Entenda a polêmica sobre a política que separava famílias de imigrantes ilegais nos EUA
O presidente Donald Trump anunciou o fim da separação de crianças e pais que entraram ilegalmente nos EUA, mas ainda não está claro o que acontecerá com as que já estão em abrigos.
A declaração do presidente Donald Trump na quarta-feira passada de que as crianças que entram ilegalmente nos Estados Unidos não serão mais separadas de seus pais não dissipou a polêmica e as discussões em torno da postura do governo americano em relação aos imigrantes.
O anúncio do fim da política de separação foi feito depois de relatos, reportagens, imagens e áudios mostrando o sofrimento de crianças pequenas separadas de suas famílias provocarem uma onda de críticas a Trump - vindas até de membros de seu próprio partido. Ele assinou um decreto dizendo que, a partir de agora, as famílias de imigrantes ilegais serão mantidas juntas.
O que manteve o debate acalorado é que não ficou claro até agora como e onde será essa detenção nem se a nova regra vale também para as milhares de crianças que já estão sozinhas em abrigos.
O governo dos EUA separou mais de 2,3 mil crianças de suas famílias entre o fim de abril e o início de maio, segundo o Departamento de Segurança Nacional americano. O número de famílias que foram divididas em junho ainda não foi divulgado. Há pelo menos 49 crianças brasileiras entre elas, segundo o Ministério de Relações Exteriores.
Antes de Trump anunciar a mudança na postura, suas declarações de que a separação seria resultado de uma lei herdada do governo democrata colocaram ainda mais fogo no debate e motivaram a propagação de notícias falsas.
Entenda a origem da polêmica, o porquê da separação das famílias e o que acontecerá com as crianças.
Onde vão ficar as famílias e crianças apreendidas a partir de agora?
O anúncio de Trump sobre o fim da separação não foi acompanhado de uma explicação sobre como será a logística dessa mudança. Se o governo tem um plano para implementar a nova política, ele ainda não foi divulgado.
Reportagens de jornais como o Washington Post e o New York Times dizem que há confusão na fronteira pois os agentes federais estão tendo dificuldades em cumprir a ordem de manter as famílias unidas.
O que se sabe é que o Departamento de Defesa está preparando quatro bases militares no sul do país para abrigar até 20 mil crianças - a informação foi passada à imprensa americana na última quinta-feira por um porta-voz do próprio Pentágono.
No entanto, não foi explicado se o espaço vai abrigar também as famílias. O tenente-coronel Michael Andrews, do Pentágono, disse que as bases são para manter "crianças estrangeiras desacompanhadas", mas a ordem do presidente para o Departamento de Defesa foi de providenciar "espaços disponíveis para abrigar e cuidar das famílias estrangeiras", segundo o jornal The New York Times.
A Casa Branca, o Departamento de Defesa e o Departamento de Saúde e Serviço Social disseram na quinta-feira que não podiam dar mais detalhes sobre as bases ou sobre como serão abrigados os imigrantes.
Mas, de acordo com a revista Time, a marinha americana estaria planejando a construção de centros de detenção de imigrantes em bases militares. O rascunho de um memorando obtido pela revista descreve planos de construir acampamentos "austeros" que poderiam abrigar até 25 mil pessoas.
Eles seriam construídos em aeródromos abandonados na Califórnia, no Alabama e no Arizona. Outro acampamento, para até 47 mil pessoas, seria construído próximo a San Francisco.
O memorando da Marinha estima que seriam gastos US$ 233 milhões (R$ 877 milhões) para manter um acampamento para 25 mil pessoas por seis meses.
Um porta-voz do Pentágono disse que o Departamento de Segurança Interna não chegou a pedir que as forças armadas fizessem estes planos especificamente, mas que estão fazendo "um planejamento prudente... caso o Departamento peça ajuda para abrigar imigrantes adultos ilegais".
E o que acontece com as crianças já separadas de suas famílias?
Também não ficou claro quais serão os próximos passos do governo em relação às mais de 2,3 mil crianças que estão em abrigo. Um porta-voz do Departamento de Saúde e Serviço Social, Ken Wolfe, disse na quarta que o governo não iria reunir as crianças e suas famílias imediatamente.
Mais tarde no mesmo dia, o chefe de comunicações do departamento, Brian Marriott, emitiu uma declaração dizendo o contrário: que o departamento estava trabalhando para reunir os meninos e meninas com suas famílias.
Nenhum órgão do governo esclareceu melhor a questão até o momento, e as crianças nos abrigos não estão, por enquanto, sendo reunidas com os pais.
Porque elas estavam sendo separadas das famílias?
A separação é consequência da política de "tolerância zero" anunciada pelo governo Trump através de um memorando enviado no dia 6 de abril para promotores federais.
Desde então o governo Trump passou a processar criminalmente o maior número possível de imigrantes ilegais, mesmo aqueles cuja única ilegalidade é entrar sem autorização no país.
Como as crianças não podem ir para a prisão com os pais, detidos preventivamente por causa do processo criminal, elas estavam sendo separadas das famílias. Depois de um curto período nos centros de detenção do Departamento de Segurança Nacional, elas eram encaminhadas para o Escritório de Reassentamento de Refugiados, que faz parte do Departamento de Saúde e Serviço Social.
Diferentemente de seus pais, na maioria dos casos elas não eram deportadas: ficavam nesses abrigos até o governo encontrar um "padrinho" para elas nos EUA - de preferência um membro próximo da família que já estivesse no país, segundo o Serviço Social.
Se ninguém fosse encontrado, elas ficavam mais tempo no abrigo até que o departamento encontresse um "padrinho" adequado.
Para que elas voltassem para seu país original, seria necessário que alguém da família no país natal entrasse com um pedido na Justiça americana e provasse que tinha condições de cuidar da criança.
Agora não se sabe se as mais de 2,3 mil crianças nos abrigos vão passar por esse processo normalmente ou se será criado um novo procedimento para reuni-las com os parentes que estão presos.
A separação das famílias foi uma lei do governo Obama, como afirma Trump?
Antes de anunciar o fim da separação, Donald Trump tinha dito diversas vezes que sua administração foi "forçada a separar as crianças por causa de leis herdadas do governo Obama".
"Eu odeio que as crianças estejam sendo levadas (para longe de suas famílias). Os democratas tem que mudar a lei deles. É a lei deles", disse o presidente em uma das ocasiões em que fez essa afirmação, em 15 de junho.
No entanto, embora a legislação usada por Trump para deportar as pessoas já existisse antes de seu governo, a separação de famílias não estava prevista em nenhuma lei: ela foi resultado da política de tolência zero, uma decisão administrativa.
Tanto que, no início do governo Trump, que assumiu a Presidência em janeiro de 2017, não havia tantos casos de separação de famílias. Até abril de 2018, a maior parte dos imigrantes que entravam ilegalmente nos EUA, mas que não tinha histórico criminal, era processada nos tribunais de imigração da justiça civil - em que os envolvidos aguardam em liberdade.
O isolamento das crianças só começou a acontecer massivamente com o aumento dos processos criminais em abril.
Antar Davidson, ex-funcionário de um dos centros para imigrantes, disse à BBC News que o abrigo em que ele trabalhava costumava ter cerca de cinco crianças por vez. Com a nova política, o número subiu para 70, diz ele. "(Antes as) crianças eram instruídas que a separação era provisória, e chegavam lá mais calmas e preparadas."
"Notamos um aumento de crianças que não estavam preparadas para isso, que não tinham deixado suas casas sozinhas e que haviam sido separadas dos pais na fronteira e não tinham a menor ideia de onde estavam", afirmou. Davidson pediu demissão após se recusar a traduzir uma ordem para que três crianças brasileiras, desesperadas, não se abraçassem.
Quando o presidente anunciou neste semana que irá acabar com a política, ele o fez por um ato administrativo - se houvesse uma lei obrigando-o a separar as famílias, ele teria tido necessidade de mudar a legislação com aprovação do Congresso.
O que diz a legislação?
A principal lei usada por Trump para fazer as deportações é a mais ampla regulando a imigração nos Estados Unidos: o Ato de Imigração e Nacionalidade de 1952 - criado e aprovado em 1952 por um Congresso de maioria democrata.
Ele afirma que uma pessoa que entra nos EUA ilegalmente está cometendo um ato infracionário, um crime mais leve, que pode ser processado em um tribunal criminal ou civil. Uma condenação resulta em deportação. Mas não há nada nesta lei - e em nenhuma outra - que afirme que o governo tem que separar as famílias.
O ato está em vigor há mais de 60 anos, mas a escolha de iniciar ou não um processo criminal contra os imigrantes pelo ato infracionário de entrar ilegalmente no país depende de cada governo.
O que acontecia no governo Obama?
Embora tenha havido um recorde de deportações durante o governo Obama - mais de 3 milhões de pessoas foram deportadas entre 2009 e 2016, de acordo com dados do Departamento de Segurança Nacional - a sua administração priorizava processos criminais contra membros de gangues, pessoas que representavam risco para a segurança nacional ou que já haviam cometido outros crimes anteriormente.
Segundo dados do governo na época, cerca 55% dos deportados no ano fiscal de 2011, por exemplo, haviam sido condenados por crimes como homicídio, estupro, tráfico ou posse de drogas, dirigir sob influência de álcool, etc.
Imigrantes ilegais sem esse tipo de histórico normalmente respondiam a processos civis, em que não há prisão, e as famílias ficavam juntas enquanto aguardavam a decisão de um tribunal de imigração sobre se poderiam ou não ficar no país. A política de Barack Obama de dar prioridade à deportação de criminosos condenados chegou a ser criticada por alguns republicanos, por, segundo eles, indicar uma maior tolerância a imigrantes ilegais que não cometeram crimes.
A polarização em torno da questão acabou motivando a propagação de uma série de notícias falsas.
Uma foto de 2014 de crianças imigrantes sozinhas sob custódia do Departamento de Proteção de Fronteira tem sido compartilhada com a afirmação de que elas foram separadas dos pais pelo governo de Obama.
A foto é real, mas a legenda é falsa: a imagem mostra crianças que já chegaram ao país sozinhas, segundo informações divulgadas na época pelo Departamento de Proteção de Fronteira. Não houve separação sistemática de crianças de seus pais durante o governo Obama - apenas casos esparsos em que havia desconfiança de tráfico infantil ou suspeita de que a criança não estava com sua família de verdade.
Do outro lado, críticos de Trump compartilharam outra imagem de crianças que chegaram desacompanhadas dizendo que eram crianças separadas da família este ano. A foto, no entanto, foi feita em 2014. Outro caso de imagem real e legenda falsa.
E as crianças brasileiras?
Entre as mais de 2 mil crianças que estão em abrigos americanos, há 49 crianças brasileiras, distribuídas em 15 locais diferentes.
O Itamaraty já havia condenado a separação das famílias: pouco antes do anúncio de Trump de que iria mudar a política, na quarta passada, o Ministério das Relações Exteriores divulgou uma nota dizendo que a política é "uma prática cruel e em clara dissonância com instrumentos internacionais de proteção aos direitos da criança".
Os consulados do Brasil nos EUA estão visitando os abrigos em que estão as crianças brasileiras para verificar suas condições e o Itamaraty está mantendo contato com as famílias.
O Ministério das Relações Exteriores também diz que está tomando medidas para garantir a segurança das crianças e trabalhando para a recuperação da guarda e reunificação familiar.
Mas, depois do anúncio Trump de que a política vai mudar, o destino dos pequenos brasileiros é tão incerto quanto o das crianças de outras nacionalidades.
É possível que sejam encaminhados para o processo anterior de tentar reuni-las com algum membro da família nos EUA. É igualmente possível que sejam reunidas com os pais que estão respondendo criminalmente por entrar sem autorização nos EUA e depois deportadas junto com eles.
O assunto deve ser tema da reunião do presidente Michel Temer com vice-presidente americano Mike Pence na semana que vem, em Brasília.