da situação", afirma Carmo.

O Ministério da Saúde disse à BBC News Brasil que, independentemente da declaração de pandemia, já "está se preparando para uma fase de transição entre a contenção do vírus e o atendimento à população afetada".

A OMS não respondeu a um pedido de entrevista para esta reportagem.

Vírus é menos letal, mas causa pânico

Incerteza em torno do novo coronavírus faz o mercado de ações acumular sucessivos resultados negativos
Incerteza em torno do novo coronavírus faz o mercado de ações acumular sucessivos resultados negativos
Foto: EPA / BBC News Brasil

Ao mesmo tempo, o novo coronavírus apresenta um grande potencial de transmissão, mas parece ser menos letal do que aqueles por trás de outras duas epidemias nas últimas duas décadas.

A OMS estima que 3,4% dos pacientes morrem por causa da covid-19, a doença causada por este vírus. Este índice foi recentemente revisado para cima pela organização, que antes apontava uma taxa de letalidade de cerca de 2%.

Ainda assim, é uma proporção bem menor do que a registrada nos surtos de coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, na sigla em inglês) e da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers, na sigla em inglês), em que 10% e 35% dos pacientes morreram, respectivamente.

Diante disso, o diretor-geral da OMS justificou a decisão de não ter declarado uma pandemia até momento ao dizer que usar esse termo sem o devido cuidado pode ampliar um medo desnecessário na população e ter um grande impacto sobre os sistemas de saúde locais.

Boulos diz que isso não pode ser uma justificativa, porque alimentos e outros produtos básicos já estão se esgotando em supermercados e farmácias, os mercados de ações tem acumulado sucessivos resultados negativos e já houve vários casos de hostilidades contra cidadãos chineses e de outros países onde o surto é mais grave.

"Em um mundo globalizado, o pânico já está acontecendo há algum tempo. Veja o que está ocorrendo no Brasil, onde temos apenas dois casos confirmados e não se acha mais álcool ou máscaras. Tudo acabou antes mesmo da epidemia começar aqui."

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