'Curdos não têm amigos, só as montanhas': o drama de povo abandonado à própria sorte pelos EUA
Curdos sírios dizem que foram traídos pelos Estados Unidos num momento em que tropas da Turquia atacam suas bases no nordeste da Síria.
"É como o inferno. Temo pela minha família e por todos que conheço."
Sevinaz é de uma cidade na Síria próxima à fronteira com a Turquia. O local ficou sob forte artilharia quando militares turcos e grupos aliados compostos por rebeldes sírios lançaram um ataque contra forças lideradas por curdos nessa região, na quarta-feira (09/10).
A ativista e cineasta curda, de 27 anos, diz que os ataques à cidade — chamada de Sere Kaniye pelos curdos e de Ras al-Ain pelos árabes — a forçaram a fugir com vários membros da família.
"Estou fora da cidade com minha mãe doente. Meu irmão está lá dentro. Fui informada de que meu primo pode ter sido martirizado. Não há lugar seguro para ninguém", ela disse à BBC na manhã de quinta-feira, horas depois de os rebeldes anunciarem que a cidade estava cercada.
"Tenho medo de que seja a última vez que vejo minha cidade", ela afirmou.
'Erdogan é um mentiroso'
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, disse que o objetivo da operação militar é criar uma "zona de segurança" que avança 32 km no lado sírio da fronteira com a Turquia. O governo turco quer mandar para essa área dois milhões de refugiados sírios.
A ofensiva ocorreu após os Estados Unidos retirarem suas tropas da região, sinalizando concordância com a operação. Até então, os curdos eram os principais aliados dos EUA no combate ao grupo jihadista autodenominado Estado Islâmico, que tenta construir um califado na região.
Erdogan diz que busca expulsar da fronteira turca membros de uma milícia curda síria chamada de Unidades de Proteção do Povo (UPP). Ele diz que a UPP é uma extensão de um grupo rebelde que já lutou pela autonomia dos curdos na Turquia e que é considerada uma organização terrorista pela Turquia, pelos EUA e pela União Europeia.
A UPP, que nega a acusação, é a força dominante numa aliança entre milícias curdas e árabes chamadas de Forças Democráticas Sírias (FDS). Ela vinha sendo uma parceira vital da coalizão militar internacional que os EUA lideram na região.
Sevinaz rejeita a afirmação de Erdogan de que ele busca "prevenir a criação de um corredor de terror através da fronteira sul e levar a paz à região".
"Ele é um mentiroso e quer que os curdos desapareçam. E não só curdos, porque em Sere Kaniye e todas as outras cidades não são só curdos que moram", ela diz.
Sevinaz diz acreditar que combatentes da FDS e da UPP farão o que puderem para repelir a ofensiva turca e sairão vitoriosos.
"Eles são os filhos desta terra. São nossos irmãos e irmãs", ela explica. "Mesmo com todas as coisas que estão acontecendo e o silêncio do mundo, ainda acredito que as pessoas certas vão vencer."
Azad Cudi, um curdo britânico-iraniano que é um atirador de elite na UPP, disse à BBC na quarta-feira que a decisão do presidente dos EUA, Donald Trump, de retirar soldados americanos da região de fronteira antes da ofensiva turca foi como "uma punhalada nas costas".
Os militares dos EUA haviam tentado evitar uma ofensiva turca contra seus aliados curdos ao negociar com a Turquia um "mecanismo de segurança" na fronteira. A UPP cooperou com o desmantelamento de fortificações na área.
"Em agosto, chegamos a esse acordo de 'mecanismo de segurança'", diz Cudi. "Baseado nisso, nos retiramos. Destruímos nossas posições de combate construídas para combater os turcos em caso de uma invasão e as entregamos aos americanos."
'Não temos amigos'
Cudi diz que a FDS não tem os armamentos antitanque e antiaéreos necessários para segurar um ataque turco.
"Mas se não tem jeito, não tem jeito. Vamos lutar custe o que custar."
"Muitos, muitos no passado abandonaram os curdos. Isso é o que eles dizem: 'Não temos amigos, só as montanhas'", ele afirmou. "Os Estados Unidos, como qualquer outro país ou qualquer outro governo, farão o que atende melhor a seus próprios interesses. Nós sabemos disso."
Ele disse que Trump e outros políticos americanos foram enganados sobre a guerra contra o Estado Islâmico, e expressou preocupação quanto ao risco de que milhares de supostos militantes jihadistas detidos em prisões da FDS fujam caso as instalações sofram ataques da Turquia.
"[A guerra] não acabou, ela não terminou. Não faríamos algo como perder prisioneiros, mas imagine quando as coisas ficarem difícieis, há uma guerra e você está lutando em muitos frontes. Será difícil controlar e gerenciar esses prisioneiros."
Ele acrescentou: "Os curdos são o único povo que lutou (contra o Estado Islâmico). O governo iraquiano e o governo sírio não conseguiam resistir a seus ataques. Nós fomos os únicos que pudemos resistir. Se formos ameaçados, a esperança deles sobre a criação de um novo califado pode crescer de novo."
Sevinaz diz acreditar que a Turquia esteja em contato com células adormecidas do Estado Islâmico no nordeste da Síria e poderia pedir a ajuda delas para atacar os curdos. Na quarta-feira, vários militantes jihadistas atacaram posições da FDS na região.
"Estou preocupada e acho que logo eles farão muitos outros movimentos. Eles já fizeram um (ataque) perto de Sere Kaniye e, em Raqqa, e acho que haverá mais em breve."
A Turquia diz ter ordenado o avanço de seus militares pelo norte da Síria para combater o terrorismo. O governo turco diz querer assumir a liderança do combate ao Estado Islâmico.
Sevinaz também tem pouca esperança de que Trump cumpra a promessa de "destruir totalmente" a economia da Turquia caso o país aja "fora dos limites" nessa intervenção.
"O que 'fora dos limites' significa? Eles (militares turcos) já estão atacando todos os lugares", diz ela. "Eles não se preocupam com civis. Eles não se preocupam com as cidades."
"Donald Trump não vai fazer nada. Ele se preocupa com dinheiro. Ele não se importa com as 11 mil pessoas que morreram ao lutar e resistir contra o Estado Islâmico."
Sevinaz diz que não fugirá para outras partes da Síria. "Não vou sair de Rojava. Nunca vou me mudar," ela afirmou, usando o nome turco para a região nordeste do país.
Em vez disso, ela conclamou pessoas de outros países a pressionar seus governos quanto à situação.
"Os Estados não se preocupam conosco. Os Estados não preocupam com a possibilidade de que os prisioneiros do Estado Islâmico voltem a seus países. Os Estados não se preocupam com o fato de que estamos sob ameaça há um longo período", ela adicionou. "Agora é a hora das vozes do povo, que acreditam em liberdade, que acreditam em direitos humanos."