Análise: cristãos sírios são vítimas de extremistas, não de muçulmanos
Segundo historiador brasileiro radicado no Líbano, violência já levou milhares de cristãos a imigrar para países ocidentais
A comunidade cristã na Síria vive em um fogo cruzado entre rebeldes extremistas e governo, e vítimas do desenrolar dos acontecimentos geopolíticos na região. O cenário para os cristãos na Síria é uma repetição do drama em que vivem as minorias cristãs no Oriente Médio em geral. Em entrevista ao Terra, o historiador e arqueólogo brasileiro Roberto Khatlab, falou sobre a situação dos cristãos na Síria e região, e a preocupação das igrejas orientais com a constante fuga de seus fiéis para o Líbano e países ocidentais.
Radicado no Líbano há mais de 25 anos, o paranaense Roberto Khatlab é diretor do Centro de Estudos e Cultura da Amércia Latina na Universidade Espírita de Kaslik e autor de inúmeros estudos e livros sobre os cristãos orientais e a relação com o Islamismo, incluindo Maria no Islã (Editora Ave Maria, 2003) e Cristãos Árabes? (Editora Ave Maria, 2009).
“Os cristãos na Síria e Oriente Médio são vítimas de extremistas, não de muçulmanos. Eles usam o Islamismo como arma política, são radicais. E representam uma ameaça séria à existência dos cristãos na região”, disse Khatlab.
Segundo ele, as igrejas orientais na Sïria e na região vêm alertando a comunidade internacional para um crescente problema que afeta os cristãos: um aumento da violência contra eles, e que já levou milhares de cristãos a imigrar para países ocidentais.
Em quase três anos de guerra civil na Síria, o número de mortos já supera mais de 100 mil, além de um grande número de feridos, segundo as Nações Unidas e outras organizações internacionais.
O saldo humanitário piora a cada dia: são cerca de dois milhões de refugiados, quase metade destes crianças, distríbuidos nos países vizinhos à Síria, como o Líbano, a Jordânia e a Turquia. Além disso, outros milhões de pessoas permanecem deslocadas de suas casas como refugiados internos na Síria.
Não há um número preciso de cristãos vítimas do conflito, mas as igrejas orientais estimam que mais de 450 mil cristãos estão refugiados internamente ou deixaram o país. Com uma população de cerca de 22 milhões, e majoritariamente muçulmana sunita, a comunidade cristã na Síria totaliza em torno de dois milhões.
Terra: Você tem acesso a diferentes líderes religiosos, tanto muçulmanos quanto cristãos, sírios ou libaneses. Há muitos cristãos que vieram da Síria em busca de refúgio no Líbano. Por suas conversas com clérigos e pessoas em geral, qual o maior temor dos cristãos, não apenas no atual momento do conflito sírio, mas também em um futuro com ou sem o presidente Bashar al-Assad?
Roberto Khatlab: Na Síria, há um presidente (al-Assad) que vem de uma minoria alauíta, que é protegida pelo regime. No final, o regime se tornou um protetor destas minorias, incluindo os cristãos e os drusos. Com o aumento do poder dos extremistas em relação aos moderados entre os rebeldes, o medo agora dos cristãos e outras minorias é quem assumiria a liderança da Síria caso Bashar al-Assad seja deposto. Talvez um grupo radical tome o poder e passe a perseguir os outros grupos menores.
O medo deles é um desfecho similar ao que aconteceu no Iraque. O Saddam Hussein (ex-presidente iraquiano) era um ditador, mas ele protegia a todos. Hoje não, já que os radicais perseguem e matam as minorias cristãs no Iraque.
Esse é um medo geral dos cristãos em todo o Oriente Médio, de sempre se preocuparem com quem assumirá o poder. Caso seja um radical, fica o temor de serem perseguidos e de não serem mais considerados como, por exemplo, sírios, iraquianos, egípcios. Para estes radicais, a idéia é de que o Oriente Médio só pode ter uma religião, o Islamismo, e não há espaço para outras.
Terra: Você vê uma diferença entre a situação dos cristãos na Síria e daqueles no Egito, por exemplo? Há algo em comum ou o contexto é diferente?
Khatlab: O contexto é o mesmo. O Egito, de todos os países árabes, é o que possui o maior número de cristãos (cerca de 8 milhões), é a maior comunidade cristã no Oriente Médio. No entanto, eles não têm nenhuma força política, um partido que os represente e mal são representados no governo. A mesma coisa acontece na Síria, onde eles são significativos em números mas tambem não possuem grande representatividade dentro do governo, mesmo sendo de certa forma protegidos pelo regime de Assad.
Terra: E no Líbano? Embora os cristãos não tenham mais o poder de décadas atrás, continuam com alguma relevância?
Khatlab: A situação é diferente no Líbano, onde o presidente da República e vários deputados no Parlamento são cristãos, sem contar que o chefe das Forças Armadas é também um cristão. Continuam, portanto, com algum nível de poder e relevância. O Líbano é uma exceção. Nos outros países árabes, pode até haver um ou dois cristãos em cargos governamentais, mas raramente em um posto importante e de tomada de decisões. Por isso, os cristãos hoje na região querem manter o pouco das regalias que possuem, mesmo vindos de ditaduras, pois temem perdê-las caso grupos radicais tomem o poder na Síria e em outros países.
Terra: Muitos cristãos vêm imigrando para o Líbano porque, como você descreveu, há maior segurança e proteção para eles. Mas muitos querem deixar a região para outros países ocidentais, como a Europa, os Estados Unidos e até o Brasil. Como as igrejas orientais têm visto isso?
Khatlab: Recentamente houve um congresso das igrejas orientais aqui no Líbano, inclusive com a presença de representantes do Iraque e da Síria. As igrejas estão certamente preocupadas, porque há muita gente querendo emigrar dos países árabes, muitos nem têm condições financeiras mas perseguem esse objetivo.
Para as igrejas, é um cenário preocupante, pois se chegarem a um ponto em que todos os cristãos sairem do Oriente, a sociologia da região será alterada, ficará apenas uma cultura homogênea. Se as comunidades cirstãs forem extintas, e o último reduto que é o Líbano caminhar para um mesmo cenário, teremos então a divisão completa entre o Ocidente e Oriente, um cristão e o outro muçulmano. Isso acabaria com a última ponte de entendimento entre os países ocidentais e o mundo árabe-islâmico. Os cristãos árabes são o último elo entre esses dois mundos.
Terra: As igrejas orientais têm tomado ações para evitar esse fluxo migratório e o consequente esvaziamento das comunidades cristãs na região?
Khatlab: Para estimular a permanência dos cristãos, as igrejas e padres continuam nos países árabes, apesar dos perigos. No Iraque, os clérigos tentam dialogar com o governo para que garanta a proteção das minorias. Já na Síria, não há com quem dialogar, já que não há um lado mais forte na guerra e a situação é de caos. Se apoiarem o regime, os rebeldes farão represálias contra eles. Por outro lado, colocando-se ao lado dos rebeldes, arriscam serem atacados pelos apoiadores do governo.
É o caso do Egito, onde o patriarca da Igreja Cópta declarou apoio aos militares para derrubarem o presidente islamita Mohamed Mursi. Em represália, islamitas e simpatizantes de Mursi queimaram igrejas e monastérios, associando a comunidade cópta à derrubada do presidente. Então, os cristãos vivem sempre em meio a decisões difíceis, suas escolhas políticas sempre terão consequências. Veja bem, a posição que o patriarca cópta tomou foi a mesma do Xeique de Al Azhar (a maior autoridade sunita do país), de apoiar os militares contra Mursi. No entanto, os cristãos pagaram com perseguição, não houve mesquitas queimadas, por exemplo.
Terra: Por que essa percepção dos muçulmanos mais radicais ou grupos extremistas de que todo árabe cristão é ocidental e não simplesmente um árabe, igual ou mais do que eles? De onde vem isso?
Khatlab: Isso vem da época das Cruzadas, quando as expedições militares dos cruzados almejavam liberar Jerusalém, nos séculos 9 e 10, como uma questão principalmente política. Antes das Cruzadas, cristãos e muçulmanos viviam relativamente em harmonia. Mas a chegada das Cruzadas, estes cristãos vindos do Ocidente, colocou em risco os cristãos orientais. Após conseguir liberar certas regiões ou Jerusalém, os cruzados protegiam os cristãos locais e massacravam os muçulmanos. Os muçulmanos passaram a ver os cristãos orientais como ocidentais, por conta disso.
Mas há casos recentes, como a invasão dos Estados Unidos ao Iraque (em 2003), onde os muçulmanos passaram a chamar os iraquianos cristãos como cruzados. Isso ocorreu porque eles viam os cristãos como aliados dos americanos, devido ao fato de que vários trabalharam para as tropas americanas durante os anos de ocupação como intérpretes, por exemplo.
No fim, os americanos contratavam os cristãos porque estes tinham, em geral, mais conhecimento do inglês do que os muçulmanos. A maioria dos cristãos iraquianos não era a favor dos americanos, mas na visão dos radicais eles passaram a ser “ocidentais”. Vários pagaram com a vida por isso, sendo alvos dos extremistas, que não são verdadeiros muçulmanos, mas usam o Islamismo como arma, como forma de mobilizar sentimentos e disseminar o ódio e desinformação em relação às minorias.
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