Negros jamais aceitarão voltar à era pré-Obama, diz professor de Harvard
Oito anos após sua eleição gerar imenso entusiasmo entre americanos negros, Barack Obama deixa o cargo sem atender todas as expectativas do grupo, mas ainda assim deixará um legado duradouro para minorias raciais nos EUA, diz Ronald Sullivan, professor de direito na Universidade Harvard.
Diretor do Centro de Justiça Criminal da universidade, Sullivan afirma que a passagem de Obama pela Casa Branca influenciará várias gerações de americanos, que crescerão sabendo que um negro pode chegar à Presidência.
"Hoje há meninas e meninos com aspirações que jamais teriam antes", ele diz à BBC Brasil.
Em 2008, Sullivan participou de um comitê que assessorou a campanha de Obama na área de justiça criminal e, após a vitória, foi conselheiro em sua equipe de transição.
Como professor e advogado, tornou-se um ardoroso defensor de uma reforma no sistema penal que reduza os níveis de negros presos. Hoje, segundo um levantamento do The New York Times, um entre cada seis negros adultos nos EUA foi morto ou está na prisão (boa parte das condenações são por tráfico).
Leia os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - A vitória de Obama em 2008 gerou muita esperança entre negros americanos. As expectativas foram alcançadas?
Ronald Sullivan - Acho que muitas delas foram e muitas outras, não. A presidência de Obama esteve à altura do entusiasmo extraordinário que levou à sua primeira eleição? Claramente não. Mas acho que algumas daquelas expectativas eram irrealistas. Apesar disso, o governo dele teve grandes avanços e melhorou de várias formas as vidas de afro-americanos no país.
BBC Brasil - Pode citar exemplos?
Sullivan - Por causa da crise, a taxa de afro-americanos desempregados havia dobrado no começo do primeiro mandato, até 2010, mas caiu tremendamente desde então, embora ainda seja maior que em qualquer outro grupo étnico.
Na área da justiça criminal, o Departamento de Justiça foi o mais ativo na defesa de direitos de minorias no que diz respeito à polícia e outras autoridades estaduais desde os anos 1960 e o movimento dos direitos civis.
Com o Obamacare, mais afro-americanos puderam receber seguro-saúde do que em qualquer governo anterior - e os seguros eram tanto acessíveis quanto abrangentes.
Mas uma das maiores conquistas deste governo é a simbologia de haver um afro-americano no Salão Oval. Nos últimos oito anos, crianças cresceram sabendo que uma pessoa negra pode se tornar presidente. Isso faz uma diferença enorme. Hoje há algumas meninas e meninos com aspirações que jamais teriam antes.
Haverá gerações e gerações de pessoas de cor que não aceitarão que as estruturas as deixem para trás. Esse é um legado duradouro e impossível de ser exagerado.
BBC Brasil - Há áreas em que ele poderia ter feito mais quanto às relações raciais?
Sullivan - Ele certamente poderia ter feito mais na área da justiça criminal. Eu gostaria que ele tivesse dado mais perdões a condenações por tráfico de crack e cocaína, que advêm de um regime racista e desproporcional.
BBC Brasil - Como Obama lidou com o movimento Black Lives Matter e as dezenas de protestos motivados pela morte de negros desarmados em abordagens policiais?
Sullivan - Ele lidou de modo muito cuidadoso. Ele sempre afirmou que é o presidente de todas as pessoas, não só de algumas. Então ele tentou articular cada argumento com o argumento do outro lado.
Mas não concordei com a retórica dele que parecia sugerir que havia uma equivalência moral entre os argumentos legítimos do Black Lives Matter e argumentos de alguns sindicatos de policiais, que se diziam sob ataque. Não acho que haja equivalência moral entre os dois lados.
BBC Brasil - Alguns críticos dizem que ele demorou muito a falar mais abertamente sobre o tema racial e que algumas das suas principais políticas para melhorar a vida de minorias só foram adotadas no final do seu segundo mandato. São críticas válidas?
Sullivan - Não entendo a crítica de que ele levou muito tempo a falar de raça. Parece-me que ele falou disso desde sua candidatura, mas acho justo dizer que as políticas especificamente voltadas a afro-americanos vieram muito tarde.
O presidente tem uma filosofia geral de que marés altas levantam todos os barcos. Traduzindo, ele achava que se adotasse políticas que fossem úteis para pessoas na pobreza ou classe média, os afro-americanos nesses grupos seriam beneficiados. Não acho que isso deu tão certo assim na prática.
O ponto é que o presidente nunca evitou questões que impactam a comunidade afro-americana, mas teve uma abordagem particular, que ele acreditava ser politicamente palatável e pragmática, e tentou tirá-la do papel.
BBC Brasil - Em seu último discurso como president, em Chicago, Obama disse que os brancos precisam entender que os efeitos da escravidão ainda estão presentes, mas também disse que os negros devem tentar ver as coisas do ponto de vista de brancos que se sentem ameaçados por mudanças culturais e econômicas. É um pedido razoável?
Sullivan - Acho que nós temos que começar a exercer o que [o filósofo americano] Cornel West chamou de we-talk [conversa coletiva, em tradução livre]. Acho que temos de ser um país unido onde pessoas diversas não sejam vistas como forasteiras, mas como americanas. Temos que conversar uns com os outros e empatizar uns com os outros. Que o presidente tenha tentado transmitir isso em seu discurso em Chicago, eu acho louvável.
Por outro lado, achei inadequada a porção do discurso que pretendia sinalizar uma equivalência moral quanto aos danos sofridos pelos grupos [negros e brancos].
BBC Brasil - O apoio a Trump foi alimentado pelo ressentimento de muitos brancos em relação ao que chamam de politicamente correto - pessoas que, em resposta ao Black Lives Matter, gritam em protestos que All Lives Matter (todas as vidas importam) e que acusam ativistas negros de praticar racismo reverso. Como se chegou a este ponto de divisão?
Sullivan - Chegou-se a esse ponto porque muitos americanos da comunidade majoritária [branca] sentem que este é o país deles. A reação veio quando minorias e pessoas de cor começaram a reivindicar os mesmos direitos que a comunidade majoritária usufrui todos os dias. A comunidade majoritária se acostumou ao usufruto dos benefícios deste país, enquanto as minorias tinham de carregar um fardo desproporcional.
Houve uma reação, e o presidente eleito Trump se aproveitou desse movimento. Estou confiante, porém, de que nunca voltaremos à América pré-Obama. Depois que minorias e comunidades de cor sentiram o gosto do Sonho Americano de uma forma que não haviam sentido antes, nunca mais baixarão a guarda.
O presidente eleito é enigmático, é difícil prever como ele será. A situação pode ficar mais conflituosa, pode piorar antes de melhorar, mas no longo prazo nossa democracia será melhor.