Eleições no Peru: Como Pedro Castillo se inspirou em Evo Morales, Rafael Correa e outros líderes de esquerda da América Latina
O candidato, que pode se tornar muito em breve presidente do Peru, nega ter 'modelos' a seguir, mas alguns notam semelhanças entre suas propostas e aquelas de governos socialistas da região.
A surpreendente ascensão de Pedro Castillo como líder político no Peru levanta uma questão: com que personagem da heterogênea esquerda latino-americana ele se identifica?
A dúvida ganha relevância depois que, no segundo turno peruano, cuja apuração foi encerrada na terça-feira (15/06), Castillo venceu com 50,1% dos votos, contra 49,9% da candidata de direita Keiko Fujimori.
A definição oficial do vencedor pode, no entanto, levar ainda vários dias, enquanto é resolvido um pedido de Fujimori para revisar cerca de 300 mil votos e anular outros 200 mil em áreas onde Castillo teve maior apoio.
O professor rural de 51 anos, indicado por um partido que define a si mesmo como marxista-leninista, era praticamente um desconhecido na região até sua vitória no primeiro turno de abril, o que levou à busca de semelhanças com outros políticos de esquerda.
Alguns apontam que Castillo é influenciado pelo que fez Evo Morales quando governou a Bolívia entre 2006 e 2019, ou Rafael Correa quando governou o Equador de 2007 a 2017.
"Pedro Castillo pretende estabelecer uma economia popular com mercados, inspirada justamente no modelo da Bolívia e do Equador", escreveu o Prêmio Nobel de Literatura peruano, Mario Vargas Llosa em abril, argumentando que a democracia de seu país correria riscos com uma vitória do candidato.
Morales foi uma das primeiras personalidade políticas da região a apoiar Castillo, que ao final de sua campanha procurou se aproximar de outro líder talvez menos polêmico da esquerda latino-americana: o ex-presidente uruguaio José Mujica, que também o apoiou.
"Que bom estarmos sintonizados com a causa do povo", disse Castillo a Mujica durante uma reunião virtual que ambos tiveram dias antes do segundo turno.
A questão, então, é o que Castillo toma como inspiração desses e de outros líderes da esquerda regional.
"Redesenho do Estado"
Um dos motivos pelos quais Castillo foi comparado a Morales, Correa ou ao ex-presidente venezuelano Hugo Chávez é sua proposta de mudar a Constituição de seu país, como fizeram aqueles políticos ao promover seus projetos de "socialismo do século 21".
Mujica, por outro lado, evitou modificar a Constituição do Uruguai enquanto governou entre 2010 e 2015.
O partido pelo qual Castillo foi candidato, o Peru Libre (Peru Livre, em português), "tem posições de esquerda mais radicais, mais associadas a Evo (Morales) do que a Mujica no Uruguai", diz Farid Kahhat, especialista peruano em relações internacionais, à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.
Um plano do governo Castillo apresentado antes do segundo turno afirma que "a Constituição atual prioriza os interesses privados sobre os interesses públicos, o lucro sobre a vida e a dignidade".
O objetivo declarado é convocar, por meio de referendo, "uma Assembleia Constituinte para redigir uma nova Constituição" que reconheça expressamente os direitos à saúde, alimentação e moradia, entre outros.
Prevê ainda um "redesenho do Estado que garanta transparência na tomada de decisões, com a participação ativa dos cidadãos" e "a prática do planejamento estratégico, regulação e investimento".
"O investimento privado é bem-vindo, mas com regras claras. Não explorem nossos trabalhadores", disse Castillo durante o último debate da campanha à presidência.
Ainda não se sabe como ele fará isso.
Muitos, porém, lembram que o programa de governo apresentado pelo Peru Libre para a campanha afirma que o Estado deve ser "nacionalizador" e tem a missão de revisar, renegociar ou cancelar contratos com empresas multinacionais.
Propõe ainda que 80% dos lucros gerados fiquem para o Estado e o restante para as empresas.
Castillo propôs renegociar contratos com companhias de mineração, setor que representa quase 60% das exportações do Peru, e eventualmente nacionalizar diversos minerais e o gás natural.
Tudo isso também evoca o que fizeram Correa no Equador e Morales na Bolívia, ao redesenhar o Estado, conferindo-lhe um papel mais regulador da economia, renegociando contratos com petroleiras estrangeiras e ordenando nacionalizações no setor de hidrocarbonetos.
"Nada de chavismo"
Uma diferença entre Correa e Morales é que o último, um ex-sindicalista cocaleiro, contou com um nível de mobilização social maior do que o economista equatoriano para ser eleito o primeiro presidente indígena da Bolívia.
Nesse sentido, alguns veem mais semelhanças entre Morales e Castillo, um líder do movimento de professores no Peru e um ex-rondero (membro das rondas camponesas, organizações comunitárias de defesa), eleito em grande medida pelo voto rural.
"Castillo é mais parecido com Evo, ele tem algum nível de mobilização social por trás dele", compara Kahhat. "Há também um componente étnico por trás de seu apelo, embora nem sempre isso seja explicitado."
O próprio Morales tuitou em abril que Castillo tem "um programa semelhante" ao que ele promoveu na Bolívia, com uma "revolução democrática e cultural pacífica, defendendo os recursos naturais e promovendo uma Assembleia Constituinte, em benefício do povo, para que haja justiça social".
Outros, no entanto, alertaram os peruanos que Morales buscou ser reeleito além do prazo estabelecido pela Constituição que ele mesmo promoveu na Bolívia.
"Não se esqueçam que quem tem o lápis para redigir a Constituição depois se considera o dono e único intérprete dela, e a viola", disse o ex-presidente boliviano Jorge Quiroga à rede peruana RPP Noticias, antes da votação.
Em sua campanha, Castillo evitou comentar as reeleições de Morales, negou ter "modelos" de governo e prometeu deixar o poder após o término de seu mandato em julho de 2026, sem buscar a reeleição.
O então candidato peruano se comprometeu a respeitar a democracia e os direitos humanos, em resposta aos temores de que poderia seguir o caminho de outros líderes de esquerda da região, acusados de desvios autoritários.
Em particular, procurou se diferenciar do governo socialista da Venezuela. "Nada de chavismo", disse ele. E pediu ao presidente daquele país, Nicolás Maduro, que "resolvesse seus problemas internos" antes de se referir ao Peru.
No entanto, Mujica achou apropriado dar alguns conselhos a Castillo durante a conversa que os dois tiveram ao vivo pelo Facebook há alguns dias.
"Não caia no autoritarismo, aposte no coração de seu povo permanentemente. E quando se enganar, tenha a honestidade de dizer: eu errei", disse o ex-presidente uruguaio, após advertir que "não é fácil mudar o curso da realidade em favor dos mais fracos".
Enquanto foi presidente do Uruguai, Mujica legalizou o aborto, o casamento gay e a maconha, opções contestadas por Castillo, que se define como católico e é casado com uma evangélica.
Depois das eleições, o homem que fez campanha usando chapéu de palha de aba larga e montado a cavalo prometeu respeitar a democracia e a Constituição vigente, bem como a estabilidade econômica e financeira.
Alguns de seus assessores descartaram medidas intervencionistas, como controle de preços ou de importações, e sugeriram que, em vez de nacionalizações, os impostos sobre as mineradoras poderiam ser renegociados.
Há quem faça distinção entre Castillo e o partido que o elegeou, cujo líder, Vladimir Cerrón, é um médico de esquerda radical que estudou em Cuba, manifestou afinidade com o governo venezuelano e foi desqualificado nas eleições devido a uma condenação por corrupção quando foi governador da região de Junín.
"O partido tem tendências autoritárias. Castillo não é militante do partido e nem mesmo é marxista-leninista", diz Kahhat. "Mas ele mesmo fez algumas declarações que também representam um risco de regressão autoritária."
Ele lembra, por exemplo, que Castillo mencionou na campanha a possibilidade de dissolver o Tribunal Constitucional para eleger um novo por mandato popular, outra ideia que alguns consideraram inspirada na Bolívia de Evo Morales.
"Mais tarde, no segundo turno, ele mudou de discurso", diz Kahhat, "mas a questão hoje é em qual Pedro Castillo se deve acreditar."