Covid-19: o que deu errado na 'exemplar' Alemanha, que vê nova onda de mortes e cancela Natal
Férias de verão, lockdown "light" e infecções fora de controle, que impossibilitam rastreamento de contatos, levaram a maior economia da Europa a fechar novamente.
"Se não diminuirmos os contatos e esse for o último Natal que passamos com nossos avós, vamos ter falhado. Não podemos deixar isso acontecer", afirmou, emocionada, a chanceler alemã, Angela Merkel. "Eu sinto muito, do fundo do meu coração. Mas se o preço que nós pagamos é a morte de 590 pessoas por dia, então é inaceitável. Temos que endurecer as medidas."
Maior economia da Europa, a Alemanha foi vista por vizinhos como um exemplo sobre como lidar com a pandemia de coronavírus. Isso foi no começo do ano. Agora, a história é outra.
Como seus pares europeus, a Alemanha está nadando — e tentando não se afogar — em uma segunda onda. Os números estão atingindo recordes.
Na semana passada, foram registradas 29,875 novas infecções em um dia, de acordo com o Instituto Robert Koch, agência governamental responsável pelo controle e prevenção de doenças infecciosas na Alemanha. Foi o número mais alto registrado em um período de 24 horas na Alemanha desde o começo da pandemia.
Até agora, 21,975 pessoas já morreram no país de 83 milhões de pessoas.
Ao apelo contundente e bastante preocupado de Merkel na semana passada, seguiu-se o anúncio de um lockdown mais severo no país. O anúncio foi feito neste domingo (13/12). O confinamento começará na quarta (16/12) e vai se estender até dia 10 de janeiro.
Agora, sob o confinamento nacional anunciado por Merkel, lojas não essenciais vão fechar, assim como escolas. O trabalho remoto está sendo estimulado. Eventos de Ano Novo estão proibidos.
São medidas duras para conter um aumento descontrolado de casos.
Então, o que deu errado na Alemanha?
Férias de verão e lockdown 'light'
Os confinamentos rígidos nos países europeus durante março e abril deram um alívio temporário. Com o distanciamento físico imposto pelos confinamentos, as cadeias de infecção foram quebradas, e o número de casos caiu. Com isso, países reabriram suas economias, e muitos europeus foram curtir férias de verão.
Essas férias contribuíram diretamente para o aumento de infecções, diz Hajo Zeeb, professor de epidemiologia da Universidade de Bremen, na Alemanha. "Era possível ver claramente a relação entre o retorno de alemães de determinados países e o aumento das infecções nas regiões da Alemanha para as quais haviam voltado", afirma. Além disso, o vírus ainda estava circulando na Alemanha, com uma disseminação acentuada ainda mais por causa da abertura dos serviços. A combinação levou a um aumento de casos — e à segunda onda.
E então, como resposta, a Alemanha decidiu adotar em novembro um lockdown "light", não tão severo quanto aquele de março e abril. Enquanto isso, vizinhos europeus como a França e a Bélgica, também em situação crítica, adotavam confinamentos mais rígidos.
Restaurantes, bares e centros de lazer fecharam na Alemanha, e algumas regiões do país impuseram seu próprio confinamento. Escolas, lojas e igrejas permaneceram abertas, e restaurantes podiam vender comida para levar.
No país, o debate sobre abertura ou fechamento dos serviços também girou em torno da economia, com proprietários de restaurantes dizendo que teriam que fechar seus negócios se houvesse um segundo lockdown, por exemplo, embora a Alemanha tenha investido em ajuda financeira para a população.
Quando anunciou esse lockdown "light", no fim de outubro, Merkel já dizia que a situação era grave, e que o sistema de rastreamento de contatos não conseguia descobrir a origem das infecções em 75% dos casos.
"É sempre mais fácil dizer em retrospecto. O lockdown 'light' não foi o suficiente, claro. Mas naquela época ninguém conseguia identificar quais eram os lugares onde as infecções estavam se espalhando", diz Zeeb. Restaurantes, que podem ser um foco de infecção, foram fechados, por exemplo.
Para o professor, o grande erro foi não ter mudado a estratégia ao fim do período de quatro semanas desse lockdown "light", ou seja, no início de dezembro. Mesmo com os casos aumentando, a Alemanha apenas estendeu o lockdown parcial. "Deveríamos ter entrado em um confinamento mais rígido quando percebemos que o mais light não tinha sido suficiente", afirma.
Foi só nesta semana, já em meados de dezembro, que um confinamento mais rígido foi anunciado.
Rastreamento de contatos
O grande trunfo da Alemanha durante a primeira onda de infecções foi um elogiado programa de rastreamento de contatos.
Isso significa ter um sistema que identifique as pessoas que entraram em contato com aquelas que receberam um teste positivo para coronavírus. Desta forma, elas também devem se isolar, com o objetivo de não contaminar outras pessoas e assim romper cadeias de infecção.
A Alemanha aproveitou a infraestrutura existente em seus 375 escritórios de saúde pública locais para construir um sistema de rastreamento robusto. Funcionários públicos foram remanejados para trabalhar com isso, e o país também recrutou estudantes de medicina e bombeiros para trabalhar por e-mail e telefone. O país tinha como meta ter ao menos 5 rastreadores para cada 20 mil habitantes. Um aplicativo de rastreamento de contatos para celular foi lançado em junho.
O investimento nessa iniciativa aliada à testagem em massa colocou a Alemanha em uma boa posição para enfrentar a crise e impedir novos grupos de infecção.
Mas na segunda onda as coisas saíram do controle.
Desta vez, autoridades de saúde foram incapazes de localizar as pessoas possivelmente infectadas, simplesmente por causa do grande número de casos no país. Segundo o Instituto Robert Koch, a última média semanal de casos foi de 176 por 100 mil habitantes. O número impossibilita o rastreamento de contatos, já que o sistema só funciona quando há, em média, 50 casos por 100 mil habitantes em um período de sete dias, segundo o governo alemão.
"O governo não consegue mais entregar por causa do número muito grande de contágios", diz Zeeb. Segundo ele, além disso, a disseminação saiu tanto de controle que as infecções estão acontecendo de forma espalhada na população, e não em bolhas identificáveis. Ele diz que hoje está sendo possível identificar a origem de apenas 20% das infecções, enquanto a origem de 80% delas permanece desconhecida.
"As pessoas não sabem se foi naquela visita para o centro da cidade, ou quando encontraram uma pessoa, ou então em uma estação de metrô. Está muito mais difícil identificar a origem das infecções agora", diz Zeeb. Não há mais, diz ele, registros de eventos únicos de contaminação, como festas etc. "Está generalizado."
"As únicas bolhas de contaminação que temos desta vez, infelizmente, são nos asilos."
Jovens infectados
A faixa etária também desempenhou um papel importante na percepção de como a Alemanha foi bem no início da pandemia. Naquela época, diz Zeeb, a reação eficaz do país à pandemia também teve ajuda do perfil dos contaminados.
"No começo, foi a população mais jovem que foi contaminada. Muitos voltaram de férias em estações de esqui na Itália e na Áustria, e depois foram a reuniões e festas de Carnaval", diz ele. A Itália foi o país da Europa que inicialmente mais sofreu com a pandemia. "Isso levou a um número relativamente baixo de mortes em relação ao resto do mundo", e permitiu que o país tivesse mais tempo para preparar seu sistema de saúde.
Desta vez, depois das férias de verão, diz o professor, a distribuição etária começou de maneira semelhante, mas isso já mudou. "Está chegando à população mais velha e, com isso, vêm mais mortes."
E a oferta de leitos de UTI para essa grande porção de pessoas infectadas pelo vírus no país também pode estar na corda bamba, segundo alertou a Deutsche Welle em reportagem desta semana.
No início da pandemia na Europa, a quantidade de leitos na Alemanha deu ao país um respiro em comparação com outros países onde hospitais estavam chegando a sua capacidade máxima.
"Fizemos muito trabalho preparatório, investimos recursos na construção de UTIs. Alguns hospitais estão realmente estressados até o limite, mas no geral, o sistema está se segurando", afirma Zeeb. "O problema maior que temos é de falta de pessoal para trabalhar nessas UTIs."
A situação é complexa, diz o professor, com vários fatores que explicam a situação da Alemanha agora. "Mas nós infelizmente caminhamos para uma direção ruim."