Equador: o que muda no país com declaração de 'conflito armado interno'
Especialistas consultados pela BBC debatem se explosão de violência recente no país é suficiente para configurar a situação declarada pelo presidente Noboa
O Equador está em choque desde que um grupo de homens armados e encapuzados invadiu os estúdios da rede TC Televisión em Guayaquil e fez jornalistas e outros funcionários como reféns, na terça-feira (9/1).
As imagens correram o mundo.
Enquanto um jovem fazia uma transmissão ao vivo apontando uma espingarda para o jornalista José Luis Calderón, a cerca de 3 quilômetros de distância, na sede da Universidade de Guayaquil, outro grupo ameaçava com a mesma violência professores e estudantes, que imploravam que a polícia abandonasse o local.
Fora de ambos os locais o caos reinou. Outros grupos armados incendiaram carros enquanto os cidadãos tentavam fugir.
A resposta do Executivo foi imediata.
O presidente do Equador, Daniel Noboa, ordenou às forças militares que restabelecessem a ordem e declarou a existência de um "conflito armado interno" no país.
Na segunda-feira, o presidente havia declarado estado de emergência após graves incidentes ocorridos em seis prisões do país, com sequestros policiais e fugas de líderes de duas grandes facções criminosas.
O Equador sofre uma crise de segurança que se agravou especialmente nos últimos três anos.
Em 2023, o país bateu seu recorde histórico de homicídios com 7.878, dos quais apenas 584 foram solucionados.
Mas o que significa ter sido um "conflito armado interno" no país e quais são as implicações dessa declaração oficial?
Condições de um conflito armado
De acordo com o Direito Internacional Humanitário, um conflito armado interno é uma situação de violência em um Estado com confrontos armados prolongados entre forças governamentais e um ou mais grupos armados organizados.
O Direito Internacional Humanitário exige a presença de diversas condições para determinar a existência de um conflito armado interno.
Além dos confrontos prolongados, segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha - que baseia a sua definição nas Convenções de Genebra e na jurisprudência internacional - o conflito deve atingir um "nível mínimo de intensidade" e as partes devem ter uma estrutura organizada.
Pode-se argumentar que muitas das facções criminosas que operam no Equador possuem estruturas bem organizadas.
E o poder das mais de 20 quadrilhas que atuam no país se fortaleceu nos últimos anos, graças às receitas milionárias provenientes do tráfico de drogas.
O país tornou-se um importante centro regional de armazenamento, processamento e distribuição de entorpecentes.
As gangues têm seus principais centros de comando e operações nas prisões, e também estão ligadas aos grandes carteis de drogas do México e da Colômbia.
Estas gangues também lutam pelo controle de outros setores do país.
Assassinato de candidato
Em agosto do ano passado, o candidato presidencial Fernando Villavicencio foi assassinado. O crime ainda não foi esclarecido, mas muitos analistas associam o homicídio à ascensão destas facções.
"Este e outros crimes têm como objetivo impor condições ao poder político e demonstrar que já há algum tempo, em grande medida, as facções estão no controle do país", disse Andrés Chiriboga, analista político equatoriano, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Edward Pérez, especialista em direitos humanos da Faculdade de Direito da University College London, disse que a declaração de Noboa é discutível.
"No Equador não está claro se o conflito atinge o nível de intensidade ou se é longo o suficiente para que se possa dizer que existe realmente um conflito armado interno", afirma.
Na América Latina há situações que podem ser comparadas à equatoriana, segundo o especialista especializado na região.
Ele afirma que durante o conflito no Peru contra o grupo radical Sendero Luminoso ou o Movimento Revolucionário Túpac Amaru, e a guerra da Colômbia contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), "não se discute" que existiram conflitos armados internos.
"Eram estruturas organizadas com fins políticos e mantinham conflitos prolongados", argumenta.
No entanto, Pérez considera que ainda é cedo para dizer que o mesmo está acontecendo no Equador.
"O caso equatoriano é mais parecido com o do México. Quando ocorreu a disputa contra os cartéis de Sinaloa e Jalisco, havia a retórica de que havia uma guerra às drogas, mas na prática o próprio governo mexicano sustentava que não havia conflito interno contra as Forças Armadas, e que era apenas retórica", explica.
"No Equador pretende-se declarar um conflito armado por decreto e isso é algo que não pode ser declarado, porque simplesmente acontece."
Por sua vez, a advogada equatoriana María José Mogrovejo, especialista em Direito Constitucional, argumenta que existem condições para isso.
"Temos as questões do prolongamento e da intensidade porque a situação que vivemos atualmente não surgiu apenas com o atual governo e não vimos apenas um motim nas prisões do país, estamos nisto há anos", disse à BBC.
"A situação atual é incontrolável. O governo perdeu o controle do território equatoriano e por isso necessita da intervenção das Forças Armadas", acrescenta.
Consequências do decreto
As primeiras implicações do decreto de conflito armado puderam ser vistas imediatamente após o anúncio.
O presidente Daniel Noboa ordenou às Forças Armadas que realizassem operações militares para neutralizar mais de uma dezena de grupos que chamou de "terroristas".
Pouco depois do anúncio, o Exército equatoriano saiu às ruas - alguns veículos eram blindados.
"Com o decreto pode-se justificar que as Forças Armadas neutralizem os adversários", explica Edward Pérez.
"Mas a experiência na América Latina nos mostra que o problema é que nestes estados de exceção as atrocidades tendem a ser escondidas e depois permanecem na impunidade e na escuridão durante décadas", continua.
"Os governos se justificam dizendo que foram ações supostamente necessárias para manter a ordem pública."
A advogada María José Mogrovejo acrescenta que o decreto permite ao presidente justificar o estado de emergência anunciado na segunda-feira.
Isso dá poderes ao Executivo para suspender ou limitar vários direitos.
"O direito à inviolabilidade do lar, o direito à liberdade de circulação e reunião, entre outros", explica Mogrovejo.
O especialista acrescenta que é importante lembrar que mesmo durante um estado de emergência é protegido um "núcleo duro de direitos humanos", aqueles que não podem ser violados mesmo em estado de guerra.
"Por exemplo, o direito à integridade e à vida é garantido."
Os analistas concordam que o Estado deve prevenir as violações dos direitos humanos não só das pessoas envolvidas diretamente no conflito, mas também de toda a população em geral.