Eleições nos EUA: Trump tenta última manobra, mas Biden deve ser confirmado hoje presidente no Congresso
Estratégia tem chance praticamente zero de funcionar, mas pode levar a danos de longo prazo para a democracia, apontam os próprios colegas de partido de Trump.
Dois meses após a derrota nas eleições presidenciais de 2020, o republicano Donald Trump tentará nesta quarta (6/1), seu último lance para impedir que o democrata Joe Biden ocupe a Casa Branca a partir de 20 de janeiro. Ele tenta convencer a maioria do Congresso a se recusar a certificar ao menos parte dos 306 votos obtidos pelo democrata no Colégio Eleitoral, contra 232 conquistados por Trump.
E diante da baixa chance de conseguir maioria entre os parlamentares, tenta persuadir o vice-presidente, Mike Pence, que presidirá a sessão no Congresso - e é o responsável por anunciar o vencedor - a buscar subterfúgios para não declarar a vitória de Biden.
Nos Estados Unidos, a eleição presidencial é indireta. Por isso, em novembro de 2020, os eleitores indicaram em quem os delegados de cada um dos 50 Estados deveria votar no Colégio Eleitoral, que se reuniu em dezembro. Tanto no voto popular quanto no Colégio Eleitoral, Biden venceu.
De acordo com a Constituição do país, cabe ao Congresso contar oficialmente esses votos e ratificar o resultado. Na história moderna dos EUA, nunca o veredicto das urnas foi alterado pelos parlamentares. Mas Trump, que afirmou na Geórgia essa semana que não reconhece a derrota e tem repetido falsas alegações de fraude eleitoral, pretende ser o primeiro a conseguir isso. As chances dele, no entanto, são praticamente nulas.
O que Trump fará?
A estratégia do republicano se desenrola em dois atos: a pressão por um lado sobre os parlamentares e, por outro, sobre o vice-presidente Mike Pence.
Embora a contagem dos votos pelo Congresso seja historicamente um rito protocolar, a lei americana permite que um deputado e um senador, em conjunto, apresentem um desafio aos votos do Colégio Eleitoral de um ou mais Estados e forcem tanto a Câmara quanto o Senado a confirmar a legitimidade dos votos.
Na semana passada, o senador republicano pelo Missouri Josh Hawley afirmou que levaria adiante a empreitada ao lado de seu colega de partido, o deputado Mo Brooks, que anunciara a intenção de questionar o resultado há mais de um mês.
A notícia agitou os republicanos. Em um gesto incomum, Trump abandonou sua casa de veraneio em Mar-a-Lago, na Flórida, ainda no dia 31 de dezembro, e voltou para Washington D.C. para tentar costurar a estratégia com o máximo de parlamentares. O republicano aposta na ideia como um último recurso, depois de perder mais de 50 ações judiciais nas quais contestava a eleição em tribunais de oito Estados e na Suprema Corte.
Nos últimos dias, ao menos outros 12 senadores indicaram que se somariam à objeção, inclusive o senador pelo Texas Ted Cruz, que assim como Hawley tenta firmar seu nome como pré-candidato republicano à Presidência em 2024.
Cruz e os demais afirmaram tomar essas medidas diante de "alegações sem precedentes de fraude nos votos", sem no entanto apresentar provas dessa fraude. Ainda não está claro qual será o alvo de questionamento dos republicanos, mas Trump tem tentado subverter os resultados em seis Estados principais nos quais perdeu: Pensilvânia, Arizona, Nevada, Wisconsin, Michigan e Geórgia.
"Não somos ingênuos. Esperamos que a maioria, senão todos os democratas, e talvez vários republicanos, votem de outra forma. Mas o apoio à integridade eleitoral não deve ser uma questão partidária", justificaram-se os senadores liderados por Cruz em um comunicado conjunto.
Entre os que não apoiam explicitamente a medida de Cruz e Trump está o senador Mitch McConnell, líder dos republicanos no Senado e segunda figura mais poderosa do partido. McConnell demonstrou, nos bastidores, insatisfação com o movimento, reconheceu a vitória de Biden após os votos no Colégio Eleitoral em dezembro e tentou, sem sucesso, dissuadir os membros de sua bancada de lançar objeções.
Para ele, a estratégia de Trump encurrala os republicanos entre demonstrar lealdade ao popular presidente derrotado - que recebeu mais de 74 milhões de votos em novembro - ou proteger as bases centenárias da democracia americana. Como resultado, isso racharia o partido e o enfraqueceria para as eleições legislativas de 2022 e a presidencial de 2024.
Outros republicanos entusiastas de Trump até recentemente já se recusaram publicamente a embarcar na empreitada com ele no Congresso agora. Um dos mais notórios, o senador pelo Arkansas Tom Cotton afirmou que se alinhar à tentativa de mudar o resultado das urnas via Parlamento "basicamente encerraria as eleições (populares) presidenciais e colocaria esse poder nas mãos de qualquer partido que controle o Congresso".
O papel de Mike Pence
E se o primeiro ato é arregimentar apoiadores entre os parlamentares, o segundo foco de ação de Trump nos últimos dias está em seu vice-presidente, o republicano Mike Pence.
Pela Constituição, cabe ao vice-presidente da República conduzir a sessão conjunta entre Senado e Câmara. Logo, é Pence quem deverá ler os votos do Colégio Eleitoral, em ordem alfabética por Estado, e ao final, contabilizadas as cédulas, declarar o nome do vencedor. Trata-se de um papel cerimonial, mas sem protagonismo decisório, de acordo com a lei.
O que aconteceu em 2017 mostra bem isso. Depois da vitória de Trump sobre Hillary Clinton, alguns deputados democratas tentaram levantar objeção ao republicano, mas não contaram com o apoio de senadores do partido. O presidente da sessão, Joe Biden, então vice de Barack Obama, não permitiu que a tribuna se convertesse em palanque de democratas ressentidos pela derrota. Deu sucessivas marteladas na mesa para evitar discursos e repetia "está acabado". Encerrou a sessão em apenas 35 minutos.
Agora, quando Joe Biden deve ser confirmado presidente, Trump espera que Pence se comporte de modo muito diferente do que o próprio Biden há quatro anos.
Nesta terça-feira, em sua conta de Twitter, o presidente postou: "O vice-presidente tem o poder de rejeitar deputados escolhidos de forma fraudulenta", em uma referência aos votos do Colégio Eleitoral.
Não está claro de que modo Trump e seus aliados esperam que Pence se recuse a seguir o protocolo e formalizar a vitória de Biden. A lei, no entanto, não garante poder unilateral a Pence de derrubar o resultado eleitoral cravado no Colégio Eleitoral.
Pence está sob intensa pressão. Nos últimos dias, ele tem passado por sucessivas reuniões com o presidente e seus advogados na Casa Branca. Na última segunda, dia 4/1, em comício na Geórgia, Trump foi explícito sobre sua tentativa de persuadir o vice.
"Espero que Pence faça o que é preciso por nós. É claro que se ele não fizer, não gosto dele tanto assim", afirmou o presidente a seus apoiadores, logo depois de fazer elogios ao vice. Em eventos públicos que tem feito, Pence tem sido sucessivamente pressionado por eleitores a "encerrar a roubalheira", como eles dizem, ecoando falsas alegações de Trump.
Em nota divulgada na noite desta terça (5/1), Trump afirmou que a eleição presidencial foi ilegal e que Pence tem "diversas opções previstas na Constituição" para agir em relação ao resultado das urnas. "Ele pode 'decertificar' os resultados ou enviá-los de volta para os Estados para modificá-los e certificá-los. Ele também pode 'decertificar' os resultados ilegais e corruptos e enviá-los para a Câmara dos Representantes para um voto por bancada estadual (modelo de votação em que Trump teria maioria)."
Em seus pronunciamentos públicos, Pence tem sido evasivo sobre o que fará nesta quarta-feira. Essa semana, na Geórgia, em resposta a eleitores, ele afirmou: "Eu sei que todos nós temos nossas dúvidas sobre a última eleição. Quero assegurar a vocês que compartilho das preocupações de milhões de americanos sobre irregularidades na votação. Eu prometo que, na quarta-feira que vem, teremos nosso dia no Congresso", afirmou.
Trump tem alguma chance de reverter a eleição?
Todos as desavenças entre senadores republicanos e a tensão em relação a Pence, no entanto, têm praticamente chance nula de produzir algum resultado prático.
Mesmo se todos os republicanos votassem a favor da objeção, para deslegitimar a vitória de Biden, o democrata ainda assim seria reconhecido como o vencedor. Isso porque esse tipo de manobra precisaria de maioria tanto na Câmara quanto no Senado para ser aprovada. Enquanto os republicanos têm maioria no Senado, os democratas controlam a Câmara e não apoiarão uma medida para barrar o presidente eleito de seu partido. E mesmo entre os republicanos, não há posição unânime sobre a objeção.
Ainda assim, a manobra não é inócua. O resultado pode ser um enfraquecimento da confiança dos cidadãos nas instituições nos EUA. As estimativas indicam que cerca de 180 parlamentares republicanos podem apoiar a tese de ilegitimidade de Biden e ecoar o sentimento existente em cerca de 1⁄3 dos eleitores americanos de que a eleição não foi justa, conforme levantou uma pesquisa publicada em meados de dezembro pelo Intituto YouGov e pela rede CBS News.
O cientista político Ian Bremmer, diretor da consultoria Eurasia Group, afirma que essa retroalimentação pode ser o pior dos efeitos da manobra política no Congresso. "(Há) Impacto zero no resultado da eleição. Mas ajuda a garantir que os apoiadores de Trump continuem a acreditar que a eleição foi roubada. Um péssimo resultado para o país", escreveu Bremmer no Twitter.
Ele nota ainda que nenhum dos senadores reeleitos nas mesmas cédulas de voto que alegam agora ter sido manipuladas questionou os votos que conduziram eles próprios ao Congresso.
Coube a um deputado republicano apontar publicamente essa contradição de seus correligionários. No último domingo, o deputado republicano Chip Roy, do Texas, se opôs à posse de 67 deputados eleitos nos seis Estados em que Trump contesta o resultado. Ele, que já se posicionou publicamente contra a objeção a Biden pelos colegas, justificou seu ato simbólico dizendo que "seria confundir a razão humana básica se os resultados presidenciais enfrentassem objeções enquanto os resultados do mesmo processo para o Congresso escapassem sem o escrutínio público".
Entre parte dos republicanos, têm se espalhado a percepção de que as ações de Trump podem atentar contra o sistema democrático e até mesmo contra as premissas do partido. O senador Jerry Moran, do Kansas, afirmou que recusaria a objeção: "(Por ser) um republicano conservador devo seguir estritamente a Constituição dos EUA".
Mas o primeiro senador republicano a denunciar publicamente os riscos da empreitada, Ben Sasse, de Nebraska, acusou os colegas de tentarem obter ganho pessoal ao surfar na popularidade do presidente derrotado e lançar mão de uma medida populista que, segundo ele, trará "danos de longo prazo" ao país. "Adultos não apontam uma arma carregada para o coração de um governo legítimo", criticou Sasse.