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Deslocamento em massa no Líbano ressuscita espectro de conflitos sectários

15 out 2024 - 15h17
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Marjayoun, uma cidade de maioria cristã no sul do Líbano, abriu suas escolas e uma igreja no mês passado para abrigar dezenas de pessoas que fugiam do bombardeio israelense contra vilarejos muçulmanos, estendendo a mão em meio à divisão sectária do país.

Alguns moradores estavam inquietos, preocupados com o fato de que entre os que buscavam refúgio poderiam estar pessoas ligadas ao Hezbollah, milícia muçulmana xiita e partido político em guerra com Israel, disseram sete deles à Reuters. Mas também queriam manter os costumes locais de boa vizinhança e sabiam que aqueles que fugiam da ofensiva israelense cada vez maior não tinham para onde ir.

Marjayoun foi poupada do impacto dos ataques israelenses contra o Hezbollah no ano passado. Ainda assim, os moradores logo sentiram que a guerra havia chegado.

Em 6 de outubro, dois moradores locais -- um professor e um policial -- foram mortos nos arredores de Marjayoun em ataques de drones israelenses que tinham como alvo um homem xiita em uma motocicleta, disseram duas fontes de segurança e moradores locais. O Exército israelense não respondeu um pedido de comentário.

Mais tarde naquele dia, um homem deslocado que procurou abrigo no bispado de Marjayoun disparou uma arma para o alto e ameaçou a equipe após lhe pedirem para se mudar para outro local, relataram três moradores e Philip Okla, o padre da Igreja Ortodoxa de Marjayoun.

O espírito acolhedor de Marjayoun evaporou rapidamente.

"Você não pode convidar o fogo para sua casa", disse Okla à Reuters por telefone, expressando o temor de alguns moradores de que os deslocados atraiam a violência.

Após apelos dos moradores locais para que saíssem, dezenas de pessoas deslocadas deixaram a aldeia, assim como muitos dos habitantes aterrorizados da cidade, de acordo com Okla e seis moradores que pediram para não serem identificados.

A população do Líbano é um mosaico de mais de uma dúzia de segmentos religiosos, com representação política dividida em linhas sectárias. As divisões religiosas alimentaram a ferocidade de uma brutal guerra civil entre 1975 e 1990, que deixou cerca de 150.000 pessoas mortas e se estendeu aos estados vizinhos.

A Reuters conversou com mais de uma dúzia de parlamentares, políticos, residentes e analistas segundo quem a ofensiva militar de Israel nas áreas de maioria xiita do Líbano, que deslocou mais de um milhão de pessoas para áreas sunitas e cristãs, trouxe à tona as tensões sectárias, representando uma ameaça à estabilidade do Líbano.

A antipatia é alimentada por repetidos ataques israelenses a prédios que abrigam famílias deslocadas, dando origem a preocupações de tornarem-se alvos ao hospedarem os que fugiram de suas casas, disseram as fontes.

"Agora, as barreiras estão sendo erguidas e os temores estão aumentando porque ninguém sabe para onde estamos indo", disse Okla, que lamentou a crescente hostilidade.

UM TECIDO FRÁGIL

Milícias libanesas ligadas a grupos religiosos travaram uma guerra civil de 15 anos. O conflito terminou com o desarmamento de todas elas, exceto o Hezbollah, que manteve suas armas para resistir à ocupação contínua de Israel no sul do país.

Israel se retirou em 2000, mas o Hezbollah manteve suas armas. O Hezbollah travou uma guerra de fronteira contra Israel em 2006 e usou suas armas contra adversários políticos no Líbano em 2008, em batalhas de rua que consolidaram sua ascendência.

Um tribunal apoiado pela ONU condenou membros do Hezbollah pelo assassinato do primeiro-ministro sunita Rafik Hariri, em 2005, e  oponentes o responsabilizam por uma série de outros assassinatos de políticos, em sua maioria cristãos e sunitas. O Hezbollah sempre negou a responsabilidade por qualquer um deles.

Com o apoio do Irã, o Hezbollah se transformou em uma força regional, lutando na Síria para ajudar a reprimir um levante contra o presidente Bashar al-Assad, mantendo o poder de veto efetivo sobre a tomada de decisões no Líbano -- inclusive sobre a presidência,  reservada a um cristão maronita por convenção.

O cargo está vago desde 2022.

Com a base de apoio xiita do Hezbollah sofrendo com os golpes de Israel, os líderes libaneses -- incluindo o primeiro-ministro interino Najib Mikati, um empresário muçulmano sunita -- enfatizaram a importância de manter a "paz civil".

Até mesmo os rivais do Hezbollah, incluindo o partido cristão Forças Libanesas, obedeceram em grande parte, moderando sua retórica política e pedindo aos apoiadores que não alimentem as tensões.

Mas, na prática, essas tensões são reais, inclusive em torno de escolas que acolheram pessoas deslocadas em Beirute. Membros de partidos aliados ao Hezbollah assumiram o controle de quem entra e sai e o que entra em algumas dessas instituições, de acordo com vários moradores.

As principais vias públicas, entupidas apenas durante o horário de pico, agora estão repletas, dia e noite, de carros pertencentes a pessoas que fugiram dos bombardeios israelenses, sobrecarregando a infraestrutura da cidade, já em frangalhos.

No subúrbio cristão de Boutchay, em Beirute, moradores irritados impediram, na sexta-feira, que um caminhão descarregasse um contêiner em um depósito alugado a alguém de fora da área, suspeitando que pudesse conter armas do Hezbollah, disse o prefeito Michel Khoury.

"Há tensão. Todo mundo está com medo hoje", disse Khoury, acrescentando que o veículo foi mandado embora sem ser revistado

O parlamentar druso Wael Abu Faour disse que os políticos de todos os lados precisam trabalhar para preservar a unidade nacional.

"Beirute pode explodir por causa dos deslocados, por causa do atrito, por causa das disputas por propriedades -- porque o sul, Bekaa e os subúrbios estão todos em Beirute", disse.

O Líbano já estava se recuperando da explosão do porto de Beirute em agosto de 2020 e de uma crise econômica de meia década -- que empobreceu centenas de milhares de pessoas -- quando o Hezbollah abriu uma segunda frente contra Israel no dia seguinte ao ataque do Hamas em 7 de outubro.

Questionado sobre os riscos de tensões sectárias, o chefe dos refugiados das Nações Unidas, Filippo Grandi, disse à Reuters que o Líbano é um "país frágil".

"Qualquer choque, e este é um grande choque, pode realmente fazer o país retroceder... e pode causar grandes problemas", disse Grandi.

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