Como cachorros salvaram as vidas de todos os moradores de uma cidade americana
No ditado popular, cães são nossos melhores amigos. Mas há ocasiões em que também são nossos salvadores.
Em 1925, a pequena cidade de Nome, no Estado americano do Alasca, estava sendo assolada por uma epidemia de difteria. Para proteger os habitantes, 20 times de cães puxadores de trenós transportaram soro por mais de 1 mil km de gelo e neve, em apenas seis dias, enfrentando um dos mais brutais invernos em muitos anos.
Dos cães que participaram da Corrida do Soro de Nome, os mais celebrados foram dois huskies siberianos chamados Balto e Togo.
Hoje, cães dessa raça competem em corridas de trenó e volta e meia superam alguns dos mais rápidos atletas humanos. Em distâncias superiores a 16 km, eles são o mais rápido mamífero terrestre.
Mas como os cães salvaram Nome?
Huskies foram introduzidos na região por um comerciante de peles chamado William Goosak durante a Corrida do Ouro na região do Yukon no início do século 20. Ele havia notado o potencial dos animais, usados pela tribo Chukchi, da Sibéria.
Por milhares de anos, os Chuckchi empregaram huskies para transporte ao longo da tundra ártica. Cruzamentos seletivos criaram o cão puxador de trenó ideal, perfeito para as condições gélidas e uma vida de trabalho pesado.
Em 1909, Goosak inscreveu seus cães na Grande Corrida do Alasca, um percurso circular de 657 km entre Nome e Candle que vinha sendo dominado pelos malamutes, uma raça local.
Os "ratos siberianos" de Goosak, como os cães foram apelidados, tinham metade do tamanho dos malamutes, mas terminaram a corrida em terceiro.
Os malamutes eram mais fortes, mas os huskies eram mais rápidos. E suas habilidades estão baseadas em uma combinação de tamanho e forma.
"Cães maiores têm passadas mais largas e cobrem mais terreno, mas sua massa faz com que superaqueçam", explica Raymond Coppinger, do Hampshire College, em Amherts (EUA), e coautor de um manual sobre cães.
"Os huskies são menores, geram menos calor e têm a mesma área de pele para dissipação, então, mantêm a temperatura."
Isso pode até sugerir que chihuahuas seriam melhores para puxar trenós, mas é claro que eles são pequenos demais.
Na verdade, os huskies são uma espécie de "cachinhos dourados" do mundo das corridas de trenó: nem muito grandes, nem muito pequenos, com o ângulo certo de pélvis, comprimento das costas e largura dos ombros, o que permite passadas longas.
Eles também galopam, sempre mantendo ao menos uma pata em contato com a neve. E isso é crucial.
Galgos são mais rápidos que os huskies, por exemplo, mas eles meio que saltam. É uma ótima técnica para corridas de velocidade, mas desastrosa para puxar um trenó. O trenó puxaria os galgos para trás todas as vezes em que eles "decolassem".
Na Grande Corrida do Alasca de 1910, um time de huskies venceu. Eles pertenciam a um piloto de trenó chamado Leonhard Seppala.
Essa vitória seria lembrada em janeiro de 1925, quando as autoridades de saúde da cidade se viram às voltas com a epidemia de difteria.
A difteria é uma infecção bacteriana que afeta principalmente o nariz e a garganta. Se não for tratada, pode ser fatal. Hoje, é uma doença rara, porque a maioria das pessoas é vacinada contra ela, mas não era assim em 1925.
O surto em Nome veio na pior hora possível. O vilarejo estava isolado pelo mais severo inverno em 20 anos e não havia estoques locais de soro.
Médicos previam uma mortalidade de 100%, já que o lugar mais próximo para buscar soro era Nenana, a 1.085 km de distância. Em 24 de janeiro, ficou decidido que um revezamento de trenós transportaria o soro de Nenana até Nome.
Vinte times se posicionaram ao longo da rota. Seppala estava escalado para a penúltima etapa da viagem, entre Shatoolik e Golovin.
A rota inteira normalmente exigiria 25 dias de viagem, mas era tempo demais, já que as condições brutais de inverno estragariam o soro em apenas seis dias.
Ou seja: os cachorros precisariam completar a jornada em menos de um quarto do tempo normal.
O primeiro desafio era simples: não morrer congelados. Huskies siberianos têm uma segunda camada de pelos, de acordo com a patologista veterinária Kelly Credille. Isso forma uma espécie de proteção extra que retém o calor junto ao corpo.
Eles também usam suas longas e peludas caudas para respirar ar quente a noite toda ao cobrir o focinho com elas enquanto dormem.
"Também descobrimos que os huskies podem criar uma camada protetora de pelos que 'hiberna' em vez de crescer", explica Credille.
Outras raças precisam ter o pelo tosado, porque a maioria de seus folículos está crescendo ativamente, ao contrário dos huskies. E isso os ajuda a conservar energia.
"O pelo é feito a partir de proteínas e lipídios, e os huskies preservam isso ao esperar por um momento em que o tempo melhora e o alimento fica mais abundante para seu pelo crescer."
A maior parte dos condutores trenós da Corrida do Soro de Nome sofreu com a gangrena causada pelo frio nas mãos e rostos, uma consequência da exposição de humanos ao frio extremo, já que, para proteger nossos órgãos vitais, concentramos o sangue no centro do corpo, deixando nossas extremidades vulneráveis.
Por sua vez, cães não perdem tanto calor pelas extremidades. Vasos sanguíneos na sola das patas o retém, explica Dennis Grahn, da Universidade Stanford, na Califórnia. Isso contribui para manter a temperatura equilibrada e acima do ponto de congelamento.
As patas de cães também são peludas, o que ajuda a evitar a perda de calor. Em cães de trenó modernos, as áreas mais vulneráveis a gangrena são áreas mais peladas, como os mamilos.
Os huskies de Seppala se beneficiaram de tudo isso durante a Corrida do Soro.
Em 31 de janeiro de 1925, eles já tinham viajado 274 km, partindo de Nome, para encontrar o carregamento de soro. Faltavam dois dias para que o material expirasse.
Seppala tomou então a decisão de cruzar a camada de gelo de Norton Sound. Foi quando chegou uma nevasca que deixou o piloto cego. Para sobreviver, ele precisou confiar nos instintos de seu cão-líder, Togo, especialmente para evitar buracos no gelo.
Togo era ideal para isso: bigodes caninos são sensíveis a mudanças no fluxo de ar. A chave são sensores na base do bigode - e huskies têm mais deles que outras raças.
Eles também são inteligentes, graças a séculos de cruzamentos seletivos. Os Chuckchi precisavam de cães que pudessem tomar decisões de navegação súbitas e percorrer de maneira segura a neve e o gelo. Outra coisa necessária era trabalho em equipe, e, para isso, criaram cães brincalhões.
"Puxas trenós é, tecnicamente, brincar. Não há recompensa imediata", diz Coppinger. "E agir como uma equipe também ajuda, além de fortalecer os laços entre pessoas e cães e reduzir a agressão entre os animais."
Os Chukchi escolhiam sistematicamente os cães mais inteligentes e brincalhões para produzir a próxima geração de huskies. Isso fez com que a agressividade praticamente desaparecesse da raça.
Os huskies também eram incentivados a vagar e caçar e também serviam como companhia para crianças. Isso se reflete em suas personalidades: a raça têm pouco medo e é uma boa exploradora.
Essa seleção moldou a química do cérebro dos cães puxadores de trenó atuais. Eles têm níveis mais altos de um neurotransmissor chamado noradrenalina, associado ao comportamento exploratório.
Trabalhando como um time, os cães de Seppala navegaram as condições traiçoeiras de Norton Sound, ficando a apenas 146km de Nome. Ali, outro piloto, Gunnar Kaasen, assumiu o transporte, com uma matilha liderada pelo huskie Balto. Chegaram ao seu destino com meio dia de vantagem, salvando 10 mil vidas.
Hoje, há uma estátua de Balto no Central Park, em Nova York, algo um pouco injusto, pois ele foi apenas um dos cães participantes da corrida.
Os huskies siberianos foram apenas reconhecidos como uma raça em 1930 pelo Kennel Club dos EUA, organização que determina critérios rigorosos para a classificação de cães no país.
Hoje em dia, a maioria desse cães é criada para exibições. Isso foi determinante para que huskies siberianos não sejam mais campeões de corrida de outrora.
"Os cães que hoje ganham corridas são fruto de uma combinação de diversas raças feita no Alasca", diz o geneticista Heather Huson, da Universidade de Cornell (EUA).
Ainda assim, os huskies siberianos têm um valioso legado genético. Hudson descobriu que cães corredores de longas distâncias têm muito mais genes de huskies siberianos que cães de velocidade, como galgos.
Ele estuda animais que competem na Grande Corrida de Iditarod. Dezesseis times percorrem 1.600 km pelo Alasca, entre Willow e Nome, por oito a nove dias. As temperaturas chegam a -40ºC.
Durante os dias de corrida, cada cão queima entre 10 mil e 12 mil calorias. Isso supera em muito o gasto total de humanos registrados em provas de esforço como o Tour de France, uma competição de ciclismo anual em que há muitas subidas por montanhas.
Para conseguir essa energia, humanos precisariam de algo impossível: desviar todo o sangue do corpo para os músculos, o que privaria os órgãos vitais e causaria um colapso.
Atletas medem seu desempenho com base no VO2 máximo, o termo utilizado para a quantidade de oxigênio que o corpo pode transferir para músculos durante períodos de esforço físico intenso.
Chris Froome, o britânico bicampeão do Tour de France, teve seu V02 máximo medido em 88,2. Cães puxadores de trenós registraram 200.
Isso porque esses animais têm vantagens naturais sobre humanos. Suas células contêm, por exemplo, 70% mais mitocôndrias, responsável pela fabricação de energia. E eles não precisam desviar sangue de seus órgãos vitais, porque o treinamento para as corridas faz seus corações crescerem até 50% - e bombearem mais sangue.
Mas como é que eles sustentam esses níveis de esforço por tanto tempo? Michael Davis, da Oklahoma State University, pesquisa o assunto há anos e diz que puxadores de trenó contam com uma série de adaptações para o exercício que não vemos em humanos.
A glicose do alimento é armazenada no organismo pelos músculos sob a forma de glicogênio e liberada durante o exercício.
"O exercício normalmente esvazia as reservas de glicogênio, levando também a um aumento de hormônios de estresse e danos celulares", diz Davis.
Isso significa dizer que atletas de resistência não podem atingir o mesmo ritmo de cães, porque precisam descansar para produzir mais glicogênio e reparar as células.
"Supreendentemente, os cães de Iditarod parecem conseguir reparar esses danos durante os dias de corrida".
Parte do segredo é a dieta "extrema" dos bichos. Como queimam cerca de 10 mil calorias por dia, precisam comer muito para sustentar esse gasto energético. Isso equivale a mais de 30 Big Macs por dia - comida demais para caber em um cachorro.
A solução é cortar os carboidratos e compensar com a ingestão de gordura. É a forma de nutrição mais energética e fácil de dar aos cães para evitar a perda de peso.
Cães de corrida estudados por Davis conseguiram manter seu glicogênio muscular depois de corridas repetidas, mesmo quando seu consumo de carboidratos correspondia a apenas 15% do total de calorias consumidas.
Um estudo de 1973 mostrou que cães correndo em uma dieta sem carboidratos levam vantagem em comparação com rações ricas em carboidratos.
Eles têm mais glóbulos vermelhos e níveis mais altos de hemoglobina, além de serem menos vulneráveis às deficiências de minerais que são comumente causadas por exercícios exaustivos. Para cães de corrida, quanto mais gordura, melhor.
"Você não poderia adotar essa dieta com cães domésticos, mesmo um husky siberiano. Alguns tipos de raças podem morrer de inflamações no pâncreas se comerem repentinamente uma grande quantidade de gordura", explica Erica McKenzie, da Oregon State University.
Quando um cão doméstico consome uma grande quantidade de gordura, ácidos graxos aparecem na corrente sanguínea. Mas isso não acontece com puxadores de trenó.
Os cientistas sempre pensaram que os depósitos de gordura eram transportados diretamente do sangue para as células para serem usados como combustível - isso é o que acontece em atletas de resistência.
Porém, as pesquisas de Davis indicam que os puxadores de trenó queimam carboidratos em vez de gorduras, mesmo em exercícios de baixa intensidade.
"Todas as vezes em que achamos ter encontrado a explicação para essa incrível resistência, os cachorros trazem uma resposta diferente, que acreditávamos ser impossível", diz Davis.