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Dubrovnik, a cidade medieval planejada para a quarentena

Os 'lazarettos' de Dubrovnik são a memória da luta da cidade no combate a doenças infecciosas séculos atrás.

3 mai 2020 - 10h18
(atualizado em 4/5/2020 às 09h45)
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Antes lotadas de turistas, as ruas de Dubrovinik agora estão vazias
Antes lotadas de turistas, as ruas de Dubrovinik agora estão vazias
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Desde os tempos antigos, as sociedades tentam separar as pessoas com doenças daquelas que não são afetadas. As referências ao isolamento remontam ao Antigo Testamento. À medida que o Covid-19 corre o mundo, somos aconselhados a fazer autoisolamento.

Para entender a importância da quarentena durante esta pandemia moderna, é útil relembrar a história da própria palavra "quarentena", que remonta à Europa medieval.

A palavra "quarentena" tem raízes italianas: em um esforço para proteger as cidades costeiras da Peste Negra que assolava a Europa do século 14, os navios que chegavam a Veneza de portos infectados eram obrigados a permanecer ancorados por 40 dias (quaranta giorni) antes do desembarque, prática que eventualmente ficou conhecida como quarentena - derivada de 'quarantino', a palavra italiana para se referir a um período de 40 dias.

Em 1374, foi emitida uma proclamação em Veneza, declarando que todos os navios e passageiros deveriam ser estacionados na ilha vizinha de San Lazzaro até que o conselho especial de saúde lhes desse permissão para entrar na cidade. "Isso levou à discriminação de navios e viajantes de certos países, bem como a outras irregularidades que ocorriam regularmente em Veneza", escreve o co-autor Ante Milošević no livro Lazaretto em Dubrovnik: O início do regulamento de quarentena na Europa.

No outro lado do Mar Adriático, em Ragusa (atual cidade de Dubrovnik, na Croácia), o Grande Conselho da cidade aprovou uma lei inovadora em 1377 para impedir a propagação da pandemia, exigindo que todos os navios de entrada e caravanas que chegassem de áreas infectadas se submetessem a 30 dias de isolamento.

A legislação, que em latim era: "Veniens de locis pestiferis non intret Ragusium vel districtum" (os que chegam de áreas infectadas por peste não devem entrar em Ragusa ou em seu distrito"), estipulava que quem vinha de lugares perigosos deveria passar um mês na cidade vizinha de Cavtat ou no ilha de Mrkan para desinfecção antes de entrar na cidade murada medieval.

"Dubrovnik implementou um método que não era apenas justo, mas também muito sábio e bem-sucedido, e prevaleceu em todo o mundo", escreve Milošević.

Isolamento e disciplina são as duas coisas importantes

A médica e coautora do livro, Ana Bakija-Konsuo, acrescentou que a diferença entre as duas cidades foi que Dubrovnik foi o primeiro porto do Mediterrâneo a isolar pessoas, animais e mercadorias provenientes de áreas infectadas por mar ou terra, mantendo-os separados da população saudável, enquanto Veneza parou todos os navios e comércio, interrompendo a vida na cidade.

A República Ragusana impôs punições e multas muito rígidas aos infratores que não seguissem a lei de quarentena de 30 dias [trentina, como o termo foi escrito em um documento encontrado nos arquivos de Dubrovnik de 27 de julho de 1377].

No início, a quarentena era de 30 dias, mas acabou sendo prolongada para 40 dias, como em Veneza.

Ninguém sabe exatamente por que o período de isolamento foi alterado de 30 para 40 dias: alguns sugerem que 30 dias foram considerados insuficientes para impedir a propagação da doença, pois o período exato de incubação era desconhecido; outros acreditam que a quarentena de 40 dias estava relacionada à observância cristã da Quaresma. Outros acreditam que os 40 dias são baseados em relatos bíblicos como o grande dilúvio, Moisés ficar no monte Sinai ou os 40 dias de Jesus no deserto. Veneza oficializou os 40 dias em 1448, quando o Senado veneziano acrescentou 10 dias à regra de quarentena de 30 dias para os navios que entravam em seu porto.

Em Lazaretto, em Dubrovnik, o governo de Dubrovnik chegou à idéia de quarentena como resultado de sua experiência em isolar as vítimas de hanseníase para evitar a propagação da doença, escreve Bakija-Konsuo.

Ao longo de sua história, Dubrovnik foi devastada por inúmeras doenças, com a hanseníase e a peste representando as maiores ameaças à saúde pública.

"A ciência histórica, sem dúvida, provou o pioneirismo de Dubrovnik na 'invenção' da quarentena", disse Bakija-Konsuo.

"O isolamento, como conceito, já havia sido aplicado antes de 1377, como mencionado no Estatuto da Cidade de Dubrovnik, escrito em 1272, e onde é a primeira menção ao isolamento dos pacientes com hanseníase. Este Estatuto está entre alguns dos mais antigos documentos legais por escrito da Croácia. "

Bakija-Konsuo explica que Lázaro foi declarado o santo padroeiros dos leprosos pela Igreja, porque, de acordo com a Bíblia, ele sofria de hanseníase. Dessa forma, os abrigos para os doentes foram nomeados em homenagem a ele e chamados de lazarettos.

Depois que Ragusa montou o primeiro hospital temporário de peste da Europa na ilha de Mljet, as instalações de quarentena em toda a Europa acabaram ficando conhecidas como "lazarettos".

Bakija-Konsuo disse que, seguindo a legislação de isolamento de Ragusa em 1377, a quarentena foi implementada pela primeira vez em Cavtat, uma pequena cidade localizada ao sudeste de Dubrovnik e nas ilhas próximas (Supetar, Mrkan e Bobara).

"Inicialmente, as acomodações de quarentena eram ruins, improvisadas, em cabanas, tendas e, às vezes, ao ar livre. O benefício das cabanas era que elas poderiam ser facilmente queimadas como medida de desinfecção ", diz ela.

Em 1397, foi tomada a decisão de estabelecer uma quarentena no mosteiro beneditino na ilha de Mljet. O lazaretto em Danče foi construído em 1430 e, posteriormente, um lazaretto maior e mais moderno foi construído na ilha de Lokrum.

Em 12 de fevereiro de 1590, o Senado de Dubrovnik decretou que o último lazaretto fosse construído em Ploče, a entrada leste da Cidade Velha. A construção do complexo de lazaretto foi concluída por volta de 1647; em 1724, o Senado a proclamou parte integrante das fortificações da cidade.

"O Lazaretto preservou sua função original muito depois da queda da República de Dubrovnik, mas não temos certeza sobre o ano em que foi abolido como instituição de saúde; de acordo com o Arquivo Nacional em Dubrovnik, foi por volta de 1872 ", disse Bakija-Konsuo.

"Este impressionante edifício de pedra representa não apenas um complexo arquitetônico único, mas também uma instituição que melhor descreve a rica herança médica da antiga Dubrovnik."

Os lazarettos de Dubrovnik, hoje atrações turísticas que abrigam eventos culturais como concertos e dança folclórica tradicional de Linđo (Lindjo), são um lembrete da luta da cidade no combate a doenças infecciosas séculos atrás.

Ivan Vuković Vuka, um guia turístico histórico em Dubrovnik, nascido e criado na cidade, lembra-se de ir ao lazarettos para festas e concertos ao ar livre nas noites quentes de verão, apenas para sentir alguma brisa.

Os lazarettos (localmente chamados de "Lazaret" ou "Lazareti") estão situados a aproximadamente 300 metros fora das muralhas de pedra da Cidade Velha.

"Dentro das muralhas da cidade, qualquer tipo de doença pode ser transmitida facilmente, por isso as instalações dos lazarettos são áreas muito amplas e espaçosas divididas em 10 edifícios de vários andares, para que haja sempre ar suficiente", diz ele, observando as vistas deslumbrantes do Velho Porto da cidade.

O complexo de Lazaretto consiste em 10 lazarettos, cinco pátios e duas guaritas. De acordo com a médica Vesna Miović, coautora de Lazaretto em Dubrovnik todos os viajantes que vieram de áreas suspeitas (infectadas) ficavam alojados acima dos pórticos, no chão, com uma estrutura de telhado e janelas gradeadas; e em casas no planalto de Lazaretto (também chamado "o lazaretto superior").

Os viajantes em quarentena podiam andar livremente pelo platô e até tinham pequenos terraços onde podiam respirar ar fresco, mas eram proibidos de se misturar com aqueles que já haviam sido libertados da quarentena ou com quem morasse fora do complexo de lazarettos.

Com a cidade atualmente em quarentena devido ao Covid-19, o turismo - a força vital da economia croata e uma das principais fontes de renda de Dubrovnik - parou.

Todos os navios de cruzeiro estão suspensos até junho e, em 19 de março de 2020, a Croácia implementou uma proibição temporária de trânsito através das passagens de fronteira para ajudar a impedir a propagação do vírus. "Por enquanto, todas as fronteiras estão fechadas — na Croácia, você nem pode se deslocar entre cidades", disse Vuković Vuka.

A American Airlines cancelou seus voos sem escalas da Filadélfia para Dubrovnik durante todo o ano de 2020; outras companhias aéreas europeias e internacionais suspenderam voos até junho.

Depois do excesso de turismo, agora existe a falta dele

"Nem durante a guerra dos anos 90 Dubrovnik não estava tão vazia", diz Vuković Vuka.

"Você pode ouvir o silêncio e até sons baixos ecoas no paralelepípedo."

Dubrovniki já sofreu com o excesso de turistas gerando superlotação e degradação de locais históricos, mas agora o problema é outro. A cidade está vazia, e nem mesmo os moradores podem ir às ruas.

Os croatas, como seus vizinhos mediterrâneos, são seres sociais que gostam de conversar e de tomar café nos cafés. "A covid deixa os croatas loucos, gostamos de nos abraçar e de beijar como italianos e espanhóis", diz Vuković Vuka. "Fazemos piadas de que na verdade o café é a reabilitação de quem vai muito para o bar."

Diferentemente da antiga lei de quarentena de Dubrovnik, hoje as pessoas têm a opção de se autoisolar no conforto de suas casas; no entanto, "[o] problema das pessoas em Dubrovnik é que elas também vivem em grandes comunidades com seus pais e avós; portanto, eles precisam tomar cuidado para não serem infectados por causa deles", disse Vuković Vuka.

Fora isso, pouco mudou nos últimos 600 anos em relação aos protocolos de quarentena, que Dubrovnik implementou várias vezes ao longo dos séculos e serve como um lembrete nos dias atuais: "Isolamento e disciplina são as duas coisas importantes" diz a médica.

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