Eleições nos EUA: O quão diferente seria um segundo mandato de Trump (e por que essa perspectiva assusta tanto seus críticos)
A possibilidade de que o presidente americano se reeleja gera alertas sobre riscos à democracia do país, mas esses temores são justificados?
Os críticos do presidente Donald Trump alertaram por meses que na eleição desta terça-feira (2/11) nos EUA há algo especial em jogo: a própria república.
São falas que talvez já tenhamos ouvido sobre eleições de outros países, mas que são incomuns para os EUA, a nação mais poderosa do mundo.
O candidato presidencial do Partido Democrata, Joe Biden, disse em diferentes ocasiões que a votação põe em jogo a democracia ou a personalidade do país.
"Esta é a eleição mais importante em muito, muito tempo", disse Biden neste mês.
Alguns dirão que essas mensagens devem ser encaradas com precaução, pois foram feitas pelo rival direto do presidente.
Então vejamos o que disse o falcão veterano republicano John Bolton, a pessoa que serviu por mais tempo como assessor de segurança nacional de Trump, ao afirmar que seu ex-chefe representa "um perigo para a república".
"Espero que (a história) se lembre dele como um presidente de um mandato que não jogou o país de maneira irremediável numa espiral descendente sem precedentes. Podemos superar um mandato", disse Bolton em junho à TV ABC News. "Dois mandatos me preocupam mais."
A questão, portanto, é o quão diferentes seriam outros quatro anos de governo Trump e por que a possibilidade de sua reeleição preocupa muitos.
Que agenda?
O presidente evitou apresentar um plano concreto de governo para um segundo mandato.
Isso não só vai na contramão do que costuma ocorrer em campanhas eleitorais nos EUA, mas também chama a atenção em um país que enfrenta uma pandemia de coronavírus que já matou mais de 228 mil pessoas e causou seu pior colapso econômico em décadas.
O que Trump pretende é conseguir uma vacina para frear o avanço descontrolado da covid-19 no país e retomar o caminho de crescimento anterior à crise, quando o desemprego atingiu a mínima histórica.
"Temos de fazer com que nosso país seja totalmente bem sucedido, como era antes da chegada da praga da China", disse o mandatário em seu último debate com Biden neste mês. "O sucesso nos unirá; estamos a caminho do sucesso."
Trump também advertiu que um triunfo de Biden seria demolidor para os EUA porque ele estrangularia a economia com regulações e impostos de "esquerda radical", e lançou fortes ataques contra seus críticos (sobre Bolton, disse que é um "idiota" e que "tudo que queria fazer era jogar bombas contra todos").
Mas a falta de propostas novas por parte de Trump contrasta inclusive com sua campanha de 2016, quando ele entrou na política como um empresário e apresentador de TV com promessas concretas e polêmicas, como renegociar o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês) ou retirar os EUA do acordo climático de Paris, ações que de fato realizou, ou construir um muro ao longo de toda a fronteira com o México, o que não cumpriu.
O que parece claro é que esta eleição nos EUA, mais do que uma disputa entre dois programas, se tornou uma votação a favor ou contra o presidente e seu estilo de governar.
E isso é o que aflige muitos: a ideia de que Trump, se reeleito, se sinta legitimado a dar vazão a seus impulsos por não ter de se submeter às urnas outra vez (pois só é permitida uma reeleição).
"A preocupação que tenho, falando como um republicano conservador, é que assim que as eleições terminarem, se o presidente ganhar, desaparecerá a contenção política", disse Bolton. "E como ele não tem uma base filosófica, não se sabe o que ocorrerá num segundo mandato."
Julian Zelizer, um historiador da Universidade de Princeton que pesquisa a Presidência dos EUA, afirma que no país "não há muita evidência de que presidentes fazem o que querem" em seus segundos mandatos, e houve vários que trabalharam mais perto do Congresso e da oposição.
Mas seria esse o caso de Trump?
Zelizer não está seguro e observa que o presidente mostrou pouca disposição em adaptar sua agenda para alcançar acordos amplos.
"Acho que a grande diferença seria realmente sua falta de vontade para mudar de rumo como fizeram outros presidentes, e que ele só reforçaria o que seria um período bastante disfuncional de quatro anos, sem muito avanço na legislação", disse Zelizer à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Quais os limites?
Embora as pesquisas mostrem uma vantagem de Biden a nível nacional, a eleição será definida em vários Estados "pêndulos", e a simples perspectiva de uma repetição do governo Trump é um pesadelo para parte dos EUA.
A oposição democrata foca sua campanha na resposta do mandatário à crise do coronavírus, e suas repetidas tentativas de relativizar a gravidade da pandemia, contradizer especialistas ou sugerir soluções sem base científica.
Mas ao presidente são atribuídas várias outras coisas, como avivar tensões políticas e raciais, cercar-se de assessores que acabaram processados por diferentes delitos, ou promover investigações contra seus rivais políticos.
Também foi criticado, inclusive por militares, por ter ido tirar uma foto em uma igreja próxima à Casa Branca após a polícia dispersar à força um protesto pacífico na região.
E diferentes ativistas se inquietam com a possibilidade de que um novo governo Trump acentue a desregulamentação ambiental e políticas migratórias como a separação de famílias imigrantes na fronteira com o México ou as restrições a quem busca refúgio nos EUA.
"Os sinais claros do presidente Trump nesta campanha por um segundo mandato deixam ver que ele não só vai seguir impondo políticas para reduzir os direitos", disse Erika Guevara-Rosas, diretora para América da Anistia Internacional.
"Além disso, ele busca transformar totalmente o aparato legal e de política pública sobre temas de migração e refúgio nos EUA", adiciona. "Isso é extremamente preocupante."
Por outro lado, Trump encontrou durante seu primeiro mandato limites impostos pelo equilíbrio de poderes nos EUA.
A Suprema Corte de Justiça tomou decisões recentes contrárias à vontade do presidente em temas como imigração ou o acesso de investigadores a suas declarações de impostos.
E o Congresso submeteu Trump a um processo de impeachment por abuso de poder e outros delitos, dos quais foi absolvido em fevereiro pela maioria republicana que controla o Senado.
Mas Trump já nomeou três juízes da Suprema Corte e muitos temem que, se reeleito, a nova supermaioria conservadora do tribunal seja mais sintonizada com a agenda do presidente.
Outros preveem que o risco de um conflito institucional aumentaria em um segundo mandato de Trump se o Congresso for controlado totalmente pela oposição democrata.
Eric Posner, professor de Direito na Universidade de Chicago, afirma que "há boas razões para se preocupar com um segundo mandato de Trump" e menciona a degradação da independência política que costumavam ter órgãos do governo como os departamentos de Justiça e Segurança Interna, ou o Serviço Exterior dos EUA.
Mas esse acadêmico, autor do livro "O manual do demagogo: a batalha pela democracia americana desde os fundadores até Trump", diz também que o presidente nunca se recusou a obedecer ordens judiciais nem buscou obter poderes extras do Congresso, diferentemente do que fez o lider ultranacionalista húngaro Viktor Orbán durante a pandemia.
"Sou cético de que ele vá criar uma ditadura. Não creio que Trump tenha tanto poder, que tenha apoio popular suficiente ou que as outras instituições do governo cedam ante uma destruição real da democracia", disse Posner à BBC Mundo.
"Trump tem muito mais interesse em si mesmo, fome de poder e uma certa ignorância sobre nossas tradições constitucionais do que presidentes anteriores", observa. "Mas ainda penso que ele será contido por nossas instituições."
No entanto, apenas a possibilidade de que Trump volte a colocar essas instituições à prova já causa calafrios nos críticos do presidente.