Donald Trump realmente pode deportar 1 milhão de migrantes sem visto?
O projeto do novo presidente dos EUA tem implicações jurídicas, financeiras e logísticas. Os defensores dos migrantes também alertam para os custos humanos.
Durante a campanha para as eleições presidenciais, Donald Trump prometeu que deportará em massa os migrantes que não tiverem vistos válidos para permanecer nos Estados Unidos.
Ele falou sobre o tema em diversas ocasiões e reiterou que esse será um de seus grandes projetos durante o segundo mandato.
Embora a campanha do republicano tenha respondido de diferentes maneiras à questão de quantos poderiam acabar sendo expulsos, o seu companheiro de chapa, o agora vice-presidente JD Vance, deu um número concreto durante uma entrevista à televisão ABC.
"Vamos começar com um milhão de pessoas. Foi aí que Kamala Harris falhou e a partir daí podemos começar a trabalhar", afirmou o então senador, durante a corrida eleitoral de 2024.
Mas embora a ideia já faça parte das propostas da plataforma eleitoral de Trump —sob o lema "Deportações em massa, já!" — os especialistas alertam que expulsar tantas pessoas do país geraria uma série de desafios jurídicos e até práticos.
Os defensores dos migrantes também alertam para o custo humano significativo das deportações, com famílias separadas e prejuízo a comunidades e diversos locais de trabalho nos EUA.
Com Trump de volta à Casa Branca, ele será capaz de colocar em prática esta proposta?
Quais são os desafios legais?
De acordo com os últimos números do Departamento de Segurança Interna e do instituto de pesquisa Pew Research, cerca de 11 milhões de migrantes sem visto vivem hoje nos EUA, número que se manteve relativamente estável desde 2005.
A maioria deles são residentes de longa duração: quase quatro em cada cinco migrantes sem documentos estão no país há pelo menos uma década.
Os migrantes que estão ilegalmente no país têm direito ao devido processo, incluindo uma audiência judicial antes de serem deportados.
Assim, um aumento drástico nas deportações envolveria provavelmente primeiro a expansão do sistema judicial de migração, que atualmente está saturado e com atrasos na resolução de casos.
A maioria dos migrantes não entrou no sistema de deportação após serem detidos por agentes de Imigração e Alfândega (ICE), mas, sim, pela polícia local.
No entanto, foram aprovadas leis em muitas das principais cidades do país que restringem a cooperação entre a polícia e o ICE.
A campanha de Trump se comprometeu a tomar medidas contra essas cidades, chamadas "cidades santuário", mas a rede de leis locais, estaduais e federais nos EUA complica a situação.
Kathleen Bush-Joseph, analista do instituto Migration Policy, com sede em Washington, destaca que a cooperação entre os agentes do ICE e as autoridades locais seria essencial para concretizar um programa de deportação em massa.
"É muito mais fácil para o ICE buscar alguém na prisão se as autoridades locais colaborarem, em vez de ter de precisar fazer essas buscas nas ruas", diz Bush-Joseph.
Como exemplo de quão crucial é esse aspecto, Bush-Joseph recorda algumas declarações proferidas no início de agosto por autoridades policiais do Condado de Broward e Palm Beach, na Flórida, quando garantiram que não enviariam nenhum dos seus agentes para ajudar nos planos de deportação em massa.
"Há muitos outros condados que não vão cooperar com o plano de deportação em massa de Trump. E isso torna tudo muito mais difícil", explica.
Qualquer programa de deportação em massa também terá muitas implicações jurídicas, especialmente devido aos processos judiciais que se espera que isso gere entre organizações de direitos humanos.
No entanto, uma decisão do Supremo Tribunal de 2022 estabeleceu que os tribunais não podem emitir liminares sobre as políticas de aplicação da imigração, o que significa que permaneceriam em vigor mesmo que os desafios atravessassem o sistema jurídico.
O projeto é viável do ponto de vista logístico?
Agora, se o governo dos EUA avançasse com as medidas legais que tornam possível o plano de deportação em massa de Trump, as autoridades ainda teriam de lidar com enormes desafios logísticos.
Durante o mandato de Joe Biden, os esforços de deportação se concentraram nos migrantes detidos na fronteira.
Aqueles que já estavam no país e acabaram sendo deportados geralmente tinham antecedentes criminais ou eram considerados uma "ameaça à segurança nacional".
Em 2021, as polêmicas ações realizadas durante o governo de Donald Trump em locais de trabalho foram suspensas.
E, ao contrário dos detidos na fronteira, o número de deportações de pessoas detidas dentro dos Estados Unidos tem diminuído na última década, até ficar abaixo dos 100 mil por ano.
O pico, de 230 mil/ano, aconteceu durante os primeiros anos do governo de Barack Obama.
"Para multiplicar esse número e chegar a um milhão (de deportados) num único ano, será necessário um enorme investimento de recursos que atualmente parecem não existir", afirma Aaron Reichlin-Melnick, diretor de políticas do Conselho de Imigração dos EUA.
Por um lado, os especialistas duvidam que os 20 mil agentes do ICE e o pessoal de apoio sejam suficientes para procurar e encontrar mesmo uma fração do número que Trump tem como alvo.
Além disso, Reichlin-Melnick salienta que o processo de deportação é longo e complicado — e que a identificação e a detenção de um migrante sem documentos é apenas o começo.
Depois, os detidos precisam ficar em um centro de detenção ou em um programa alternativo, à espera de uma audiência perante um juiz de imigração, o que faz o sistema acumular casos há anos sem poder encerrá-los.
Concluída esta etapa, acontece a deportação de fato, o que também requer a cooperação diplomática do país que vai receber a pessoa.
"O ICE simplesmente não tem capacidade para processar milhões de pessoas em cada uma dessas etapas", diz Reichlin-Melnick.
Trump disse que envolverá a Guarda Nacional e outras forças militares para ajudar nas deportações.
Historicamente, as forças militares dos EUA tiveram um papel limitado, mais como um apoio na fronteira com o México.
Além de contar com os militares e com a ajuda das "aplicações da lei locais", Trump deu poucas pistas sobre como executaria o plano de deportação em massa.
Numa entrevista à revista Time no início de 2024, o futuro presidente disse apenas que não descartava a construção de novos centros de detenção de migrantes e que tomaria medidas para proporcionar imunidade à polícia, para protegê-la de possíveis processos judiciais de grupos progressistas.
E acrescentou que poderá criar incentivos para as polícias locais e estaduais que participem do plano — e que quem não quiser, "não ganhará os benefícios".
"Temos que fazer isso. Não é sustentável para o nosso país."
Durante a campanha de 2024, a BBC tentou contato com a equipe de Trump para obter mais detalhes.
Eric Ruark, diretor de investigação da NumbersUSA — uma organização que defende controles de imigração mais rigorosos — disse que qualquer programa de deportação dentro do país só será eficaz se for acompanhado de um aumento no pessoal que controla a fronteira.
"Essa tem que ser a prioridade. Caso contrário, não haverá muito progresso nesta questão. [A falta de pessoal] é o que faz com que as pessoas cheguem à fronteira", ressalta Ruark.
Ele acrescenta que também é necessária uma ofensiva contra as empresas que contratam imigrantes indocumentados.
"(Os imigrantes) vêm em busca de trabalho", enfatiza.
"E têm sucesso, basicamente porque a capacidade de monitorar e fazer cumprir a lei foi desmantelada."
O custo político e financeiro
Os especialistas estimam o custo de manter um plano como o proposto por Trump em cerca de 100 bilhões de dólares.
O orçamento do ICE em 2023 para transferência e deportação foi de 327 milhões de dólares e expulsou quase 140 mil pessoas do país.
Segundo o projeto do novo presidente americano, milhares de pessoas que aguardam audiências de imigração poderão ser detidas.
A campanha do candidato presidencial republicano planejou construir grandes acampamentos para abrigar todos eles.
Também seria necessário multiplicar os voos para realizar as deportações, o que provavelmente envolveria o apoio da força aérea local.
E o que está claro é que qualquer aumento no funcionamento dos departamentos correspondentes implica no disparo dos custos.
"Mesmo uma pequena alteração custa dezenas de milhões de dólares", explica Reichlin-Melnick.
Além disso, teriam de ser somados às despesas de outros esforços de controle fronteiriço que Trump prometeu: os de continuar construindo o muro na fronteira com o México, um bloqueio naval para impedir a entrada de fentanil no país e as transferências de milhares de soldados para a fronteira.
Adam Isacson, especialista em migração e fronteiras do Escritório de Washington para a América Latina (WOLA, na sigla em inglês), disse que "imagens horríveis de deportações em massa" também poderiam ter um custo político para Trump.
"Todas as comunidades da América veriam pessoas que conhecem e amam sendo colocadas nesses ônibus", explica ele.
"Haveria imagens muito dolorosas de crianças chorando, de famílias, na televisão. Tudo isso é uma péssima impressão. É o que já vimos com a política de separação familiar, mas de forma amplificada", antevê ele.
Já houve deportações em massa antes?
Nos quatro anos em que Trump ocupou a Casa Branca, cerca de 1,5 milhões de pessoas foram deportadas, tanto a partir da fronteira como de dentro do país.
Durante o último ano fiscal da administração Biden, foram expulsos mais de 271 mil imigrantes ilegais, um novo recorde nos registros dos EUA.
Durante os dois mandatos de Obama, quando Biden era vice-presidente, mais de três milhões de pessoas foram deportadas, o que levou alguns defensores da reforma da imigração a apelidarem o então presidente de "deportador-chefe".
Mas o único programa comparável ao proposto por Trump seria talvez o realizado em 1954 no âmbito da chamada "Operação Wetback", que leva o nome de um insulto comum que foi usado na época contra os mexicanos, e levou à deportação de 1,3 milhão de pessoas.
Embora existam historiadores que duvidam do número.
O plano, aprovado pelo presidente Dwight Eisenhower, encontrou considerável oposição pública — em parte porque alguns cidadãos americanos também foram deportados — bem como falta de financiamento.
Em 1955, ele foi descontinuado.
Especialistas em imigração afirmam que o fato de se concentrar em pessoas originárias do México e a falta do devido processo legal significa que a operação da década de 1950 não pode ser comparada a um atual programa de deportação em massa.
"Os deportados eram homens mexicanos solteiros", observa Bush-Joseph.
"Agora, a grande maioria dos que atravessam a fronteira nas áreas entre os postos de entrada não são originários do México, nem mesmo do norte da América Central. E isso torna muito mais difícil deportá-los.".
"São situações incomparáveis", conclui a especialista.